Toda sociedade tem História, mas nem toda sociedade deixa testemunhos e/ou escreve sua história. Na verdade, embora a expressão ‘história vivida’, a existência das sociedades e dos homens no tempo, seja comum a todas as civilizações conhecidas (ou não), a ‘história conhecimento’, ou mais precisamente, a interpretação daquele agir humano, refere-se apenas àquelas que tiveram a preocupação (política ou cultural) de deixar a posteridade o registro escrito de suas ações, sob a forma fragmentária de documentos (oficiais ou não), ou ainda de interpretações. Evidentemente, desde “tempos imemoriais, a questão da história dos homens e de sua sociedade se coloca” (TÉTART, 2000, p. 7). Mais ainda, para aquelas onde a cultura escrita preponderou sobre a tradição oral. No entanto, a importância de quem deixa o testemunho, sob a forma documental, ou mais caracteristicamente, por meio de uma interpretação (na figura subjetiva do historiador), segundo François Hartog em seu livro O espelho de Heródoto, só teria, de fato, se iniciado na Grécia, no século V antes de Cristo, principalmente com as Histórias de Heródoto, que buscaria “construir um saber fundado nos depoimentos escritos e orais, a fim de reconstituir a cadeia dos acontecimentos históricos e de designar suas causas naturais próximas ou distantes. Inaugura assim a tradição da história factual detalhada – particularmente das guerras” (TÉTART, 2000, p 13), conforme constatará Philippe Tétart. A própria palavra ‘história’, segundo Jacque Le Goff em seu livro História e memória, tal como aparece em todas as línguas românicas ou em inglês, viria do grego antigo historie, em dialeto jônico, que derivaria da raiz indo-européia wid-, weid-, que quer dizer ‘ver’. Daí, segundo ele, o sânscrito vettas, testemunha, e o grego histor, ‘aquele que vê’, seria também ‘aquele que sabe’. E esse é, para ele, o significado que a palavra ‘história’ tinha na obra de Heródoto, de procurar, de informar, de investigar (e, por extensão, de deixar testemunhado aquilo que ‘viu’ ou ‘ouviu’).
Se questionar, portanto, nas sociedades contemporâneas, o que foi ser historiador na Antigüidade Clássica, a forma como aqueles historiadores teriam começado a tentar definir procedimentos de pesquisa, a se inquirir as fontes, e a escreverem histórias, torna-se uma etapa crucial para se precisar melhor a forma como o ofício de historiador teria começado a se desenvolver.
Esse talvez tenha sido o objetivo principal de Philippe Tétart, quando escreveu seu livro Pequena história dos historiadores, para a coleção Synthèse da editora Armand Colin, editado em 1998. A obra foi publicada no Brasil em 2000 pela Edusc. Provavelmente sua maior inspiração tenha sido a obra História e historiadores: Antigüidade, Idade Média, França moderna e contemporânea de autoria de Bizière e Vayssière, editada em Paris no ano de 1995 (infelizmente ainda não traduzida no Brasil). Até pela semelhança das propostas, que tal como a desses autores, a de Tétart (embora com características mais didáticas) foi a de estudar o desenvolvimento do ofício de historiador da Antigüidade Clássica à França contemporânea. Pode-se, desde já, criticar a proposta por dar maior ênfase à Grécia e Roma, para o período da Antigüidade Clássica, e a França, para o período moderno e contemporâneo. O que restringiria a importância de vários outros lugares e autores do passado e do presente. “Com o aparecimento das narrativas históricas em francês, a reflexão de Philippe Tétart inclina-se com demasia, talvez, para o hexágono da França” (TÉTART, 2000, p. viii), como salienta José Leonardo na apresentação da versão brasileira da obra. Pode-se ainda observar certa fragilidade quando discute o que foi e o que é ser historiador. Contudo, não podemos deixar de ver os méritos de obras como essa(s), ao contribuírem para um maior esclarecimento didático sobre o desenvolvimento de nosso ofício profissional.
