O século XIX foi palco do surgimento de uma combinação entre regimes de trabalho distintos dando impulso ao capitalismo industrial em sua fase de acentuação da divisão internacional do trabalho entre diferentes áreas administrativas nas Américas, no Caribe, na África e na Europa. Essa frase ainda pode causar certa estranheza tanto para os estudiosos das interações sociais relativas à mão de obra livre e assalariada, adotada nos meios de produção industriais, quanto para os que se debruçam nas análises das mais variadas formas em que o trabalho do escravo africano e de seus descendentes diretos assumiu nas Américas e no Caribe. Entretanto, esse não é um problema para Dale Tomich, mas sim o seu ponto de partida, a sua questão a ser explicada. Antes de tudo, vale dizer, ele não negou a possibilidade da existência daquela estranha, para alguns pesquisadores, combinação, como se fosse uma evitação de formas de relações patrão-empregado ou senhor-escravo e os seus papéis nos meios de produção e de escoamento das mercadorias. Para Tomich, não há como se compreender a produção capitalista de maneira independente do entendimento dos mecanismos em que são realizadas as trocas de mercadorias, isto é, perscrutando as diversas maneiras de produção de mais-valia, preço, compra e venda como chaves de leitura conceituais da construção de mercados por pessoas de carne e osso.
Utilizando o conceito de “segunda escravidão”, o autor, professor na State University of New York (SUNY-Binghamton University), e, na mesma instituição, pesquisador no Fernand Braudel Center, enfrentou não só essa suposta contradição conceitual, da dependência entre o capitalismo industrial e a escravidão, ou de entendimento dos processos de conformação das relações de trabalho nesse tipo de capitalismo em escala transcontinental. Coisa rara na historiografia da escravidão produzida de meados dos anos 1980 pra cá, Tomich dedicou-se à leitura direta dos textos de Karl Marx, não se valendo como fonte primeira de conhecimento de suas ideias e conceitos de importantes comentadores. Durante todo o livro, percebe-se que o autor elabora uma permanente história das ideias e dos conceitos de Marx e de intelectuais que nele se inspiram para montar seus modos de visão na construção de objetos de pesquisa ligados aos trânsitos de pessoas e bens no mercado capitalista transcontinental.
As colônias europeias no Novo Mundo funcionavam, até as primeiras décadas do século XIX, como produtoras de mercadorias primárias em uma relação de preferência econômica, em alguns casos, e, noutros, de monopólio econômico, político e administrativo. Nesse sentido, ficavam dependentes das oscilações dos mercados de suas metrópoles. O comércio oceânico de escravos africanos obedecia a essas marés, também, e sabia-se ser negócio lucrativo e especializado em suas várias etapas. Com o fim do exclusivo colonial, os mercados se ampliaram e as possibilidades de lucratividade também para os empreendimentos no Caribe e nas Américas. Contudo, eles já contavam com a estruturação dos mesmos, internos e marítimos, de compra e venda de escravos. Nesse sentido, as mercadorias passaram a ser produzidas pelas demandas das economias capitalistas industriais influenciando a adequação dos meios de produção para dar conta de sua velocidade de consumo. Isso envolvia a competição entre produtores nas ex-colônias europeias, e sua capacidade de produção e distribuição. Essas mercadorias continuaram sendo as matérias-primas para as nações industrializadas, cada vez mais delas necessitadas pelo crescimento sem precedentes do número de consumidores. Nas Américas, no Caribe e na Europa, a tecnologia empregada para dar conta desse fenômeno pôde ser vista, por exemplo, nos navios a vapor e nas ferrovias, e nos lugares em que até hoje estão estabelecidas as estações de trem. Elas, desta forma, liberavam os escravos do trabalho de transporte, escoamento da produção de bens primários para reforçar a velocidade e aumentar a quantidade dos mesmos nas lavouras e casas de beneficiamento.
Neste novo cenário, que tinha como grande gerente os agentes do capitalismo britânico, disponibilizando linhas de crédito nunca dantes vistas para o incremento da produção além de seus territórios, pouco importava ver os escravos como mercadoria. O crescente consumo de café, algodão, tabaco e açúcar revitalizaram economias então em crise de exportação, principalmente Cuba e Brasil e, simultaneamente, reaqueceram suas rotas de comércio de escravos, continentais e oceânicas, estimulando os proprietários de terras, ou quem delas tinham a concessão para explorar, e escravos, a abrir novas áreas e multiplicando as unidades de produção. Além disso, as manufaturas inglesas encontraram lugares cativos para seu consumo, para além das terras britânicas. Tudo isso explica, sumariamente, o profícuo uso do conceito de “segunda escravidão”, eixo principal do livro.
