A cidade, na sua forma contemporânea, apresenta uma série de desafios à pesquisa histórica. Primeiramente pelas múltiplas e diversas realidades que ela concentra, densamente, em um mesmo recorte geográfico, mas também pelas complexas temporalidades que a atravessam, pelo seu modo veloz de expansão e transformação, marcado por uma sucessão ininterrupta de obras, demolições, reformas e remoções. O primeiro olhar direcionado ao centro de uma grande metrópole, neste início de século XXI, avista um amontoado de edifícios imponentes, andaimes e guindastes. Uma paisagem de concreto, luzes e vidraças que, como diria Walter Benjamin, parece em certos aspectos “já ser uma ruína” antes mesmo de começar a desmoronar (BENJAMIN, 2013, p. 195).
No entanto, um olhar mais atento, permitido pelo percurso lento do caminhante em qualquer território urbano, nota que tal paisagem abriga uma complexa e instigante teia de relações sociais. A reflexão sobre a história urbana construída pelas múltiplas vozes que compõem este dossiê temático da Revista Temporalidades nos convida justamente a lançar novos olhares sobre um território múltiplo e potente, que é muito mais que o recinto de um perpétuo colapso social, econômico e sanitário. A problemática proposta pelo dossiê – que poderia ser resumida desta forma: o que a história tem a nos dizer sobre a cidade? – dificilmente poderia ser levantada em melhor momento, neste ano específico que atravessamos. No momento exato em que os textos da presente publicação estão sendo reunidos e revisados, o ritmo frenético da vida urbana encontra-se parcialmente suspenso devido ao rápido alastramento de uma pandemia que atinge, em primeiro lugar, as grandes megalópoles do mundo. Em todas as grandes capitais mundiais atingidas, de São Paulo a Londres, passando pela Cidade do México e Nova Iorque, a reorganização da vida social poderia ser resumida desta maneira: parte significativa da população urbana – composta principalmente por trabalhadores da saúde, de comércios de alimentação ou dos chamados serviços de aplicativos, em sua maior parte precarizados – encontra-se diariamente exposta à possibilidade de contrair um vírus com alto teor de propagação – gerando uma doença conhecida como COVID-19 – para garantir a proteção e alimentação de outra parte dos habitantes da cidade, que, por sua vez, segue um estrito regime de confinamento como forma de evitar a propagação da doença. Devemos ainda mencionar outra parte da população que se encontra mais diretamente exposta, não necessariamente pela natureza do seu trabalho, mas por ser impossibilitada de estar confinada, vivendo na rua ou em habitações promíscuas ou vulneráveis.
Perante o caráter súbito de alastramento da epidemia, o colapso da grande cidade globalizada enquanto modo dominante de vida em sociedade estaria se mostrando mais uma vez como iminente, segundo alguns, sinalizando uma possível ruptura de tempo histórico (ZIBECHI, 2020). Outros, no entanto, apontam para a resiliência do capitalismo contemporâneo, que saberia se reorganizar e se reinventar quando passam as crises que ele mesmo provoca, como comprova a história recente. Alguns historiadores aproveitam ainda para relembrar a recorrência das pandemias e crises sanitárias ao longo da história urbana, cujos possíveis exemplos não se limitam à época contemporânea. Ao olhar para o passado, lembremos da grande peste que assolou Atenas em 429 antes de Cristo e, posteriormente, os grandes portos da Itália no século XIV. Pensemos ainda nas epidemias de cólera, que, no meio do século XIX, atingiram Londres ou Rio de Janeiro, sendo esta cidade ainda abalada com um surto de febre amarela no mesmo período. Em todos esses episódios, as epidemias inspiraram posteriores políticas de reorganização e transformação desses centros urbanos, enquanto espaço de vida mas também de concentração do poder e da produção econômica.
Inclusive na última cidade citada. Perante o surto de febre amarela de 1850, a vida urbana do Rio de Janeiro foi fortemente impactada, sendo marcada pela interrupção momentânea da economia, o fechamento dos comércios e a fuga de grande parte da elite da capital para a serra de Petrópolis, em busca de um local arejado e livre de “miasmas”, para aguardar o fim da calamidade. Poucos anos depois, em 1855, a cidade enfrenta desta vez uma epidemia de cólera. A maior parte das vítimas da doença se encontram entre os escravos e os trabalhadores pobres do porto, pelo fato de estarem em contato diário com os barcos de comércio chegando de terras estrangeiras, mas também por viverem em condições insalubres. Ao longo dessa segunda onda epidêmica, dois terços das vítimas foram negras ou pardas (EL KAREH, 2001; KODAMA, 2012). Tais epidemias inspiraram as primeiras iniciativas contundentes de racionalização do espaço urbano no país, que se desdobraram décadas depois nas reformas urbanas modernistas que transformaram a cidade, então capital da nova República, no início do século XX.