O livro de Tétart com pouco mais de 160 páginas foi dividido em 17 pequenos capítulos, antecipados por uma bela apresentação do professor José Leonardo do Nascimento e uma curta introdução do autor. O livro ainda é acrescido com um glossário, fundamental, principalmente, para os iniciantes de cursos de graduação em História, ainda não habituados com conceitos e termos específicos da área. Em sua apresentação, José Leonardo, ainda que um pouco crítico com a proposta do autor, não deixa de reconhecer suas contribuições, ainda mais considerando que:
… o fundamental é que a vasta empresa escolar francesa do oitocentos produzirá a disciplina da história e o historiador profissional. A história como disciplina entra nos currículos escolares, do primário à universidade, e sobre este solo, enriquecido por revistas especializadas – Revue Historique, Revue de Synthèse – e publicações diversas, a historiografia alcança os dias atuais. A análise de Philippe Tétart mantém o foco concentrado sobretudo nos séculos XIX e XX do hexágono francês (TÉTART, 2000, p. ix).
Em sua introdução, Philippe Tétart, tenta justificar seu empreendimento da seguinte forma:
Compreender a história dos historiadores, reconstituindo sua filiação desde os gregos até nossos dias, equivale, portanto, principalmente a considerar cada uma das gerações historiadoras por sua obra, sua contribuição à historiografia e ao pensamento histórico – considerando-a em relação a seu próprio tempo e à suas questões de memória […]. A história da história e dos historiadores passa, portanto, primeiro por colocar em perspectiva os modos diferentes de pensamento dos historiadores com a sociedade na qual eles evoluíam e evoluem, a fim de sublinhar as conquistas, as rupturas, a formação progressiva de um senso crítico, de um pensamento e patrimônio científicos.
[…]
Assim, a história greco-romana, dominada pelas personalidades de Heródoto, Tucídides, Tácito, Políbio, Salústio, Tito Lívio e Suetônio, não se resume a eles. A história no século XVII, período de calmaria relativa para o amadurecimento de Clio, conta, apesar de tudo, com numerosos historiadores. A idade de ouro da história [n]o século XIX não pode ser detalhada em algumas páginas; é um tempo ‘de explosão’ da história. Quanto mais o tempo passa, com o desenvolvimento da edição, do ensino, da universidade, da pesquisa, mais o número de historiadores e de especialidades históricas cresce. Abranger sua totalidade seria um desafio inútil, limitado a uma espécie de glossário sem continuidade problemática. Não é essa nossa proposta. Nossa escolha recai sobre a continuidade, correndo o risco de deixar na sombra certos nomes, certas obras, a fim de privilegiar a coerência do questionamento: como o historiador faz história? (TÉTART, 2000, p. 8 e 10).
Portanto, um questionamento político, maior até, do que sua proposta intelectual, já que segundo ele haveria um desenvolvimento linear na história da história indo do período greco-romano para a França contemporânea. E, neste ponto, muito embora o professor José Leonardo tenha apontado seus limites, não evidenciou que o autor explicitamente demonstra sua filiação a uma historiografia francesa, que remonta ao século XIX e se desdobra no movimento dos Annales e na ‘Nova História’, congregando diversos profissionais da França e de outros países, para os quais, o centro da historiografia internacional, desde o século XIX, estaria sediado na França. A história e a organização desse discurso na historiografia francesa foi muito bem estudada e criticada por Rogério Forastieri da Silva em seu livro História da historiografia, versão reformulada de sua tese de doutoramento defendida, em 1999, na Universidade de São Paulo, na qual José Leonardo fez parte da banca examinadora. Assim, ainda que nos surpreenda o fato de José Leonardo não ter articulado na sua apresentação a proximidade de Tétart aquele discurso historiográfico tão típico na França, e compreensível já que sua intenção tenha sido tão somente a de nos apresentar, e muito bem, a obra do autor, não é um fato desprezível a de pelo menos oferecer ao leitor uma modesta articulação sobre a escolha política do autor em sua obra ora resenhada.
Para demonstrar com maior detalhamento a forma como concebe o desenvolvimento do ofício de historiador e, a partir do século XIX, dá ênfase à contribuição francesa, primeiro constataremos isso sucintamente na discussão do autor, em seguida elaborou-se, com base em seu texto, o quadro abaixo, com o número e o período que viveram os historiadores recenseados pelo autor.
Quadro 1: Distribuição de historiadores de acordo com o período.
