Patrimônios difíceis e ensino de História: uma complexa interação | Revista História Hoje | 2021 (D)

Campo de Concentracao PATU CE1 Patrimônios difíceis e ensino de História

Patrimônios difíceis e ensino de História: uma complexa interação Difficult Heritage and History Teaching: A Complex Interaction Cristina Meneguello* Daniela Pistorello** Os patrimônios difíceis – também conhecidos como patrimônios sombrios, dissonantes, marginais ou da dor – remetem a locais associados ao sofrimento, à exceção, encarceramento, segregação, punição e morte (LOGAN e REEVES, 2009).

Tais patrimônios podem reunir a função de memorial ou de local de peregrinação com a finalidade de rememoração coletiva e de reconhecimento de direitos e de reparação. Na forma de memoriais espontâneos, monumentos oficiais ou museus memoriais, esses lugares que se referem ao “passado que não passa” adquirem uma função de educação pública ou revitalização urbana (MENEGUELLO, 2014 e 2020). Tais patrimônios associam-se, ainda, à definição de dark tourism (ou turismo sombrio, FOLEY e LENNON, 1996): mais de um milhão de pessoas visita, anualmente, os campos de concentração nazistas; 200 mil pessoas por ano visitam a casa de Anne Frank em Amsterdam, Holanda. Ainda, os bens materiais e as memórias a eles associadas, quando não fazem parte da celebração tradicional do patrimônio nacional, podem ser considerados como patrimônios difíceis. Nesse caso, remetem-se a experiências ligadas à escravidão e à migração; às regiões da cidade consideradas perigosas, periféricas ou em estado de abandono; ao patrimônio industrial de modo geral, visto que a memória do trabalho apenas começa a ser considerada como tal pelos órgãos oficiais de preservação; às memórias proscritas e indesejáveis, associadas ao patrimônio prisional, funerário, da saúde (hospitais, manicômios, leprosários, cárceres) ou de grupos também socialmente perseguidos como no caso do patrimônio LGBTQI+. Ainda, tais patrimônios difíceis, ou dissonantes (ASHWORTH e TURNBRIDGE, 1996), atestam a ocorrência de regimes de exceção promovidos pelo Estado, bem como a atuação de grupos na perseguição e tentativa de aniquilação de outros. Ligados às políticas de memória e às leis memoriais, tais patrimônios buscam evitar a ocultação dos fatos e a desacreditação das vítimas, esclarecendo as sociedades sobre seu passado recente. Esse é um tema especialmente sensível em países da América Latina que atravessaram regimes ditatoriais, como Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, El Salvador e Paraguai. Na ausência total ou parcial de eficientes políticas de reparação e justiça, tais patrimônios podem registrar, recordar e auxiliar as vítimas e seus descendentes a lidarem com o passado, por meio de medidas simbólicas individuais ou coletivas.

De como estes temas são abordados em espaços formais e não formais de ensino, bem como as estratégias de ensino-aprendizagem relacionadas a eles, trata este Dossiê.

O encontro do ensino de História com os passados difíceis tem sido um tema recorrente nos países europeus, que têm que acertar suas contas com os fascismos perpetrados na Segunda Guerra e que se reativam entre os jovens e os novos partidos de direita (caso especialmente sensível para os autores alemães e italianos); ou em países que sistematicamente destruíram suas populações nativas – primeiro fisicamente e, em seguida, em nível da narrativa da nação (como os Estados Unidos ou o Brasil). Tais situações são agravadas pelo uso profícuo de experiências individuais como “nós de verdades” irrefutáveis; nesses processos de silenciamento e falseamento, os crimes cometidos pelo Estado, esclarecidos ou não, são distorcidos por práticas de rememoração e dão origem a lógicas que parecem justificar o que não pode ser justificado ou aceitável (PEREIRA e HERMETO, 2015).

Nesse campo, vigoram as reinterpretações do passado dentro das narrativas oficiais da História. Entretanto, quando esses lugares são de algum modo patrimonializados e transformados em marcos nos espaços, por meio de memoriais, monumentos ou locais protegidos, essas relações se agudizam. Nos países do Cone Sul que enfrentaram ditaduras militares recentes, os esforços de ressignificação dos espaços a partir das narrativas das vítimas e do questionamento das histórias oficiais, profícuos nas últimas décadas, vêm também experimentando retrocessos e questionamentos por parte de grupos organizados e com condições econômicas para criar guerras de narrativa, em especial nas redes sociais.

