Península de recelos – MARCOS (RH-USP)

MARTÍN MARCOS, David. Península de recelos. Portugal y España, 1668-1715. Madri: Marcial Pons, 2014. Resenha de: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Revista de História (São Paulo) n.173 São Paulo July/Dec. 2015.Aug 25, 2015.

Após a ênfase das historiografias nacionalistas sobre os conflitos entre os estados modernos europeus, bem como o seu reforço pelos regimes autoritários vividos na península ibérica do século passado, nas últimas décadas, os temas da união das coroas e da Restauração portuguesa foram revistos por novos estudos.2 Mas os contatos entre Portugal e Espanha depois da chancela formal da independência lusa em 1668-1669 careciam de um maior aprofundamento. A lacuna foi parcialmente preenchida por Rafael Valladares, ao priorizar a perspectiva da monarquia hispânica para tratar da rebelión de Portugal.3 Agora, pela pena do jovem historiador David Martín Marcos, vê-se o ampliar da conjuntura abarcada e o formular de um novo nexo interpretativo em torno do reconhecimento paulatino da secessão portuguesa, consolidado pelos países ibéricos e potências europeias apenas no tratado de Utrecht.

No entanto, Martín Marcos trata dessas relações enfatizando os temores de Lisboa, cruzando-os a outros registros vindos de Madri, Paris, Londres, Viena, Haia e Turim. Receios de reanexar-se Portugal, pois a atenção dos embaixadores lusos ao descumprimento cerimonial, flagrando desrespeito espanhol aos escudos da soberania portuguesa, era uma constante. Receios sobre as reivindicações dos vassalos dos Habsburgo ou Bragança com terras no país vizinho. E acerca das fronteiras peninsular e ultramarina – querelas que seriam reincidentes na Guerra de Sucessão da Espanha. Entre os fins de duas guerras, David Martín narra um contexto outrora nebuloso sobre o qual as histórias e historiografias ibéricas andavam separadas. A secção foi fruto da própria propaganda lusa forjada após 1640 e do nacionalismo característico de vários trabalhos tradicionais. A narrativa é mesmo uma forte marca do livro, no qual o autor prefere não descrever e/ou comentar a maioria das fontes. Todavia, os documentos são referenciados nas notas e interpretados no texto principal, ao incorporar-se os seus sentidos ao enredo diacrônico tecido.

Pelos fios soltos deixados pelas dinastias de Bragança e Habsburgo no tratado de 1668, Martín Marcos aborda a difícil conjuntura ibérica, com o esgotamento do erário público, das tropas e o descontentamento das populações pelo longo conflito. Em Portugal, o imbróglio envolvendo os filhos de d. João IV indicava a fragilidade do novo poder régio. Após a queda de Castelo Melhor, d. Pedro deveria firmar-se como regente. Embora buscasse a neutralidade no plano externo, internamente sobreviviam os partidários de d. Afonso e da reintegração à monarquia hispânica, fazendo com que as tropas ficassem em alerta na fronteira e a urbes lisboeta em paranoia. Na Espanha, apesar da supressão do Conselho de Portugal, deixava-se aberta a chance de reintegrar o país vizinho. Mas, ali, os nobres lusos fiéis aos Habsburgo pressionavam para proteger seus patrimônios em Portugal, na verdade ambicionando pensões e bens na nova pátria. Em Madri ou Lisboa, os embaixadores tendiam a ser tratados de modo hostil. E a diplomacia francesa valia-se dessas tensões para aproximar-se de Portugal. Martín Marcos perscruta assim um cenário mais complexo de afirmação da identidade nacional lusa sob a égide Bragança – algo excessivamente resumido em vários trabalhos pelo jargão explicativo da aliança inglesa, ratificada no propalado casamento de Catarina de Bragança com Carlos Stuart. Além dos insumos documentais oriundos de diversos arquivos europeus, o historiador vale-se da recente internacionalização da historiografia lusa, dos estudos de história diplomática e das biografias em voga sobre príncipes e regentes.4

Entretanto, os embaixadores lusos e espanhóis em Madri e Lisboa protagonizam o primeiro capítulo do livro. Suas performances foram decisivas nas regências de Pedro de Bragança e Mariana de Áustria, e também no reinado de Carlos II – um tempo de fidelidades recentes e oscilantes. Por exemplo, o conde de Miranda e o marquês de Gouveia, incertos no reclame de bens de portugueses na Espanha, foram mais atentos à prática do correto protocolo; já o espanhol conde de Humanes implicou-se na conspiração que planejava libertar d. Afonso VI em 1673, sendo por isso removido do cargo. Os franceses valiam-se dessa “calma tensa” para propor acordos com Portugal, com apoios internos importantes, mormente da princesa d. Maria Francisca de Saboia e do duque de Cadaval. Porém, na Espanha, fatos como a ascensão de Juan José de Áustria e o casamento de Carlos II alteravam frequentemente o quadro. A fundação de Sacramento era o espelho ultramarino dessas tensões ibéricas, chegando a provocar preparativos de guerra no Alentejo.

