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Pensar os arquivos: uma antologia | Luciana Heymann e Letícia Nedel

Fruto de um trabalho de tradução e edição de mais de uma década, a coletânea Pensar os Arquivos: uma antologia foi organizada pelas professoras e pesquisadoras Luciana Heymann1 e Letícia Nedel2, tendo sido lançada pela FGV Editora em 2018. Trata-se de uma seleção de textos de revistas especializadas nas áreas de arquivos e estudos históricos, originalmente publicados entre 1991 e 2010, por autores de diferentes origens disciplinares e nacionalidades. A obra tem entre os seus principais méritos o de fazer circular em língua portuguesa artigos relevantes no debate atual em torno da temática dos arquivos, e em conjunto, constituem um bem elaborado “estado da questão”3 sobre o tema.

Para o campo da História da Educação, escopo temático da presente revista, a coletânea reforça a impossibilidade de uma relação asséptica com os arquivos, especialmente nas atuais perspectivas teórico metodológicas sobre as quais está assentada a produção do conhecimento histórico. Dentro da tradicional ideia de que o historiador fala a partir dos documentos, há que se considerar que a operação historiográfica deve falar também a partir dos arquivos, enquanto conjunto documental histórica, cultural e socialmente produzido.

Passando para a análise da obra propriamente dita, e partindo da sua materialidade, é impossível deixar de o seu excelente projeto gráfico. Uma experiência estética que agrada aos olhos e faz jus à qualidade dos treze artigos que compõem a coletânea, organizados em dois grupos temáticos: o primeiro discute conceitos, práticas e princípios relacionados aos arquivos e à Arquivologia; o segundo reúne textos dedicados ao tema dos arquivos pessoais e privados.

Intitulado Arquivos e Arquivologia: história, princípios e práticas, o primeiro bloco é inaugurado pelo canadense Terry Cook4, com o artigo O passado é prólogo: uma história das ideias arquivísticas desde 1898 e a futura mudança de paradigma. O ensaio de Cook (2018) traça uma importante historicidade do pensamento arquivístico, abarcando desde as questões que estavam no embrião do nascimento deste campo de saber, até os desafios e dilemas contemporâneos, decorrentes de um mundo cada vez mais informatizado e com organizações instáveis. Para o autor, o séc. XX marca a passagem do entendimento dos arquivistas como guardiões passivos de documentos legados pelos seus produtores, para tornarem-se ativos criadores do patrimônio arquivístico. A noção de uma suposta imparcialidade do arquivista perde sua validade, vindo à tona a questão dos valores e concepções desse profissional, incorporados a sua prática.

O segundo ensaio da coletânea, Ordens de valor: questionando os termos teóricos da prática arquivística, é escrito pelo canadense Brien Brothman5 (2018). Trata-se de uma problematização da ideia de ordem original, que indica os limites de uma preservação plena, contestando a ideia de uma ordem informacional natural em favor da noção dos agrupamentos documentais como sendo criações socialmente determinadas. Sob tal perspectiva, a arquivologia é instada a rever os seus princípios mais básicos, à luz de um criticismo cultural.

Buscando discutir os arquivos como um dos “lugares” da epistemologia do conhecimento historiográfico, o texto do francês Étienne Anheim6 (2018), intitulado Arquivos singulares – o estatuto dos arquivos na epistemologia histórica: uma discussão sobre “A memória, a história, o esquecimento de Paul Ricoeur”, é uma crítica à obra do referido autor. Anheim (2018) entende que a reflexão de Ricoeur (2007) sobre a epistemologia do conhecimento histórico tem na noção de vestígio o ponto conclusivo sobre as fontes, não levando em consideração o problema da produção dos arquivos, ou conferindo-lhe um status mais secundarizado.

Anheim (2018) entende que a definição conceitual de Ricoeur (2007) não comporta o arquivo como necessitante de uma história das práticas e das representações e enquanto objeto histórico. Ou seja, o autor ignoraria no arquivo o problema da sua produção. Tal imputação parece-me discutível, pois vislumbro que o clássico A memória, a história, o esquecimento contempla, ainda que de modo subjacente, a noção do arquivo como histórica e socialmente determinada. A despeito da controvérsia, o texto de Anheim (2018) indica as potencialidades de um pensamento arquivístico criticamente orientado e sua relação intrínseca com outros campos do saber.

