Toda vez que abro um livro da Juliana Russo recebo de cara um convite. Nesse Pequenos acasos cotidianos não seria diferente (ela também é autora do livro São Paulo infinita). Mas este convite não é formal nem explícito. É um convite velado, sutil, sensível, subterrâneo, palavra tornada desenho. É um convite imediato, mas que precisa ser composto, combinado e descoberto pelo leitor ao virar página por página. Nesse passo a passo das folhas o convite emerge… um caminhar convidando o leitor a caminhar! Um caminhar pelo livro, um caminhar pela cidade.
Juliana nos apresenta esses desenhos, belos e às vezes desengonçados e imprecisos traços, como um convite a acompanhá-la numa caminhada qualquer de um dia qualquer por uma cidade que poderia ser qualquer. Calhou de ser São Paulo (Perdizes ao Centro e de volta), calhou de ser dia 9 de agosto de 2017. O que vemos nesse livro é um relato de viagem, um “mapa de percurso” como queria Michel de Certeau – o cara da Invenção do cotidiano (1), um mapa mentalizado de um caminhar pela cidade observando e lembrando, recordando, recortando, resgatando rastros de um tempo que passa, de um cotidiano que continua. Juliana segue os rastros do cotidiano, anota-os, resgatando-os e colecionando-os. Os presentes (tanto o adjetivo quanto o substantivo) e os desastres desenhados pelo simples desejo de torná-los presente, fixos e eternos. “Os lugares têm uma lembrança própria” sussurra Juliana em algum momento do relato, do mapa, da caminhada.
Assim como fazia Georges Perec nas tentativas de esgotar os lugares (2), os tempos, os cotidianos, as coisas e gestos infraordinários, Juliana está atrás dos “pequenos acasos”. E, ao acompanhar seu caminhar, ou melhor, ao percorrer tal cartografia desenhada, uma pergunta fica no ar, nas brechas (assim como a cidade está nas brechas): Juliana sai de casa, vai de cá para lá, de fora (bairro) para dentro (centro) e de volta para fora. Mas será que não seria de dentro (de casa) para fora (a rua)? Não seria do íntimo e familiar para o imprevisível e desconhecido? O que ela buscava lá dentro (da cidade), lá fora (de casa) naquele dia 9? O que mesmo foi fazer lá? Saiu e foi por quê? Saiu só para ver? Viver?
Noto nesse impulso de vida de Juliana um gesto semelhante ao do personagem inventado por Edgar Allan Poe no clássico Homem da multidão:
“No início, minhas observações tomaram um rumo abstrato e generalizante. Eu contemplava os passantes em blocos e os considerava em seus aspectos coletivos. Logo, entretanto, desci aos pormenores, e comecei a observar com particular interesse as inumeráveis variedades de acessórios, roupa, aparência, andar, rosto e expressão corporal” (3).
Juliana caminha e para (4). Caminha para observar, para para absorver, perceber. Transforma suas percepções em desenhos, em cartografia do cotidiano. Observando e absorvendo como um flâneur, ou melhor, como uma flâneuse. Certamente Charles Baudelaire analisaria os desenhos de Juliana como fez com os desenhos de Constantin Guys. Aos olhos de Baudelaire a Sra. J seria como o Sr. G – no livro O pintor da vida moderna (5) –, dois flâneur/flâneuse. Na verdade, eu iria adiante nessa titulação à nossa querida Sra. J, pois, infelizmente, ainda não concebo um corpo feminino anônimo e incógnito caminhando na cidade (quem sabe um dia…) e nem vislumbro a mera observação em seus desenhos, vejo também um ato de coleta de restos, de sobras, de desdéns. Considero Juliana uma recolhedora de trapos, de restos, de vestígios. Rastros de uma cidade que passou, mas que ainda está. Por isso recorro ao mesmo Baudelaire que elogiou o flâneur para dar-lhe o título de trapeira. Juliana Russo se apresenta como uma trapeira!
“Eis um homem encarregado de apanhar os restos de um dia da capital. Tudo o que perdeu, tudo o que desdenhou, tudo o que partiu, ele o cataloga e coleciona. Compulsa os arquivos da libertinagem, a cafarnaum dos refugos. Faz uma separação, uma escolha inteligente. Reúne, como um avarento um tesouro, os lixos que, mastigados pela divindade da indústria, se tornarão objetos de utilidade ou de recreio” (6).