No entanto, mais de um século e meio depois, após sucessivas reformas urbanas modernistas realizadas no mundo todo, vemos que muitas das contradições estruturais da grande cidade se mantiveram, a começar pelo desequilíbrio na relação entre o modo de urbanização adotado e a presença secular dos elementos que compõem o ambiente natural ocupado. Se os efeitos da destruição dos ecossistemas, causados pelo modelo hegemônico de ocupação do solo, se tornam cada vez mais visíveis e irreversíveis nos dias de hoje, estes são fruto de escolhas, processos e conflitos históricos. Neste dossiê, uma reflexão sobre o tema nos é sugerida pelo historiador Yuri Mello Mesquita, ao longo de uma instigante entrevista. Ao explorar a relação entre história urbana e ambiental, ele destaca a importância de articular esses dois campos de pesquisa, para entendermos mais profundamente a relação que vincula o destino dos cidadãos urbanos “com os rios, com o lixo que produzem, com a fauna que se adaptou à vida nas cidades, com árvores das praças, parques e ruas (em) que transitam diariamente”. Uma relação que o ideal moderno de urbanização busca muitas vezes invisibilizar – seja ao desprezá-la ou enquadrá-la de forma tecnicista – e que cabe à pesquisa histórica evidenciar e problematizar.
Por outro lado, a sobre-exposição de determinadas zonas urbanas às sucessivas crises ambientais, econômicas ou sanitárias que atingem a cidade como um todo constitui um aspecto histórico que deve ser problematizado. A cartografia urbana da atual pandemia e de seus efeitos traz alguns indícios dessa continuidade histórica, relembrando o caráter altamente desigual do modelo de expansão urbana adotado nos dois últimos séculos na maior parte do mundo. Citando aqui apenas o exemplo da maior metrópole do hemisfério sul, a cidade de São Paulo vem demonstrando no momento atual a nítida territorialização das desigualdades sociais em sua região metropolitana. Em um mapa divulgado pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, podemos constatar a maior concentração de mortalidade ligada a pandemia de COVID-19 na Grande São Paulo nas áreas periféricas mais pobres da cidade [1]. Segundo outro estudo, divulgado pelo Núcleo de Operações e Inteligência em saúde da PUC-Rio, os pacientes negros ou pardos que não tiverem acesso à escolaridade têm 4 vezes mais chances de serem vítimas da atual epidemia [2].
A manutenção histórica de tais contradições constitui uma das reflexões cruciais levantada por este dossiê, a começar pela entrevista do sociólogo Tiaraju Pablo d’Andrea, professor na UNIFESP e coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos). Ele nos relembra que “a história da periferia urbana têm sido a história de sua luta”, não só por melhores condições de vida e por direitos na cidade, mas também “por visibilidade”. Nesse aspecto, ele destaca a necessária consolidação de uma nova “epistemologia” nas ciências humanas, baseada na perspectiva das “sujeitas e sujeitos periféricos”. Tal deslocamento do olhar poderia nos permitir analisar de forma profunda e crítica o processo histórico de “reprodução das desigualdades”, que marca a evolução da cidade contemporânea.
Por trás de conceitos atualmente debatidos publicamente, como imunidade de grupo e proteção da vida, encontramos um semelhante ideal de “segurança” construído homogeneamente como conceito estruturante da cidade contemporânea – especialmente no Brasil, e que não se aplica de forma equânime de uma zona urbana para outra. Tal modo de divisão, “diferenciação” e “hierarquização” dos espaços (MBEMBE, 2015, p. 45), que caracteriza doravante não apenas a cidade como o conjunto do território, se materializa nas inúmeras barreiras – físicas e simbólicas – e dispositivos de vigilância que atravessam e moldam nossa realidade urbana. Nesse contexto, a existência de bairros periféricos ou guetos – sejam estes favelas, townships ou banlieues, de acordo com o local – materializa a “não cidade” evocada por Tiaraju d’Andrea, território exposto aos efeitos das crises sistêmicas e à violência do Estado, que garante a proteção da cidade formal, habitada pelas classes média e média alta das grandes metrópoles do mundo.