Nessa realidade, a sala de aula dos professores de História tem sido atravessada por contestações advindas dos pais, de outros colegas professores, dos youtubers, dos documentários de boa qualidade técnica. De certo modo, repete-se a refutação do Holocausto com novas roupagens, em situações que não utilizam os critérios de validação do campo das ciências sociais, numa fabricação politicamente motivada de um passado falsificado que reivindica o caráter de escrita historiográfica, sem jamais sê-la (MORAES, 2011, p. 14-15).

Na realidade da sala de aula, o professor encontra-se confrontado por outras narrativas produzidas paralelamente à pesquisa acadêmica e ao saber escolar, num contexto de expansão de pós-verdades ou fake news (ou, mais claramente, mentiras). Nesse jogo, participam a transmissão de saberes entre gerações; a falibilidade da educação para os direitos humanos, e projetos como o Escola Sem Partido, que minam a fala do professor (BAUER, 2018, p. 196-197; GIL e EUGÊNIO, 2018), ao mesmo tempo em que usam o disfarce de conhecimentos horizontalizados, que estariam para além das hierarquias do saber.

Entre a pouco sadia reafirmação da autoridade inquestionável do docente em sala de aula – contra a qual a educação em História tanto lutou – e a percepção de que o conhecimento histórico é construído também pelos “aprendentes”, o professor de História vê-se confrontado por análises pouco científicas, afirmações senso-comum e projetos de poder reacionários que necessitam fundar suas bases num passado escravista, patriarcal ou ditatorial positivado como benevolente, malemolente ou condescendente. É preciso pontuar também que tais patrimônios não são “difíceis” simplesmente por lidarem com memórias do trauma ou da dor, mas porque as próprias práticas de reconhecimento e institucionalização dos locais a eles associados não são consensuais dentro da sociedade.

As políticas de patrimonialização que envolvem memórias difíceis, no Brasil, são recentes. Resultados de calorosos debates, explicitam disputas políticas entre o que e quem deve ser lembrado e/ou esquecido; por que e para quê. A exemplo desta complexidade, pode-se citar os processos de tombamento de instituições de profilaxia da hanseníase (os conhecidos “leprosários”), criadas especialmente nas décadas de 1930 e 1940. Embora sejam símbolos de políticas segregacionistas, a patrimonialização desses locais permite um olhar sensível sobre a história do tratamento desses pacientes e convidam a refletir sobre a luta dos portadores de hanseníase pelo reconhecimento de seus direitos à reparação pela forma como foram apartados da sociedade durante décadas (BORGES e PISTORELLO, 2019). Não menos controversos são os processos de tombamento do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, localizado na região portuária do Rio de Janeiro, e dos campos de concentração que abrigavam os “retirantes da seca”, no interior do Ceará.

O primeiro caso refere-se ao local de desembarque de negros africanos escravizados, reconhecido como patrimônio mundial pela Unesco em 2017. Sua visitação permite problematizar vários aspectos da escravização e as marcas que isso deixou na história brasileira. O segundo caso faz referência ao tombamento de ruínas, no município de Senador Pompeu, de campos de concentração para abrigar “retirantes da seca”, termo usado para descrever pessoas que deixaram suas casas e cidades onde moravam com a intenção de fugir dos efeitos da estiagem. Constituíam-se em espaços de aprisionamento espalhados estrategicamente em rotas de migração no estado para evitar que os chamados “flagelados da seca” chegassem a Fortaleza, em busca de auxílio. Muito embora esses campos tenham existido em outras cidades do Ceará – sem existirem claros vestígios – a existência das ruínas e de seu tombamento, na cidade citada, possibilita compreender, através dessa materialidade, parte da história da região, marcada pela seca e seus impactos na sociedade contemporânea.