Avançando um pouco mais na coletânea, o texto Relendo os arquivos: novas contextualidades para a teoria e a prática arquivísticas, do canadense Tom Nesmith7 (2018), discute a ideia de uma “guinada contextual” pela qual a teoria arquivística teria passado, sob a influência das chamadas perspectivas pósmodernas. Ao contemplar dimensões culturais e sociais dos arquivos, os tradicionais conceitos e práticas da Arquivologia passaram por profundas reavaliações. Propositiva, a reflexão do autor concentra-se na ideia de descrição, através da qual o trabalho arquivístico pode representar a contextualidade multifacetada dos acervos, disponibilizando de forma muito mais ampla aos pesquisadores a história custodial dos documentos e as intervenções dos arquivistas.

Igualmente pensado nos impactos das chamadas perspectivas pós-modernas sobre o conhecimento arquivístico, a coletânea traz o artigo Muitos caminhos para verdades parciais: arquivos, antropologia e o poder da representação, da arquivista norte-americana Elisabeth Kaplan8 (2018). A autora discute como as novas perspectivas na produção do conhecimento contribuíram com a superação da noção dos arquivistas como “guardiões objetivos de um registro histórico ocorrido naturalmente” (KAPLAN, 2018, p. 186), em detrimento da concepção destes como um intermediário entre um objeto e seu intérprete, intermediação esta permeada por subjetividades, traduzidas em interpretação e poder sobre as representações e o acesso aos documentos. Poder, portanto, sobre a história, a memória e o passado.

Também em diálogo com esta perspectiva, o ensaio intitulado (Des)construir o arquivo, de Eric Katelaar9 (2018), reforça a necessidade de pensar a historicidade do arquivo e a genealogia do documento, perscrutando seus itinerários desde a produção pelas mãos dos criadores até a salvaguarda nas instituições arquivísticas. Concebe, assim, que os arquivos não são estáticos, são um processo dinâmico. O seu significado jamais estará inteiramente presente, porque é múltiplo e construído em um devir constante, dando a ver “contextos sociais, culturais, políticos, religiosos da criação, conservação e utilização de documentos” (KATELAAR, 2018, p. 203), por meios dos quais podem ser decifradas o que o autor chama de narrativas tácitas.

Fechando a primeira parte do livro, a antropóloga norte-americana Ann Laura Stoler10 (2018) discute o contexto colonial (especialmente o holandês) a partir dos processos de produção arquivística, no texto intitulado Os arquivos coloniais e a arte da governança. A autora reivindica o arquivo como objeto para o campo da Antropologia, pensando nas possibilidades de trabalho mais em termos etnográficos do que extrativistas. Os arquivos entendidos, portanto, não somente como lugares de recuperação da informação, mas também de produção de informação. É dentro do contexto da emergência de um ceticismo epistemológico no campo dos estudos culturais e históricos que Stoler (2018) identifica as condições para a elevação do arquivo a um novo status teórico, como um objeto de estudo em si mesmo.

Adentramos agora na segunda parte da coletânea, intitulada Arquivos privados e pessoais: da multiplicidade de sentidos à normatização das práticas. A despeito das inúmeras especificidades que caracterizam os documentos pessoais, o debate segue o escopo das reflexões da obra em torno dos princípios, das práticas e da historicidade dos processos arquivísticos.

Isto fica claro no texto Provas de mim…, que inaugura o bloco. Nele, a australiana Sue Mckemmish11 (2018) busca discutir os processos em que arquivos pessoais são considerados valiosos para determinada sociedade e, por esta razão, incorporados a arquivos coletivos. Esta valorização está relacionada às dimensões da memória e da identidade cultural dos grupos sociais, pois uma carta ou um diário são documentos que transbordam das suas dimensões privadas, na medida em que guardam, subjacentes, interações dos indivíduos com coletividades. Antes de serem “provas de mim”, seriam, portanto, “provas de nós” (MCKEMMISH, 2018, p. 240).

Multifacetados, os arquivos pessoais tencionam algumas das noções mais tradicionais da Arquivologia, como a ideia de proveniência, razão pela qual a autora propõe a leitura destes documentos através de seu caráter transacional (provas de nós), tanto no que diz respeito aos seus conteúdos, quanto na forma de relação com sua materialidade e o seu arquivamento. Ou seja, o ato de arquivar entendido como um sistema social.