Tal utopia de separação | proteção absoluta de determinadas zonas urbanas revela seu caráter extremo – como também vulnerável – ao longo do texto Entre muros, a cidadela, de Suelen Caldas de Sousa Simão, publicado neste dossiê. No artigo a autora analisa, pelas lentes da fonte cinematográfica, o modelo de “urbanização privada” representado pelos condomínios fechados, um modelo urbano pautado pela “(in)diferença em relação aos outros”, que se equipara a uma forma de “morte da cidade”.
Mas essa dimensão estruturalmente segregada e excludente da cidade contemporânea não se manifesta apenas na materialidade dos ambientes construídos, como também no campo simbólico e imaterial do discurso. O olhar historiográfico, nesse aspecto, desempenha um importante papel em nos ajudar a identificar os muros invisíveis que se ergueram ao longo do tempo entre grupos de habitantes na cidade. Este é um dos interesses do trabalho de Vítor Henrique Guimarães Lima, intitulado Do “espetáculo constrangedor” ao “rapa”, sobre a construção da figura do camelô no imaginário social da burguesia carioca.
Ao longo do dossiê, a consolidação de tal cidade segregada e dividida se apresenta como historicamente pontuada por episódios de conflitos e resistências: uma luta pelo espaço onde muitos aspectos da vida estão interligados, sejam estes sociais, econômicos, culturais ou ambientais. Vivian Prado Pereira e Eder Jurandir Carneiro, em seu trabalho, analisam a interligação dos conflitos sociais, urbanos e socioambientais no processo de formação da periferia de São João Del Rei. Trazendo outro exemplo da história urbana de Minas Gerais, o texto de Renata Cristina Silva, Equilíbrio, ação e oração, resgata a luta histórica dos moradores de Contagem, na década de 1970, contra a poluição atmosférica causada pelas fábricas da Cidade Industrial de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, lutas que se encontravam parcialmente enraizadas em um vasto movimento de moradores na região.
As lutas periféricas daquela época foram, em certos aspectos, pioneiras ao denunciar publicamente a degradação do meio-ambiente, causada pelo modelo de expansão urbana adotado, do impulso industrial das políticas juscelistas do pós-guerra ao “desenvolvimentismo autoritário” conduzido pela Ditadura Militar, sobretudo na década de 1970 (PRADO, 2011). A pesquisa histórica sobre o tema nos ajuda justamente a entender como as múltiplas contradições que atravessam a cidade que conhecemos são frutos de processos e escolhas históricas específicos. Tal reflexão vai na contramão de uma narrativa, comum no discurso da mídia atual, que costuma imputar a crise urbana ao desinteresse dos poderes públicos ou a “uma falta de planejamento”[3]. Pelo contrário, a pesquisa em história urbana nos mostra como as carências da cidade contemporânea que habitamos são também resultado de décadas de planejamento, marcado por uma hegemonia de interesses privados, ou de uma elite econômica ou política.
Esse aspecto é analisado com minúcia no artigo de Pedro Sousa da Silva, que reflete acerca das obras públicas e planos urbanísticos implementados na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1960, nitidamente influenciados por interesses privados. A dimensão socioeconômica de um crescimento urbano que raramente se deu de forma neutra ou espontânea também pode ser observada em núcleos urbanos de menor escala. Em seu trabalho sobre a constituição histórica da morfologia urbana de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Otávio Becker Neto analisa a morfogênese da cidade como fruto de uma complexa teia de relações sociais, sobre a qual influem diversos fatores, dentre os quais a “articulação de grupos, em sua maioria de vinculação parental e política, que se mobilizaram para a consolidação de interesses particulares permitindo aquisição e concentração de lotes urbanos ao longo do tempo”.
Por sua vez, os grupos sociais tradicionalmente excluídos dos espaços de decisão política também desenvolveram historicamente formas de adaptar a cidade às suas necessidades. Produziram dessa forma modos próprios de ocupação e produção do espaço urbano que se afirmam na história social urbana como dinâmicas de resistência. Evidenciado pelas lutas da Cidade industrial de Contagem, evocadas acima, tal aspecto também é analisado no texto de Aiano Bemfica Mineiro sobre as políticas habitacionais e a luta das ocupações urbanas na região metropolitana de Belo Horizonte e no Brasil. O texto discute um tema crucial sobre o qual a historiografia tangencia, sendo este os modos antagônicos e não-hegemônicos de habitar o território urbano, que permeiam a história urbana recente.