Entre o reinado de d. Pedro II e a morte de Carlos II, o segundo capítulo centra-se nas tratativas de casamentos e mortes de príncipes como elementos propulsores de reviravoltas políticas. A documentação de Turim enriquece a análise do plano frustrado de d. Maria Francisca para casar a infanta Isabel de Bragança com seu primo, o duque saboiano. Sucedem-se as mortes de d. Afonso, da própria rainha e o novo casamento de Pedro II, indicando uma aproximação com Madri. Se na Espanha havia tensões com o frágil reinado de Carlos II, em Portugal, vários clérigos, soldados e fidalgos eram favoráveis à união. Mas d. Pedro mantinha-se neutro, receando contrariar Paris ou outro poder. No ambiente tenso dos reinos europeus e no ultramar, David Martín analisa os arranjos diplomáticos e tratados de partições entre Londres, Viena, Paris e Haia, que adiantavam o problema sucessório espanhol. E evidencia o memorial então divulgado sobre os pretensos direitos do rei Bragança.5 No entender do embaixador Cunha Brochado, recordar que d. Pedro II era hispânico e podia herdar o trono poderia trazer compensações futuras. Mas havia controvérsias sobre a conveniência do partido Bourbon tomado por d. Pedro.

O terceiro capítulo trata da Guerra de Sucessão e das negociações de Utrecht. No teatro das embaixadas em Lisboa, a inépcia do espanhol Capecelatro contrastava com a argúcia dos Methuen, pai e filho. Martín Marcos vale-se da revisão historiográfica sobre o célebre tratado6 e de escritos como o do futuro conselheiro ultramarino António Rodrigues da Costa, doravante alarmado com os impactos da guerra na América portuguesa. E, pelas cartas diplomáticas, detalha a oscilação lusa que culminaria na nova aliança em prol de Carlos Habsburgo. O livro atinge o ápice ao narrar o desembarque do arquiduque austríaco no Tejo em 1704, a decoração festiva de propaganda e sua viagem a Madri em companhia de Pedro II, sublinhando o uso político da situação pelo rei português. Mais ao sul da nova base aliada na Catalunha, a fragorosa derrota na batalha de Almansa gerou críticas ao desempenho dos soldados lusos.7 Todavia, o apoio do Império a Portugal foi reforçado no casamento de d. João V com a irmã de José I – como se sabe, a morte deste imperador, abrindo o trono austríaco ao novo arquiduque Carlos, favoreceu o fim da guerra. Martín Marcos contextualiza então as querelas luso-hispânicas por questões de fronteira e territórios ultramarinos, pequenas no quadro de pressões maiores das grandes potências, como a reivindicação inglesa por Gibraltar. Em Utrecht, os hábeis Tarouca e Luís da Cunha esgrimiam a sua experiência política. Os acordos reservaram a Portugal concessões nas margens do Amazonas e Sacramento, mas as fronteiras ibéricas ficaram incólumes, como antes da secessão. Contudo, nesse “quase nada” de ganhos territoriais, David Martín sublinha o feito do reconhecimento real da soberania de Lisboa ao libertar-se do fantasma de Madri que, mesmo enfraquecida, ainda se comportava, após 1668, como sede de uma pretenciosa monarquia.

À maneira de um romance, no epílogo, David Martín Marcos reflexiona sobre as razões desse percurso singular: um simples duque sendo aclamado novo rei de Portugal era, com efeito, algo insólito para a Espanha, que tendeu a considerar a sublevação lusa uma mera questão interna; também a geografia corroborava essa visão, fazendo os portugueses participarem de uma monarquia plural e ao mesmo tempo castelhana. Mas isso também validava o argumento de uma Hispânia liderada por Lisboa, justamente no momento de afirmação diplomática da independência de Portugal. O jogo de forças maiores explica porque o tímido pleito de Pedro II não foi considerado. Ainda assim a ideia era plausível, pois os Bragança eram reis naturais de Portugal, em contraposição aos estrangeiros austríacos e franceses. Paradoxalmente, a consolidação de Portugal como reino autônomo, outrora favorecido com o enfrentamento intermitente franco-espanhol, ocorreu somente no fim desta contenda, com a entronização de Felipe V. Um reconhecimento em troca do fim da neutralidade lusa, postura usualmente adotada desde os primeiros tempos da Restauração. Doravante, as duas monarquias ibéricas seriam empurradas para os lados de Inglaterra ou França.