Uma trapeira (7) que habita a cidade, está na cidade, permanece dentro. Dentro da cidade, fora da casa. Ela vai, caminha e recolhe sem utilidade, num contraturno da produção do capital contemporâneo. Perambulando e recolhendo os restos abandonados pela constante modernização da cidade e sua sociedade. Uma mulher que percebe, no rastro deixado pelo desenvolvimento tecnológico e hiper-capitalista da metrópole global, uma urgência constitutiva da subjetividade. Uma mulher que resgata o que é desnecessário, inútil, descartado, uma mulher que coleciona trapos.
Trapos, coisas inúteis, resto de algo antes importante, que um dia foram de alguém, foram do Outro. Restos deixados como rastro, deixados para trás como fragmentos de um viver, de uma narrativa já contada, pedaços de uma história que um dia foi, que ainda é. Um fragmento, um resto de narrativa que, aos olhos e ao corpo da trapeira, pode ser recolhido, reunido e registrado. E nessa reunião, uma coleção, os fragmentos e restos de muitos, memórias dos Outros, podem e são ressignificados e constituem uma outra narrativa, não somente de Outros, mas também dela.
E digo “dela” porque o mapa de percurso que Juliana nos apresenta nesse novo livro não é na verdade de um caminhar pela cidade, e sim por sobre si mesma. Ela própria já nos lembrou disso no livro São Paulo infinita: “O que eu coloquei nesse livro não é São Paulo, sou eu”. Por isso, nesse caminhar sobre si mesma, na sua subjetividade, nas suas ressignificações do mundo, sobre suas próprias memórias e afetos do cotidiano naquele dia 9 de agosto de 2017, recebemos mais uma vez o convite. Um convite que, no final, soa a mim, leitor e caminhante, como uma pergunta, uma dúvida. O desastre indicado no subtítulo do livro é o atual estado da cidade, dos pobres coitados (todos nós) que vivem/sobrevivem na Cidade? Ou é a tristeza de todos nós que já não temos tempo para enxergar o presente (de novo, adjetivo e substantivo)? Enxergar o cotidiano banal que nos constitui? Perceber todas essas pequenas coisas que ao acaso vão se mostrando a cada passo dado na Cidade? Ou mesmo em si mesmos? O quanto as banalidades cotidianas nos constitui? Qual a participação na constituição do ser urbano, por exemplo, do 7267-10 laranja? De um percurso que parte dos índios e vai aos jesuítas e depois retorna? De olhar no olho do Outro? Esse Outro desconhecido que nos parece tão familiar? Que ganha rosto e nome próprio, mas que, no final, vemos ir embora… vemos apenas as costas?
Por isso digo: obrigado Juliana pelo convite. Aceito de corpo inteiro. Caminhemos pela cidade em busca dessas respostas. Ou, muito provavelmente, encontraremos mais perguntas, mais presentes e desastres, mais sofrimentos constitutivos de nossa humanidade/urbanidade, mais formas de sobreviver nessa infinita cidade.
Já atravessei a soleira, vamos?
Notas
1CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1998.
2PEREC, George. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo, Gustavo Gili, 2016.
3POE, Edgar. O homem da multidão. Apud BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte, Autêntica, 2010.
4Referência ao livro: CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo, Gustavo Gili, 2017.
5BAUDELAIRE, Charles. Op. cit.
6BAUDELAIRE, Charles. Paraísos artificiais. Lisboa, Estampa, 1971, p. 150.
7Para ler mais sobre o trapeiro, ver: SILVA, Ricardo. Elogios à inutilidade: a incorporação do Trapeiro como possibilidade de apropriação e leitura da Cidade e sua alteridade urbana. Orientadora Maria Isabel Villac. Tese de doutorado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2017.
Resenhista
Ricardo Luis Silva – Professor de Teoria e Estética da Cidade no curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Senac SP, é arquiteto formado pela Universidade Federal de Santa Catariana, mestre e doutor em arquitetura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisa as leituras urbanas, suas representações, seus personagens e suas possibilidades de incorporação do espaço urbano.
Referências desta Resenha
RUSSO, Juliana. Pequenos acasos cotidianos. Presentes e desastres da vida cotidiana. São Paulo: Sala Aberta, 2019. Resenha de: SILVA, Ricardo Luis. R.S.V.P. ou, vamos aos trapos! Resenha Online. São Paulo, n. 215, nov. 2019. Acessar publicação original [DR]
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