Se a cidade é moldada historicamente pelo conflito social, podemos ver ao longo do dossiê esse embate histórico se desdobrar tanto no campo do território quanto no campo da memória, vendo como ambos possuem dimensões materiais e imateriais e se encontram interligados. Pelo fato de ocupar uma centralidade não apenas geográfica, mas também política e econômica em determinada região, muitas cidades se tornam um intenso palco de conflitos simbólicos e disputas memoriais que influíram em seu processo histórico de evolução. Esse aspecto se manifesta em cenários urbanos distintos, afastados no tempo e no espaço, seja na Roma do século XVIII, analisada no trabalho de Luciano Cesar da Costa enquanto “cidade eterna”, cuja urbanidade reverbera o eco de conflitos e interesses políticos de dimensão internacional. Observamos semelhantes contendas simbólicas na cidade de Ouro Preto, capital da então província de Minas Gerais, no século XIX, descrita no texto de Jussara Duarte Soares Dias, que evidencia as disputas políticas envolvidas no processo de patrimonialização da cidade.
De um texto a outro, vemos como o conflito pela memória se concretiza na materialidade urbana, deixando suas marcas na produção e reprodução do espaço. Nesse aspecto, as pesquisas históricas apresentadas nos ajudam a perceber como as decisões que prevalecem na preservação e valorização – ou no abandono – de determinado ambiente construído também correspondem a interesses políticos ou econômicos específicos. Este constitui um dos interesses do texto de Caroline Hädrich, sobre o que ela qualifica como “processo de invisibilidade” em torno do Palácio do Comércio de Porto Alegre. O texto de Yuri Leonardo Rosa Stelmach, intitulado Das ruas ao memorial nos leva a pensar sobre o papel da educação e da pesquisa, ao buscar evidenciar os silêncios e as ausências nas narrativas oficiais de valorização patrimonial.
Os processos de exclusão e segregação física do espaço urbano evocados mais acima têm por corolário um processo de apagamento e silenciamento da memória e identidade de determinados grupos sociais ou partes da cidade. Tal aspecto é analisado com precisão no texto de Dalila Varela Singulane sobre a formação histórica do Patrimônio Cultural material de Juiz de Fora, em Minas Gerais, marcado pela invisibilização da memória da população periférica e afrodescendente, em detrimento da cultura da elite local.
Em alguns locais, dito silenciamento reflete uma vontade deliberada de apagar determinados aspectos da história, deixando abertas na memória coletiva cicatrizes que subsistam na vida política contemporânea. Tal situação ocorre, por exemplo, em relação aos crimes de Estado praticados pelos regimes militares ao longo das ditaduras latino-americanas, cujo ciclo de implantação – a começar pelo Golpe de 1964 no Brasil – representa uma ruptura histórica ainda não totalmente encerrada, como lembrado por Paulo Arantes (2014, p. 282). Esse fenômeno histórico, como apontado pelo trabalho de Ana Carolina Miranda da Silva e Ana Paula Poll, tem seus principais lugares de memória localizados nas grandes cidades sul-americanas, sendo muitos deles invisibilizados. As autoras se baseiam no conceito de “enquadramento da memória”, proposto pelo sociólogo Michael Pollak, para analisar o processo de silenciamento das lembranças carregadas por lugares que serviram como locais de tortura durante a Ditadura Militar brasileira, na cidade do Rio de Janeiro.
As controvérsias que atravessam a memória urbana se tornam legíveis à medida que consideramos a cidade como fonte histórica a ser percorrida e decifrada. Perante o olhar atento do historiador, a construção de uma monumentalidade em torno de algum edifício ou o agenciamento de uma centralidade urbana classificada como patrimônio nos fornece informações preciosas sobre determinados projetos históricos e suas intencionalidades. Tais intenções e interesses podem estar vinculados a aspectos socioeconômicos, como no caso da ponte Maurício de Nassau em Recife, analisada no trabalho de Rafael Arruda Silva. Em seu artigo, o autor reflete sobre os “usos do passado” associados a determinada infraestrutura urbana, para além de seu caráter aparentemente neutro e funcional, a serviço de um projeto histórico datado de “modernização”.