Portanto, sem afãs patrióticos, o historiador nascido e formado em Valhadolid – corte da velha Castela e próxima ao régio arquivo de Simancas – desloca o prisma do tempo para captar a península nas décadas seguintes à secessão ibérica, período sem dúvida menos glorioso para a monarquia espanhola. Fá-lo num estilo narrativo semelhante ao dos livros de Evaldo Cabral de Mello,8 com detalhes de escaramuças políticas e diplomáticas perscrutados nos arquivos europeus, não obstante a maior síntese empreendida pelo historiador espanhol. Entretanto, o olhar de Martín Marcos – diferentemente do ex-diplomata brasileiro, que sempre escreveu sobre Pernambuco – também viajou no espaço, ao privilegiar o estudo dos receios de Portugal, e não tanto de Espanha, no exato momento de sua afirmação enquanto reino ibérico livre e expressivo no exterior. Em suma, o prêmio ganho pela obra em sua casamater, que permitiu justamente a sua publicação, denota uma significativa ampliação e um despojamento dos horizontes acadêmicos “nacionais”, fruto das atuais políticas de fomento europeias. Sem receios, David Martín Marcos aproveitou bem a oportunidade de unir histórias e historiografias em torno de uma narrativa consistente e calibrada.

Referências

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2Os muitos estudos impedem uma remissão detalhada. Mencione-se, contudo, o interesse de historiadores provenientes de universidades espanholas sobre Portugal na monarquia hispânica e a restauração de sua independência, em suas dimensões política, religiosa e social, como de Fernando Bouza Álvarez, Rafael Valladares Ramirez, Federico Palomo del Barrio, Ana Isabel Lopes-Salazar Codes, Santiago Martínez Hernández e Antonio Terrasa Lozano.

3VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640-1680. Guerra, conflicto y poderes en la monarquía hispánica. Valhadolid: Junta de Castilla y León, 1998. Por razões editoriais, o livro foi publicado em Portugal com o título A independência de Portugal. Guerra e Restauração 1640-1680. Tradução de Pedro Cardim. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2006.

4Em especial as biografias de d. Pedro II que conjecturam sobre sua personalidade pública: LOURENÇO, Maria Paula Marçal. D. Pedro II. O Pacífico. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006; BRAGA, Paulo Drumond. Dom Pedro II. Uma biografia. Lisboa: Tribuna, 2010 e FARIA, Ana Maria Homem Leal de. D. Pedro II,o Pacífico. Dinastia de Bragança (1683-1706). Lisboa: QuidNovi, 2009. No entender do autor, esta última seria mais equilibrada por dar atenção aos elementos da difícil conjuntura internacional que incidiam no comportamento hesitante do príncipe regente e depois rei português, não o entendendo apenas como uma personagem manietada pela nobreza.

5Discurso político de hum gentil homem espanhol retirado da corte. A proposta que lhe fes hum ministro de Estado, do Conselho de Madrid, sobre á sucessão de Carlos Segundo, ao trono daquela Monarchia [1697], S. l., Academia das Ciências de Lisboa, série Azul, 121, fols. 107-122.

6A título de exemplo, CARDOSO, José Luís. Leitura e interpretação do tratado de Methuen: balanço histórico e historiográfico. In: VVAA. O tratado de Methuen (1703). Lisboa: Horizonte, 2002, p. 11-29.

7Para este capítulo são recrutados trabalhos de síntese como os de KAMEN, Henry. La Guerra de Sucesión en España (1700-1715). Barcelona: Grijalbo, 1974 e ALBAREDA, Joaquim. La Guerra de Sucesión de España (1700-1714). Barcelona: Crítica, 2010, e estudos sobre a participação portuguesa, como COSTA, Fernando Dores. A participação portuguesa na Guerra de Sucessão da Espanha: aspectos políticos. In: VVAA. O tratado de Methuen (1703). Lisboa: Horizonte, 2003, p. 71-96; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. A guerra de sucessão de Espanha. In: BARATA, Manuel Themudo & TEIXEIRA, Nuno Severiano (org.). Nova história militar de Portugal, vol. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004, p. 301-306 e CARDIM, Pedro. Portugal en la guerra por la sucesión de la monarquía española. In: GARCÍA GONZÁLEZ, Francisco (org.). La Guerra de Sucesión en España y la batalla de Almansa: Europa en la encrucijada. Madri: Sílex, 2009, p. 205-256. Vale lembrar que o autor possui sua tese doutoral publicada sobre a participação da Santa Sé na referida guerra. MARTÍN MARCOS, David. El papado y la Guerra de Sucesión española. Madri: Marcial Pons, 2011.

8A título de exemplo, MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. Nobres contra mascates. Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Ver também SCHWARCZ, Lília Moritz (org.). Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Fundação Perseu Abramo, 2008.

Rodrigo Bentes Monteiro – Professor associado de História Moderna no Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, pesquisador da Companhia das Índias e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: rodbentes@historia.uff.br.

Itamar Freitas

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