Por essa razão, são as experiências de educação, formal e não-formal, que podem ultrapassar as dimensões oficiais de tombamento, registro ou inventário praticadas pelos órgãos de preservação em suas diferentes esferas e definir práticas de memória e de rememoração a partir da experiência e da aprendizagem histórica. Nesse fazer, as experiências de ensino ganham a possibilidade de promover a empatia e a percepção da alteridade como constituintes da sociedade, e não como o “outro” dessa mesma sociedade (SONTAG, 2003). A potencialização dessa capacidade dá-se igualmente nos espaços não-formais de ensino, associados ou não às atividades escolares (museus, visitas a monumentos, caminhadas guiadas pela cidade, festas e outras manifestações populares), criando uma força a se contrapor ao senso comum que busca, a todo custo, ancorar-se numa narrativa em que benevolências e paz social vigoram, desse modo ocultando as violências estruturais do passado.

No Dossiê aqui apresentado, chama a atenção o fato de que os autores se aproximaram dos temas a partir de várias perspectivas teórico-metodológicas; e como enfrentam, em suas práticas. Nesse sentido, num momento em que a sociedade brasileira se vê atravessada por revivescências do negacionismo, do revisionismo e do racismo, o Dossiê adquire, também, um caráter de diagnóstico e de luta política ampliada. Os temas com os quais os professores de História vêm sendo confrontados em seu conhecimento, giram em grande medida em torno das experiências históricas da escravidão e do lugar de sujeito dos escravizados; e nas narrativas atualizadas sobre o golpe civil-militar de 1964 e o regime ditatorial então imposto ao país. Ainda, o reconhecimento e estudo dos “patrimônios difíceis” questiona a invisibilidade de grupos sociais excluídos, alijados em espaços de exclusão como prisões e manicômios ou em espaços de luta e apagamentos como os quilombos, as fábricas, as minas de carvão. Os artigos que compõem o Dossiê são provenientes de diferentes regiões do Brasil e apresentam, de forma criativa, possibilidades de abordagens, em sala de aula, de memórias dolorosas/dissonantes e de patrimônios difíceis.

O Dossiê é composto por oito artigos que, de maneira articulada, discutem o tema proposto. Os quatro primeiros textos abordam, de forma geral, propostas teóricas e metodológicas de trabalhar o tema em sala de aula.

O texto de Adrianna Setemy chama a atenção para a necessidade de incorporar aos currículos escolares e às propostas pedagógicas a abordagem de questões relacionadas com os direitos fundamentais do cidadão, memória e identidade. Para tanto, apresenta-nos e problematiza a noção de pedagogia da memória, entendida como uma abordagem que percebe a memória como um campo de disputas e que cabe ao professor a responsabilidade de promover práticas que renovem a ideia de memória como um espaço dotado de vitalidade.

O segundo texto, de Fernando de Lima Nunes, problematiza a história da Ditadura Civil-Militar num contexto de revisionismo e negacionismo, presentes no Brasil. A partir dos pressupostos teóricos e metodológicos da empatia histórica e seu entrecruzamento com a construção de biografias, o autor nos apresenta uma sequência didática realizada em sala de aula que culminou na construção coletiva de conhecimentos históricos a respeito do tema.

O texto de Thays Merolla Piubel e Rafaela Albergaria Mello chama a atenção sobre o papel do ensino de História nas disputas entre história e memória. A partir da análise da criação do Monumento às Bandeiras, em São Paulo, e de um capítulo de livro do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que trata sobre os bandeirantes, convida-nos a ir além das críticas senso-comum aos livros escolares (muito diferentes entre si), problematizando as representações das bandeiras a partir de uma perspectiva decolonial.

O quarto texto reflete sobre os usos do antigo presídio São José, espaço atualmente musealizado e denominado São José Liberto, localizado em Belém do Pará. O ponto de partida de Wesley Oliveira Kettle é discutir as narrativas ali construídas. Por meio de sua prática docente e da adoção da metodologia da história oral, o autor nos instiga a problematizar as versões oficiais de espaços musealizados tornados patrimônios culturais e o apagamento de memórias marginalizadas. Destacam-se a importância de lugares não formais de ensino e os desafios dos professores em se apropriarem de espaços como esse.

O quinto artigo, de autoria de Michele Gonçalves Cardoso e Tiago da Silva Coelho, compartilha reflexões sobre as atividades educativas desenvolvidas pelo Centro de Memória e Documentação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (CEDOC) com escolas de educação básica. O enfoque recai sobre as representações sociais das atividades carboníferas realizadas na cidade de Criciúma e a invisibilidade das memórias do trabalhador daquilo que é considerado patrimônio cultural da memória do carvão. Para tanto, o texto apresenta o relato das experiências obtidas com a realização de oficinas com professores de História da Secretaria Municipal de Educação de Criciúma, que, durante o ano de 2016, desenvolveram atividades cujo objetivo foi contribuir para a ampliação de narrativas sobre a exploração carbonífera na região, privilegiando as memórias dissonantes envoltas nesses processos.