A valorização de determinado patrimônio urbano também pode participar da construção de uma memória política, vinculada por exemplo a uma narrativa nacionalista, como observamos no texto de Mariana Pastana sobre o processo de revestimento em bronze do monumento aos heróis de Laguna e Dourados, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. Em outros termos, a decisão de monumentalizar um aspecto histórico da cidade pode nos livrar preciosas informações sobre as intenções discursivas da elite política e urbana de certa época, como lembrado no texto de Audrey Franciny Barbosa sobre a constituição do Álbum de Ponta Grossa, na década de 1930, analisado pela autora como parte da consolidação de uma memória hegemônica sobre a cidade paranaense.
Ao lançar mão da fonte oral e dos métodos da investigação sociológica, algumas pesquisas focadas no tempo presente, evidenciam a disparidade que pode existir entre uma narrativa de patrimonialização urbana construída de cima para baixo, em relação à realidade e aos modos de vida dos habitantes do território afetado. Tal elemento ressai da pesquisa de Márcio Mota Pereira, sobre “a visão dos moradores do bairro Lagoinha, em Belo Horizonte, em relação ao processo de tombamento histórico e cultural da região”. Tal perspectiva também é adotada por Matheus Cássio Blach, Mauro Augusto Dourado Menezes, Leandro Eustáquio Gomes, Yara Araújo Magabi, Luciane da Silva Queroga, Rebeca Nunes de Mel e Silvio Márcio Freire de Alencar Filho que nos convidam a uma reflexão interdisciplinar sobre o Centro Histórico de Manaus e o “processo de normatização” decorrente do tombamento do mesmo. Os autores apontam para o “movimento dialético” que existe entre o que é definido “de cima” como patrimônio cultural, relevante a ser valorizado na cidade, e a forma pela qual o espaço urbano é inevitavelmente “apropriado” ou “subvertido” pelos “de baixo”, que habitam ou circulam nele, “revelando também, os contra usos do patrimônio cultural”.
Tais reflexões sinalizam a importância de uma discussão crítica sobre o sentido e a função social da patrimonialização do ambiente habitado, aspecto debatido pelo trabalho de Luciana Massami Inoue e Elisabeth Mie Arakaki sobre a relação entre paisagem e instalações ferroviárias nas cidades de Presidente Prudente e Rincão, no Estado de São Paulo. As autoras nos lembram como o patrimônio, para ser pensado no plural e como legado efetivo de toda comunidade, não pode representar um “engessamento histórico da paisagem”, mas deve abarcar de fato a realidade ampla do local – no seu aspecto social, cultural e ambiental.
Tal reflexão crítica também é proposta por Matheus Cássio Blach, que reflete sobre a relação entre ambiente construído e paisagem natural a partir do processo de preservação do centro histórico de Tiradentes, em Minas Gerais. Em sua pesquisa, ele nos lembra a que ponto as noções de patrimônio e memória são historicamente dinâmicas, evoluindo necessariamente com o passar do tempo, conjuntamente aos pensamentos e às mentalidades. O autor reforça a necessária inserção da dimensão ambiental na concepção de patrimônio que, ao privilegiar muitas vezes o ambiente construído, esquece que a paisagem é fruto de “uma apropriação | transformação humana de condicionantes naturais que possibilitaram o desenvolvimento da vida naquele lugar” e, portanto, carregada de uma memória social singular, vinculada à cultura das populações que a cercam.
Outros trabalhos que compõem este dossiê ainda apontam para uma necessária reapropriação dos conceitos e discussões vinculados ao patrimônio urbano por parte dos educadores, mas também, e sobretudo, por parte da população que habita a cidade. A discussão sobre a memória é permeada por disputas com direcionamentos e dimensões múltiplas, onde dinâmicas diversas de ressignificação e resistência culturais podem se concretizar. O trabalho de historiador e educador, nesse sentido, é central. Ao pensar a educação patrimonial enquanto ferramenta de afirmação política de grupos sociais historicamente oprimidos, o trabalho de Ana Carolina Martinez sobre a educação patrimonial e seu papel na “formulação da representatividade feminina no processo educativo”, nos convida a pensar a consolidação e transmissão de determinado patrimônio não como perpetuação de um status-quo cultural mas como subversão e reformulação de narrativas culturais hegemônicas.