As análises de dados da produção e da reprodução capitalistas no âmbito internacional, quando o autor vai fundo na gênese e nas implicações dos conceitos elaborados por Eric Williams, Eugene D. Genovese e Immanuel Wallerstein, não sustentam qualquer tipo de acorrentamento das relações sociais nos meios de produção e ao seu redor. Tomich demonstra com estudos de caso com base em fontes primárias as mais diversas como, da perspectiva senhorial e da dos escravos, diversos fatores estavam em jogo, bem como projetos e os modos de conseguiram efetivá-los com sucesso, nas formas de vivenciar a implementação de empreendimentos ligados ao capitalismo no século XIX. As condições para a produção das relações capitalistas estavam criadas, em âmbito transeuropeu, mas cada local as viveu dentro de suas particularidades. Portanto, não há espaços, nas análises de Tomich, para supostas teleologias historiográficas em evoluções naturais de etapas do desenvolvimento dos modos de produção, e de lutas de classe fora de entendimentos mais gerais dos fluxos de capitais e de trabalhadores, e os motivos de suas condições de existência. Não há a negação, de um lado, de opções de indivíduos por esses ou aqueles estilos de produção e distribuição concorrentes e complementares, e nem espécie alguma de ditadura de supostas estruturas de produção material de forma de vivência sobre os rumos das subjetividades. Isso não quer dizer que os mercados internos àqueles territórios subjugados sejam desconsiderados.
Uma vez convivendo de maneira dependente com o capitalismo industrial liderado pelos interesses do governo e do empresariado industrial da Inglaterra, e a consequente expansão da relação entre trabalho assalariado e consumo, no século XIX, toda a produção escravista era cada vez mais adquirida pelos salários dos proletários. A consolidação das elites senhorias e suas formas de se relacionar com as ações de escravos, libertos e africanos livres não são, para Tomich, estáticas e meros detalhes, bem como suas estratégias de, em meio à emergência de opções nacionalistas de organização territorial, projetos de hegemonia política, garantido um lugar privilegiado na nova divisão internacional da produção e do trabalho. Sobre a expansão internacional do capitalismo, terra, escravidão e tecnologia são termos essenciais para o entendimento da visão de Tomich acerca do século XIX. Isso porque há capítulos em que o autor demonstra, através de estudos de caso, como os diversos fatores do capitalismo industrial foram operados em escala local. No caso da Martinica, por exemplo, senhores que eram contrários aos usos que seus escravos faziam de pedaços de terras, ao plantarem não apenas para consumo próprio, mas sim para também abastecerem os mercados próximos. Com o passar dos anos, os proprietários viram ser essa a forma mais interessante, para a garantia de lucros maiores, de alimentar os escravos, desonerando a sua produção. Contudo, criava-se, assim, o tempo como uma variável de negociação entre os escravos e seus senhores no que tangia à quantidade que dele investiam para produzir o que em com quais objetivos.
No caso de Cuba, o autor adota o entendimento do processo de formação do capitalismo internacional como forma de dar sentido aos mecanismos pelos quais foi estabelecida a produção açucareira. Sucessos e fracassos, formas de trabalho, lucros e prejuízos, usos tecnológicos e suas adaptações, são termos matizados, sempre no plural, em experiências sociais simultâneas ocorrendo num mesmo lugar ou não no processo de produção capitalista, nas análises de Tomich. Daí a comparação ser um método central em suas pesquisas, porque as mesmas questões são vividas e reinventadas em sincronias e diacronias na economia mundial capitalista. Esse livro não é recomendado para os pesquisadores que desejam manter-se em suas zonas de conforto teóricas e metodológicas.
Esse livro incomoda porque o autor questionou cânones da historiografia sem o medo de suas repercussões ou supostas covardias acadêmicas. O campo de Tomich não é o da reprodução alienada das ideias, mantendo certas fórmulas inquestionáveis de se fazer historiografia e ciências sociais, substituindo termos e fontes para manter as premissas e transformando-as em óbvias conclusões. Ele também não elege um inimigo, espécie de sparring, acadêmico para, através de ironias fora de lugar, construir seus pontos de vista. Por isso, volto a dizer, o autor leu os demais pesquisadores em seus termos, avaliando quais os tipos de fontes que utilizaram, quando fosse o caso, e quais interlocuções buscaram para fundamentar suas considerações e conclusões. Em momento algum Tomich os descarta junto com suas obras. Ele as utiliza para ir além, para esclarecer pontos que acha ainda serem obscuros nas suas pesquisas, servindo-se deles como fontes de inspiração.
Temas outros que tangenciam os debates acerca das relações entre o revigoramento do comércio e da exploração da mão de obra do escravo africano e de seus descendentes operam como pilares de sustentação em cada capítulo do livro. São eles, por exemplo, as preocupações de autoridades políticas e senhoriais com os rumos de suas formas de lucro em empreendimentos agrários na economia capitalista mundial, possibilidades de transporem barreiras políticas e administrativas para compreender a composição das novas arquiteturas dos meios de produção, e os sentidos sociais, as condições de possibilidade e as consequências em escalas local e global da adoção da produção escravista em meio ao capitalismo industrial, valorizando as formas de se distribuir mercadorias perecíveis de maneira eficaz para o capitalista.
Resenhista
Luiz Alberto Couceiro – Pós-Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS-MN/UFRJ. Professor Adjunto I em Sociologia & Antropologia na UFRJ – campus Macaé. E-mail: luizalbertocouceiro@gmail.com
Referências desta Resenha
TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: EdUSP, 2011. Resenha de: COUCEIRO, Luiz Alberto. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.7, n.1, p.340-344, 2013. Acessar publicação original [DR]
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