Os últimos textos do Dossiê tratam de um tema comum: de como o passado de afrodescendentes é apropriado em três circunstâncias diversas.

Ana Beatriz Accorsi Thomson e Ana Flávia Dias Zammataro compartilham uma experiência de ensino-aprendizagem que propõe problematizações das ações que se referem às derrubadas de monumentos e/ou estátuas na contemporaneidade. A partir de pressupostos teóricos-metodológicos da educação histórica que orientou a atividade, os alunos são convidados a refletir e se posicionar sobre os diferentes usos que se pode fazer dos símbolos construídos no passado e que ainda são presentes nas cidades.

Por sua vez, Alex Andrade Costa chama a atenção para a força que as informações históricas têm em espaços não formais de ensino e o quanto isso impacta a consciência histórica. O autor analisa reportagens racistas e, de um lado, aponta a necessidade de que se investigue a origem de tais informações bem como sua circulação na sociedade. De outro, chama a atenção para o papel da escola em tratar, de forma criteriosa, os processos históricos traumáticos, no caso, representados pela escravização.

Por fim, o artigo que fecha o Dossiê, de autoria de Luciana Conceição de Almeida e Martins Alfredo Eurico Rodrigues Matta, trata da importância das pesquisas realizadas sobre a comunidade quilombola da localidade do Cabula, na cidade de Salvador, Bahia, para a construção de um museu virtual em 3D, bem como de suas potencialidades em seu uso no ensino de História.

Nossa expectativa é que este Dossiê contribua para a expansão e complexificação do tema dos patrimônios difíceis, em sua interface com a educação escolar e com públicos mais amplos, na contínua construção da cidadania.

Referências

ASHWORTH, G. J; TUNBRIDGE, J. E. Dissonant heritage: the management of the past as a resource in conflict. Nova Jersey: John Wiley & Sons, 1996.

BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo histórico? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade. Que história pública queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018.

BORGES, Viviane; PISTORELLO, Daniela. História Pública as memórias da hanseníase no Hospital Colônia Santa Teresa (Santa Catarina/Brasil). Revista Memória em Rede, v. 11, n. 20. UFPEL: Pelotas, 2019.

FOLEY, Malcom; LENNON, John. JFK and Dark Tourism: A Fascination with Assassination. International Journal of Heritage Studies 2, 1996.

GIL, Carmem Zeli de Vargas; EUGÊNIO, Jonas Camargo. Ensino de História e temas sensíveis: abordagens teórico-metodológicas. Revista História Hoje, v. 7, n. 13, p.

LOGAN, W.; REEVES, K. (Org.) Places of pain and shame. Dealing with difficult Heritage. London/New York: Routledge, 2009.

MENEGUELLO, Cristina. Patrimônios sombrios: memórias difíceis. In: FLORES, Maria Bernadete Ramos; PETERLE, Patricia. História e Arte: herança, memória e patrimônio. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2014.

MENEGUELLO, Cristina. Patrimônios difíceis (sombrios). Dicionário Temático de Patrimônio. Campinas: Ed. da Unicamp, 2020.

MORAES, Luís Edmundo de Souza. O Negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o Passado. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.

PEREIRA, Mateus; HERMETO, M. Justa memória, dívida ética e passados-presentes dolorosos: questões a partir da análise de interpretações sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) em livros didáticos de história. In: MAIA, Tatyana de Amaral; ALVES, Luís Alberto Marques; HERMETO, Miriam; RIBEIRO, Cláudia Sofia Pinto (Org.). (Re)construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da história. 1a. ed. Porto Alegre/BR; Porto/PT: EDIPUCRS-CITCEM, 2016.

SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Cristina Meneguello – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil. cmeneguello@gmail. Com.

Daniela Pistorello – Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), Joinville, SC, Brasil. danipistorello@ hotmail.com.


MENEGUELLO, Cristina; PISTORELLO, Daniela. Apresentação. Patrimônios difíceis e ensino de História: uma complexa interação. Revista História Hoje. São Paulo, v.10, n.19, p.4-11, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

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