Ampliar o debate sobre o que cabe e pode caber no conceito de patrimônio histórico-cultural nos leva também a considerar todas as dimensões imateriais constitutivas das (contra)culturas urbanas, tal como proposto por Gustavo Silva de Moura, em seu trabalho sobre a obra do compositor musical Teófilo Lima, a meio caminho entre influências locais e globais, como constituinte do patrimônio cultural da cidade de Parnaíba, no Piauí.
Seguindo semelhante reflexão, outros trabalhos ainda nos sugerem uma variedade de ferramentas que permitem estender o conceito de memória e patrimônio, facilitando também a reapropriação do espaço urbano pelo conjunto daqueles que o habitam. É nesta proposta que se insere o trabalho de Edcarlos da Silva Araújo e Ana Carolina Araújo Martins, que descreve uma experiência urbana de conhecimento e exploração do patrimônio cultural na cidade de Sobral, no Ceará, ou ainda o texto de Natalia Vanessa Ramírez, sobre o desenvolvimento da noção de patrimônio cultural na cidade de Ibagué, na Colombia. Neste último texto, a autora aponta justamente para o modo como a reaproximação ativa e efetiva da comunidade acerca do patrimônio permitem “a consolidação de um passado comum a todas as pessoas”.
Ao longo da leitura deste dossiê, a cidade e a história urbana se desenham ao leitor não apenas enquanto bem comum a ser reivindicado, mas como um território a ser radicalmente reapropriado e reinventado por aqueles e aquelas que habitam e circulam nas cidades. Ao percorrer os múltiplos caminhos explorados e – oportunamente – deixados em aberto pelos trabalhos reunidos, entendemos como a construção da história urbana remete a um processo inevitavelmente coletivo, refletindo a natureza de seu objeto.
Ao se debruçar sobre as diferentes camadas de memória que existem em uma mesma cidade, a pesquisa em história urbana se aparenta ao ato de decifrar um palimpsesto, um texto histórico múltiplo e denso pela sobreposição de vozes, construções, modos de vida, conflitos e projetos políticos que o constituem. Os artigos deste dossiê têm o interesse de desatar alguns fios dessa teia complexa de memórias, experiências e disputas que atravessam a cidade, nos propondo temas de reflexão instigantes que apontam para a diversidade de perspectivas a partir das quais a história urbana pode (e deve) ser abordada.
Nota
3. A título de exemplo, podemos citar este artigo sobre o tema, produzido pela Companhia de Concessão de Rodovias e publicado no jornal G1 em julho de 2019, intitulado “Como o crescimento desordenado das grandes cidades afeta a mobilidade urbana”: (Disponível em: https: | / g1.globo.com | especial-publicitario | inovacao-emmovimento | ccr | noticia | 2019 | 07 | 05 | como-o-crescimento-desordenado-das-grandes-cidades-afeta-a-mobilidadeurbana.ghtml)
Referências
ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.
BENJAMIN, Walter. Paris, la capitale du XIXème siècle In: Sur le concept d’histoire, Paris: Payot & Rivages, 2013.
EL KAREH, Almir C. Histoire et quotidien. “Fièvres” et santépublique : L’annus horribilis àRio de Janeiro. In: Histoire, économie et société, 20e année, n°3. Les miroirs de la santé, p. 303- 319, 2001.
KODAMA, Kaori; PIMENTA, Tânia Salgado; BASTOS, Francisco Inácio; BELLIDO, Jaime Gregorio. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise preliminar. In: História, ciências, saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, supl. 1, p. 59-79, Dec. 2012 . Disponível em: https: | / dx.doi.org | 10.1590 | S0104-59702012000500005
MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015
PRADO, Luiz Carlos Delorme. O desenvolvimentismo autoritário de 1968 a 1980. In: BIELSCHOWSKY. Ricardo (Org.). O desenvolvimento econômico brasileiro e a caixa: Palestras. Rio de Janeiro: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento; Caixa Econômica Federal, p. 23-34, 2011.
ZIBECHI, Raúl. Pandemia e colapso civilizatório. In: Revista IHU On-Line. Publicado em 14 de abril de 2020. Disponível em http: | / www.ihu.unisinos.br | 78-noticias | 598001-pandemia-ecolapso-civilizatorio-artigo-de-raul-zibechi
Philippe Urvoy – Doutorando em História Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: ph.urvoy@gmail.com
URVOY, Philippe. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.1, Jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]
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