Em Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000, o historiador inglês Peter Burke retoma temáticas já aventadas em seus estudos anteriores, buscando discutir as contribuições de sujeitos exilados e expatriados para a história do conhecimento. Publicada em 2017 pela editora Unesp, a obra procura compreender os impactos sociais e culturais da migração em diferentes contextos, espaços e motivações. O autor – professor emérito da Universidade de Cambridge e autor de obras como Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800, A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV e Testemunha ocular – é reconhecido por suas pesquisas na área de História Moderna, História da Mídia e História Cultural. Em sua mais recente publicação no Brasil, o historiador parte de conceitos como trânsitos culturais, mediações, transculturação e hibridismo para compreender o local social desses sujeitos.
Apesar de reunir reflexões e conferências apresentadas pelo autor em diferentes momentos de sua carreira, o livro não é apenas uma obra motivada pela pesquisa acadêmica. Na apresentação da obra, o historiador destaca que muitas das questões levantadas e o foco nas noções de “exilados” e “expatriados” vieram de sua trajetória pessoal e de contatos durante a formação e atuação profissional com sujeitos que se identificavam com uma ou ambas as categorias. Apesar do recorte temporal e espacial bastante extenso – quase 500 anos de trajetórias de indivíduos migrantes –, a obra elenca temas centrais e algumas trajetórias em específico, focando nos sujeitos e em suas contribuições e/ou enfrentamentos muito mais do que na visão totalizante da história.
Nessa chave analítica, Burke se detém apenas a sujeitos em trânsito que contribuíram para as áreas de ciências humanas, sociais ou as artes por considerar que a experiência do deslocamento foi fundamental para a constituição das reflexões de determinados artistas/intelectuais. Vale destacar que a opção pelas “contribuições” ou “dificuldades” enfrentadas no processo de migração levam o autor a seguir uma perspectiva recorrente nas análises que pode ser organizada da seguinte maneira: motivo da migração (contexto), principais áreas dos migrantes, estudos de caso.
Com base nesse raciocínio, alguns temas são pouco abordados ou não são citados, como as políticas migratórias, as leis de amparo ou as instituições de auxílio e observação das migrações, apesar de essas questões, às vezes, serem mencionadas para contextualizar os movimentos da pessoa. Também é importante compreender que, apesar do recorte amplo, a maioria dos casos destacados se refere a exilados e expatriados europeus que se deslocaram para outras regiões (como as Américas) no período moderno, mesmo que o último capítulo discuta a idade contemporânea e faça algumas incursões de análise sobre a Índia e o Oriente Médio.
Antes de abordar os capítulos que compõem a obra é preciso destacar alguns argumentos principais que estruturaram o pensamento do historiador. Em primeiro lugar, é necessário compreender o uso das categorias de “exilado” e “expatriado”. Por exilado, Burke considera aquele sujeito que foi forçado à migração, muitas vezes por políticas de estado e/ou perseguição, enquanto a noção de expatriado seria um pouco mais complexa na medida em que é referente a uma migração voluntária do indivíduo, apesar de ter como um dos motivos a busca por melhores condições de vida. É interessante perceber que, além da migração, a questão do futuro é um dos eixos estruturantes de ambas as categorias, pois um exilado lida com o retorno futuro como uma projeção que depende de eventos imprevisíveis, uma forma de promessa incerta, enquanto o expatriado vê o regresso futuro como algo próximo ou uma forma de garantia de seus atos no presente. Na análise do historiador, esses termos não são antagônicos, pois é possível que um mesmo sujeito seja exilado e expatriado, tendo em vista que, no contexto migrante, muitas vezes não ocorre uma fixação única, sendo o deslocamento o modo de viver de muitos desses indivíduos.