Antigüidade Clássica
Hecateu de Mileto (540-476)
Heródoto de Helicarnasso (490-425)
Hellanicos de Metilene (479-395)
Tucídides (460-396)
Políbio (205-120)
Catão (234-149)
Cícero (106-43)
Salústio (86-35)
Tito Lívio (59aC-17dC)
Tácito (56-117)
Suetônio (70-120)
Plutarco (46-120)
Herodiano (175-250)
Ammier Marcellin (330-395)
Total: 14 historiadores
Idade Média
Eusébio (265-341)
Santo Agostinho (354-430)
Grégoire de Tours (538-594)
Isidoro de Sevilha (562-636)
Bède o Venerável (673-735)
Paul Diacre (725-799)
Eginhard (770-840)
Hincmar (806-882)
Flodoard (894-966)
Orderic Vital (1075-1142)
Guibert de Nogent (1055-1124)
Suger (1081-1151)
Rigord (1145-1210)
Villehardouin (1150-1213)
Robert de Clari (? – 1216)
Joinville (1224-1317)
Jean Froissart (1337-1410)
Jean Le Bel (1290-1370)
Georges Chastellain (1405-1475)
Jean Molinet (? – 1507)
Jean Lamaire de Belges (1473-1525)
Conde Olivier de la Marche (1428-1502)
Philippe de Commynes (1447-1511)
Robert Gaguin (1425-1502)
Total: 24 historiadores
Idade Moderna
François Hotman (1524-1590)
Jean Bodin (1530-1596)
Henri V. L. Popelienière (1541-1608)
Bertrand d’Argentré (1519-1590)
Nöel de Fail (1520-1591)
Étienne Pasquier (1529-1615)
Aubigné (1552-1630)
Pierre Pithou (1539-1596)
André Duchesne (1584-1640)
François de Mezeray (1610-1648)
Racine (1639-1699)
Scipion Dupleix (1596-1661)
Antoine Varillas (1626-1696)
Jacques B. Bossuet (1627-1704)
Richard Simon (1638-1712)
Mabillon (1632-1701)
Popenbroeck (1628-1714)
André Aubert (1655-1735)
Sébastien Tillemont (1637-1698)
Pierre Bayle (1647-1706)
Charles Rollin (1661-1741)
Paul F. Velly (1709-1759)
Montesquieu (1689-1755)
Voltaire (1694-1778)
Diderot (1713-1784)
D’Alambert (1717-1783)
Condorcet (1743-1794)
La Hontan (1666-1715)
Raynal (1713-1796)
Total: 29 historiadores
Período Contemporâneo
François R. Chateaubriand (1768-1848)
Augustin Thierry (1795-1856)
Louis A. Thiers (1797-1877)
François Guizot (1787-1874)
Alphonse de Lamartine (1790-1869)
Edgar Quinet (1803-1875)
Louis Blanc (1811-1882)
Jules Michelet (1798-1874)
Aléxis de Tocqueville (1805-1859)
Ernest Renan (1823-1892)
Hippolyte Taine (1828-1893)
Fustel de Coulanges (1830-1889)
Gabriel Monod (1844-1912)
Ernest Lavisse (1842-1922)
Charles-Victor Langlois
Charles Seignobos
Charles Péguy (1873-1914)
François Simiand (1873-1935)
Henri Berr (1862-1955)
Henri Hauser (1866-1946
Ernest Labrousse (1895-1988)
Lucien Febvre (1878-1956)
Marc Bloch (1886-1944)
Fernand Braudel (1902-1985)
Total: 24 historiadores
Fonte: TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Tradução de Maria Leonor Loureiro. Bauru/São Paulo: Edusc, 2000, 166p.