O texto seguinte, da canadense Catherine Hobbs12 (2018), complexifica ainda mais a questão, demonstrando a vivacidade do atual debate arquivístico. No artigo O Caráter dos arquivos pessoais: reflexões sobre o valor dos documentos de indivíduos, a autora defende a ideia da valorização do arquivo pessoal, justamente pelo seu caráter pessoal e critica a tendência de reconhecimento do valor informacional e público dos arquivos pessoais, apenas quando é possível identificar o aspecto transacional nos mesmos. A posição sustentada por Hobbs (2018) é a da valorização do arquivo pessoal per se, nas dimensões que informam sobre aspectos da vida, da personalidade e das subjetividades de seus autores.

A determinação do valor de um arquivo pessoal parece ser, portanto, um dos pontos nevrálgicos para o debate teórico e a prática arquivista. Contribuindo nesta discussão, a arquivista canadense Barbara L. Craig13 (2018), através do texto O arquivista como planejador e poeta: reflexões sobre avaliação para aquisição, tece uma reflexão sobre as grandes questões técnicas e filosóficas em torno da aquisição de fundos pessoais para arquivos. Ao dizer que “não há como formular uma definição de relevância que satisfaça a todos” (CRAIG, 2018, p. 280), a autora defende a necessidade do aprofundamento conceitual para operar com os documentos de indivíduos ou aqueles não relacionados a organizações formais.

Um exemplo desta problemática dos arquivos pessoais comparece à coletânea no texto Alain Robbe-Grillet e seu arquivo, da escritora francesa Emmanuelle Lambert14 (2018). Trata-se de um testemunho da relação da autora com a obra e o arquivo do escritor e cineasta francês Robbe-Grillete, visto ter participado da organização de uma exposição, um livro e um catálogo a partir do referido conjunto documental. Tal trabalho foi realizado com Robbe-Grillet ainda em vida e com sua participação ativa, tanto naquilo que foi escolhido para guardar como suas intervenções no arranjo e catalogação do material. A autora, por meio da descrição deste intrincado processo, remete às dificuldades adicionais e às multifatorialidades da salvaguarda e do trabalho com arquivos pessoais, seja pelas compreensíveis interferências daqueles a quem o arquivo pertence ou pertenceu, seja na relação com os herdeiros, importantes questões as quais o arquivista e o pesquisador estão sujeitos e que necessitam ser contempladas em suas reflexões.

Na mesma direção, o ensaio Novas considerações sobre ordem original e documentos pessoais, da arquivista norte-americana Jennifer Meehan15 (2018) aponta para uma certa imponderabilidade do trabalho com conjuntos de documentos pessoais. A autora defende uma abertura da teoria e metodologia arquivísticas, por meio da qual se busque identificar as circunstâncias variáveis que envolvem um fundo, capazes de indicar os diferentes campos de atividades dos quais os documentos participaram. Concebe, assim, a ordem original não como um fim a ser alcançado, mas um meio de realizar o trabalho de arranjo e descrição.

Encerrando a coletânea, o arquivista canadense Rob Fischer16 (2018) reforça o entendimento sobre as carências na teorização dos arquivos pessoais e privados. Tece sua reflexão a partir das contribuições de Jenkinson e Schellenberg, considerados os fundadores do pensamento arquivístico inglês. No artigo Por uma teoria dos arquivos privados: revendo os escritos fundadores de Jenkinson e Schellenberg, Fischer (2018) busca identificar naqueles autores, a despeito de suas posições conservadoras, as bases que teriam dado possibilidade para as posteriores construções teóricas em torno dos arquivos pessoais. As grandes questões deste debate giram em torno da aplicação dos princípios arquivísticos tradicionais a este tipo de documentação. Neste sentido, Fischer (2018) aponta como significativa a emergência da noção de “valor patrimonial”, formalmente adotada pela Biblioteca e Arquivo Nacional do Canadá (LAC), valorizando as dimensões da memória, da pesquisa e do significado cultural.

Ao chegar ao fim dos treze textos que compõem a obra, o leitor perceberá que o sugestivo título Pensar os arquivos é ao mesmo tempo convite e fio condutor das reflexões críticas em torno das representações mais tradicionais sobre os arquivos. Despidos do véu da neutralidade, estes podem ser repensados a partir das dimensões arbitrárias que presidem a sua própria constituição.