O conceito de mediação, assim como de hibridismo e transculturação, é fundamental para as análises do autor sobre a migração. Com base nas ideias do intelectual cubano Fernando Ortiz, o autor afirma que é necessário compreender os efeitos a migração como um processo de inter-relação cultural, e não como um jogo de disputas e adaptações, em que uma identidade se sobressai à outra. Nesse sentido, um protestante na França que se desloca para a Inglaterra no contexto da revogação ao Édito de Nantes, por exemplo, não deixaria de ser francês e/ou se tornaria inglês. O que ocorreria seria um processo de jogos de identificação, de traduções culturais e de influências mútuas, de modo que, para o autor, é fundamental compreender que os recém-chegados impactavam “um jeito de pensar, uma mentalidade ou habitus diferentes daqueles que predominavam no país em que se estabeleciam” (BURKE, 2017, p. 25).
Alvo de uma série de críticas, o conceito de hibridismo cultural, já mobilizado anteriormente por Burke (2003), tem sido revisto por uma série de intelectuais, como o latino-americano Nestor García Canclini. Apesar de não citar o autor em sua análise, são perceptíveis pontos de contato entre ambas as perspectivas, auxiliando a compreender essa noção que, por vezes, é dada como algo já integrado ao senso do(a) leitor(a). Para Canclini (2015, p. XIX), a hibridização pode ser entendida como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”, ou seja, que em si não existiria uma pureza em nenhuma ação humana ou objeto, pois toda existência de algo é relacional. Burke parte dessa perspectiva por meio do processo de “mediação”, através do qual exilados e expatriados modificam o meio social e seu habitus ao mesmo tempo em que são modificados pelo deslocamento e seu novo espaço de inserção.
Cabe destacar que esse processo não é nem deve ser visto como algo tranquilo ou apenas positivo, o que, na visão do historiador, resultaria em uma história da migração centrada nos “ganhos”. A migração – forçada ou desejada – envolve um processo de violência simbólica e, em muitos casos, física, desde seus motivos iniciais até os processos de inserção em uma nova cultura, já que o capital cultural ou simbólico nem sempre é uma dimensão bem aceita no local escolhido, e os processos de interação e mediação são sempre dependentes dessa recepção, que é perpassada por interesses de ambos os lados. O desemprego, o preconceito, a marginalização e os abusos são apenas algumas das questões que também atravessam a migração. Apesar de dicotômica, a visão de Burke permite perceber que, além das contribuições para a história do conhecimento e da arte, existem também uma questão traumática envolvida. Nesse sentido, nem o exílio nem mesmo a expatriação devem ser vistos de maneira romântica, como muitas vezes são projetados na mídia ou nas próprias campanhas de estímulo à migração, sendo essa visão muitas vezes alimentada por um peso nostálgico do processo.
A obra Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000 é estruturada em cinco capítulos, para além de prefácio, introdução e um apêndice com a listagem de cem acadêmicas exiladas na década de 1930. Na introdução, além de apresentar e justificar sua obra, Peter Burke discute algumas questões metodológicas e de recortes. Já o primeiro capítulo, intitulado “O olhar desde as margens ou os usos do deslocamento”, parte de uma análise conceitual e dos fenômenos que atravessam a migração. Entre as ideias discutidas estão o exílio como educação, as relações mútuas entre sair e chegar e a categoria de “desprovincialização”.
A discussão sobre o deslocamento – seja de exilados, seja de expatriados – como forma de educação é certamente um dos trechos mais interesses da análise do autor, pois destaca que, além das mediações e trocas, existe um elemento não formal de construção de saberes e formação dos indivíduos nos trânsitos migrantes. Para o autor, esse processo é relacional, pois não apenas os migrantes aprendem e desenvolvem ideias novas no contexto de migração, mas também os países que os recebem passam por profundas alterações. Apesar de essa hipótese se referir com mais destaque aos exilados, é possível pensá-la como uma dimensão aplicável aos expatriados, sendo o nível de pressão pela adaptação na “nova” realidade a principal diferença entre as duas categorias.