Para ele os “historiadores gregos justifica[va]m a idéia de uma reflexão sobre o passado, sobre a memória […] mas também [sobre] os ‘mundos’ que os rodeiam, estão no centro de suas interrogações e de seus relatos. A história tornou-se uma ciência humana. Na pena de historiadores como Éforo (sec. IV aC), ela se presta a tornar-se suporte de uma análise moral do mundo grego e não grego” (TÉTART, 2000, p. 19). Destaca em seguida o surgimento da idéia de nação na historiografia romana, e a partir dela a idéia de uma história universal, na qual a história “é remetida a uma função tão moral quanto política” (TÉTART, 2000, p. 32). A história na Idade Média terá sua atenção centrada na escrita da história do povo cristão, na preservação dos escritos bíblicos e na institucionalização da Igreja, “é no círculo dos bispos […] que se prossegue o essencial da atividade historiográfica” (TÉTART, 2000, p. 39). Para ele a partir do século XII, inicia-se um lento, mas progressivo movimento de secularização que perpassa as idéias, a economia, a política, até invadir o próprio cotidiano. “Os historiadores, seculares, desfizeram-se da viseiras da escatologia” (TÉTART, 2000, p. 53). “A história permanece a serviço do Estado e afasta-se mais um pouco de sua preocupação de edificação moral, religiosa, para entrar num universo de reflexão política e social” (TÉTART, 2000, p. 58), do qual permanecerá até as primeiras décadas do século XX. É a partir do final do período medieval que o autor focaliza sua atenção para o hexâgono francês.
O quadro acima indica como o autor utilizou de forma flexível o termo historiador para conseguir abranger aquela quantidade de atores antigos e modernos. Conforme indica ainda o quadro acima, o autor referiu-se, e/ou fez alguns comentários de 14 historiadores da Antigüidade Clássica, 24 da Idade Média, 29 da Idade Moderna e 24 do período Contemporâneo – o número menor de historiadores para esse período se deve ao fato de que, após 1950, preferiu trabalhar a organização de grupos, e não somente o indivíduo em suas pesquisas. Evidentemente, não foi seu objetivo elaborar um levantamento exaustivo de autores. No entanto, surpreende em alguns momentos a falta de autores como: Nicolau Maquiável e G. Vico, para o período do renascimento europeu; Leopoldo Von Ranke, para o século XIX; Henri Pirenne, historiador belga, fundamental para o desenvolvimento do movimento dos Annales na França; Raymond Williams, C. Hill, E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Perry Anderson, grupo de historiadores marxistas ingleses dissidentes do partido comunista nos anos de 1950, que muito contribuíram com a historiografia contemporânea; Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Carlo Poni, historiadores italianos responsáveis pelo desenvolvimento da micro-história; ou ainda, Keith Thomas, Robert Darnton, Roger Chartier, Peter Burke, Lynn Hunt, Natalie Zemon Davis, responsáveis, juntamente com outros historiadores, pela recuperação, sob novas perspectivas, da História Cultural, a partir da decada de 1970. Tudo isso indica a complexidade da escrita de qualquer história, e a história dos historiadores não foge a regra.
Entretanto, novamente há que se ressaltar os méritos de empreendimentos como esse, ou nesse mesmo caminho, como tem sido os trabalhos de Marie-Paule Caire-Jabinet Introdução à historiografia, publicado em 2003 pela Edusc, e A história na França da Idade Média aos nossos dias, publicada em 2003 pela Flammarion, na França (ainda não traduzida no Brasil). De modo que é bastante promissora a atitude de várias editoras brasileiras, como tem sido a da Editora da Universidade do Sagrado Coração (a Edusc), em procurar traduzir obras de relevo para o conhecimento do ofício de historiador e de sua história.
Para se concluir há que se ressaltar novamente as escolhas políticas e intelectuais do autor, por elencar certos historiadores em prol de outros, principalmente no caso do período contemporâneo, com sua ênfase para o hexagono Francês. Porque seu objetivo foi o de justificar a importância da ‘nova história política’ e da ‘história do tempo presente’, pois, segundo ele, “sob a influência da geração dos historiadores do político e da pesquisa sobre a Segunda Guerra Mundial, o tempo presente acaba por reintegrar-se completamente no campo científico” (TÉTART, 2000, 134), de modo a congregar a atenção dos pesquisadores nas últimas décadas.
Resenhista
Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Mestre em História pelo programa de pós-graduação da UNESP, Campus de Franca. Professor do curso de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambai, em afastamento integral para estudos.
Referências desta Resenha
TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Trad. Maria Leonor Loureiro. Bauru/São Paulo: Edusc, 2000. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Ofício de historiador: passado e presente. Intellèctus. Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, 2009. Acessar publicação original [DR]
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