A coletânea traduz, deste modo, o quadro de um novo estatuto epistemológico do arquivo, não apenas como ferramenta, mas objeto de pesquisa. O resultado: uma leitura que interessa não somente aos estudantes e profissionais da Arquivologia, mas também, como as próprias organizadoras anunciam na apresentação da obra, a todos aqueles que se interessam pela Sociologia da memória, pela epistemologia da História e pela Antropologia dos arquivos. Uma verdadeira educação do olhar para as muitas e potentes questões que atravessam os conjuntos documentais a partir dos quais produzimos conhecimento.

Notas

1 Luciana Heymann é doutora em Sociologia (Iuperj), sendo os arquivos e a memória seus temas de pesquisa. Professora do PPG em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde, da Fiocruz, e do PPG em Gestão de Documentos e Arquivo, da Unirio.

2 Letícia Nedel é doutora em História (UnB) e sua produção acadêmica dialoga com as áreas de museus e arquivos. É professora adjunta no Departamento de História e no Programa de Pósgraduação em História Cultural da UFSC.

3 Usando a consagrada expressão de Michel de Certeau (2013) para a revisão bibliográfica.

4 Falecido em 2014, Terry Cook foi doutor em História, professor do programa de Estudos de Arquivologia do Departamento de História da Universidade de Manitoba. Entre 1975 e 1998 trabalhou no Arquivo Nacional do Canadá. Foi ainda editor-chefe da revista Archivaria, editor da Associação Histórica Canadense de Documentos Históricos e da série Historical Booklets.

5 Brien Brothman é doutor pela Universidade de Laval. Trabalhou no Arquivo Nacional do Canadá até 1995, quando assumiu o cargo de especialista em política de documentos eletrônicos no Rhode Island State Archives and Public Records.

6 Étienne Anheim é doutor em História e diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Foi membro da Escola Francesa de Roma entre 2002 e 2004 e professor da Universidade de Versailles/Saint-Quentin-em-Yveline entre 2006 e 2016.

7 Tom Nesmith é doutor em História, professor do Departamento de História da Universidade de Monitoba, Canadá, onde fundou o Programa de Pós-Graduação em Estudos de Arquivologia. Atuou ainda como arquivista no Public Archives of Canada e foi editor da revista Archivaria.

8 Elisabeth Kaplan é arquivista e codiretora da University Digital Conservancy da Universidade de Minnesota, nos EUA.

9 Eric Katelaar é professor emérito da Universidade de Amsterdã, onde foi professor do Departamento de Estudos de Mídia (Arquivos e Informação) entre 1997 e 2009. Entre 2003 e 2008 foi professor honorário na Universidade de Monash, na Austrália. Entre 1989 e 1997 atuou como arquivista do Arquivo Geral do Estado da Holanda.

10 Ann Laura Stoler é professora de Antropologia e estudos históricos na New School for Social Research, em Nova York.

11 Sue Mckemmish é Pró-Reitora de Formação em Pesquisa da Faculdade de Tecnologia da Informação da Universidade de Monasch, Austrália, onde também dirige o Center for Organisational and Social Informatics e os programas de Pós-Graduação em documentos e arquivos. Trabalhou por 15 anos no Arquivo Nacional da Austrália.

12 Catherine Hobbs é pesquisadora associada da Universidade de Trent, no Canadá. Responsável pelos arquivos de literatura anglófona na Biblioteca e Arquivo Nacional do Canadá. Coordenadora da seção especial sobre arquivos pessoais da Associação Canadense de Arquivistas.

13 Barbara L. Craig é professora emérita da Faculdade de Informação da Universidade de York. Já foi editora chefe da revista Archivaria.

14 Emmanuelle Lambert é uma romancista francesa e doutora em letras. Foi colaboradora do Institut Mémories de l’Édition Contemporaine (IMEC).

15 Jennifer Meehan é diretora associada da Stuart A. Rose Manuscript, Archives, & Rare Book Library na Universidade de Emory, EUA.

16 Rob Fischer é arquivista sênior da seção de arquivos da Biblioteca e Arquivo Nacional do Canadá.

Referências

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Resenhista

Marcos Luiz Hinterholz – Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É Licenciado em História pelo Centro Universitário Metodista do Instituto Porto Alegre (IPA). E-mail: marcos.hinterholz@ufrgs.br  http://orcid.org/0000-0002-5962-3187


Referências desta Resenha

HEYMANN, Luciana; NEDEL, Letícia (Orgs.). Pensar os arquivos: uma antologia. Trad. Luiz Alberto Monjardim de Calazans Barradas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. Resenha de: HINTERHOLZ, Marcos Luiz. História da Educação. Santa Maria, v.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

Itamar Freitas

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