O conceito de “desprovincialização” é outro eixo central no capítulo, além de uma contribuição para as análises da área. Para Burke (2017, p. 35) a “‘desprovincialização’ é o que se tem chamado de ‘termo guarda-chuva’, um conceito erguido sobre processos diferentes. Talvez seja útil distinguir três desses processos. O primeiro é a mediação; o segundo, o distanciamento; e o terceiro, a hibridização”. Como já citado, o autor aproxima as noções de mediação e hibridismo, articulando-as como processos relacionados. Nesse sentido, a mediação, na qual a tradução é um dos elementos estruturantes, que muitos exilados e expatriados desempenham nas trocas culturais e sociais, é uma etapa inicial do processo de “desprovincialização” que culminará na hibridização. Entre esses dois processos, existe a etapa do distanciamento, por meio da qual o migrante desenvolve um olhar globalizante acerca de fenômenos e práticas com bases em suas experiências nos trânsitos globais/locais.
Em “Um tema global”, o segundo capítulo da obra, o autor discute a possibilidade de compreensão do exílio e da expatriação por uma perspectiva global. Para isso elenca três dimensões possíveis de análise: a origem geográfica (através dos bizantinos, persas e árabes); a religião (monges itinerantes, cristãos e budistas); as funções profissionais exercidas (como o jornalismo). Por esses três eixos, Burke demonstra algumas possibilidades de pesquisa e análise sob uma visão globalizada dos deslocamentos e das contribuições de diferentes sujeitos. Segundo o autor, “exemplos como estes são importantes porque nos lembram que a contribuição dos exilados e expatriados para o conhecimento nos últimos quinhentos anos não se restringiu ao Ocidente, como podem sugerir os estudos de casos oferecidos no restante deste livro” (BURKE, 2017, p. 60).
O terceiro capítulo da obra, “Exílios no início da Era Moderna”, parte de uma perspectiva cronológica e temática para discutir os diferentes exílios por perseguição religiosa na primeira modernidade. Por meio da noção de “migração confessional”, com base nas discussões do historiador Heinz Schilling, Peter Burke analisa a migração em massa de refugiados religiosos entre os séculos XVI e XVII, procurando compreender as contribuições desses exilados para a história do conhecimento. Para isso o autor elenca uma série de trajetórias e produções de sujeitos judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos, católicos e protestantes, afirmando que o início da Era Moderna foi também um momento de trânsito diaspórico e de difusão de ideias fundamentais para o desenvolvimento da arte, história e filosofia ao redor do mundo, a exemplo do humanismo.
Por meio de uma perspectiva linear, em que cada religião é destacada com base em uma data fundante para os movimentos de exílio, o autor procura realçar as contribuições dos intelectuais modernos que foram perpassadas pela religião. No caso judaico, por exemplo, é evidenciada a importância de um posicionamento de mediação dos migrantes com a cidade de Amsterdã, e não de fechamento de uma comunidade isolada na região. Outro exemplo analisado na obra é o caso dos franceses huguenotes perseguidos durante o reinado de Luís XIV, que revogou o Édito de Nantes em 1685. Na visão do autor, “para a França a emigração huguenote significou uma considerável perda de capital intelectual” (BURKE, 2017, p. 92), o que resultou também em crises econômicas e na perda de trabalhadores habilidosos em setores como a tecelagem e a tipografia. É interessante perceber que a noção de “perdas” e “ganhos” é retomada nessa ocasião pelo historiador para ressaltar que a migração forçada não é apenas uma violência contra o sujeito exilado, mas também prejudica diretamente o estado-nação.
O quarto capítulo, “Três tipos de expatriados”, foca essa migração “não forçada” pelos estados, mas incentivada pela busca de novas oportunidades em três setores sociais: comercial, religioso e acadêmico. É interessante destacar que, na perspectiva de Burke, os comerciantes foram figuras fundamentais para o desenvolvimento de reflexões intelectuais e culturais, pela criação de redes de sociabilidade e da circulação de materiais. Ao mesmo tempo, essas figuras, assim como os religiosos, contribuíram para a difusão e o aprendizado de diferentes línguas ao redor do mundo, o que auxiliou processos de troca e mediação.
Com relação aos expatriados acadêmicos, o autor afirma que existe uma contribuição diferente daqueles que viviam no exílio, pois estes, no caso do distanciamento, gozariam de maior liberdade em suas produções e reflexões. Nessa parte, o historiador se dedica a uma região ainda não muito abordada no livro como destino para migrantes: a Rússia. Para Burke, era possível que “os expatriados mais antigos realizassem pesquisas e publicassem suas conclusões, muitas vezes nas atividades da Academia de Ciências e em latim, para que os círculos letrados pudessem saber das contribuições para o trabalho da comunidade do saber que se estava construindo” (BURKE, 2017, p. 149).
Outros casos e locais que tiveram também papel de destaque na recepção de expatriados e contribuíram diretamente para o desenvolvimento científico servem de base para a transição entre os capítulos, como o caso dos Estados Unidos, que, durante o século XX, recebeu parte dos intelectuais da escola de Frankfurt, e o Brasil, que recebeu figuras como Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Intitulado “O grande êxodo”, o último capítulo pretende se ocupar das migrações na idade contemporânea com múltiplos olhares e experiências. Por meio de diferentes olhares, Peter Burke analisa os movimentos de migração russa pós-revolução de 1917, os exílios causados pelas grandes guerras mundiais, as contribuições dos exilados para a sociologia e as artes e apresenta breves observações sobre o contexto pós-1945.
Apesar de casos heterogêneos, ao analisar diferentes contextos de exílio, é interessante perceber que talvez seja neste momento, em que uma perspectiva global pode ser observada com maior atenção. Não que anteriormente esse processo não ocorresse, porém, é notável o crescimento de uma compreensão ampliada, muito possivelmente acompanhada de discussões sobre a globalização na idade contemporânea. Para o autor, o centro de sua hipótese para esse período da história seria pensar em um “grande exodo” mundial, cujas consequências para a história do conhecimento seriam o “encontro entre refugiados carregados de teorias e a cultura empírica ou empirista de seus anfitriões, produzindo novos conhecimentos de um jeito que os refugiados huguenotes do século XVII não conseguiram alcançar” (BURKE, 2017, p. 226). Nesse capítulo, figuras como Theodor Adorno e Edward Said são retomados como algumas das diversas trajetórias possíveis de serem observadas nessa chave analítica.
A obra Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000 é uma leitura fundamental tanto para pesquisadores iniciantes na área de migrações, trânsitos e deslocamentos como também para especialistas. Sua contribuição está não apenas nos conceitos mobilizados e nas hipóteses formuladas, mas, igualmente, na articulação e no esforço de compreender os processos de exílio e expatriação com base em uma visão global desses fenômenos, sem perder os laços nacionais e locais.
Outra dimensão importante e bastante rica do livro está nas trajetórias elencadas por Peter Burke no decorrer da obra, que são não apenas exemplos de exilados e expatriados nos contextos referenciados, mas a base de seus argumentos e estudos de caso. Com a leitura da obra é possível (re)conhecer uma série de intelectuais e artistas fundamentais para a história do conhecimento nas idades moderna e contemporânea, entendendo não propriamente suas trajetórias, mas os laços e impactos dos deslocamentos forçados ou voluntários.
Referências
BURKE, Peter. Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
CANCLINI, Néstor García. Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: Editora Edusp, 2015.
Resenhista
Igor Lemos Moreira – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em História, Departamento de História, Florianópolis. https://orcid.org/0000-0001-6353-7540 E-mail: igorlemoreira@gmail.com
Referências desta Resenha
BURKE, Peter. Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Mediações de exilados e expatriados em contextos globais. Esboços. Florianópolis, v. 27, n. 46, p. 603-609, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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