GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório:
um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. Resenha de: NEGRO, Antonio L. A Arena não é a filha da UDN que caiu na zona. Estudos Históricos, v.23 n.46 Rio de Janeiro July/Dec. 2010.
Um partido político que, de fato, se tornou um bode expiatório. Esta assertiva mal resume o excelente livro de Lucia Grinberg. Longe dos embates políticos e da memória construída nos anos 1980, é dada ao leitor uma visão detalhada e mais complexa sobre a formação e funcionamento da Arena, bem como do sistema partidário brasileiro, tanto o do pré-64 quanto o do pós-64 (até 1979). Grinberg ressalva que ridicularizar a Arena silencia um aspecto acentuado da História da sociedade brasileira após o golpe de 64: o envolvimento dos civis no apoio à ditadura e mesmo na sua gestão. Com seus milhares de eleitores, adeptos, cabos eleitorais, chefes locais e lideranças, a Arena foi um partido inicialmente integrado por uma tarimbada geração de políticos que se encarregou, inclusive, de formar novos dirigentes. Esses quadros não só atuaram nos anos 1970, como também marcaram presença no Brasil democrático da Constituição de 1988.
Ao contornar um quadro historiográfico quase saturado de pesquisas sobre a esquerda, a autora empreendeu uma investigação compreensiva, sensível e com bom humor, abordando tema grave e trombudo: um partido de direita, esteio de um regime ditatorial e sanguinário (mas que não dispensou, totalmente, a existência de eleições, partidos – situação e oposição – e, por conseguinte, do Poder Legislativo). Logo, o que Lucia Grinberg dá ao leitor é um livro que alia pesquisa rigorosa a uma observação que percebe a incerteza, a diversidade, o jogo de forças, e a heterogeneidade do processo histórico.
Elegendo para epígrafe do capítulo 1 “a Arena é a filha da udn que caiu na zona”, a autora foi feliz em indicar que seu livro incide sobre um período estendido entre o pré-64 – note-se a menção à União Democrática Nacional – e os anos 1980, quando a Arena é elaborada, na memória e nas páginas do humor político, como uma mulher maldita, alvo de apedrejamentos, motivados, em sua maior parte, é lógico, pela raiva contra a ditadura. Como Grinberg argumenta que, “enquanto os militares e o governo não podiam ser atacados de frente, a Arena podia” (p. 284), cabe, assim, seguir sua percepção: de um lado, uma mulher ridicularizada (a própria Arena); de outro, gorilas viris e brutamontes (os militares).
Entre os seus mais interessantes resultados, o livro mostra a importância do Partido Social Democrático (psd) no funcionamento da Arena e de como esse partido getulista era visto pelos arenistas como “o modelo por excelência de partido governista e majoritário”, cuja sigla caberia à Arena recuperar em caso de eventual dissolução. Em 1979, isso era, com certeza, uma “alternativa inesperada”, em particular quando “contrastada com a memória construída sobre a Arena como a grande herdeira da udn” (p. 221). Se a associação entre Arena e psd foi mais recorrente do que o esperado, isso corrobora que o trabalhismo foi a parte mais indigesta da controversa herança de Vargas. No final, valeu foi o realismo, pois reeditar a sigla do psd poderia ofender convicções udenistas – antigetulistas – sobreviventes na Arena. Nota a autora que a sigla PDS, de Partido Democrático Social, escolhida para suceder a Arena, era parecida com a do psd. Um trecho da autobiografia Memórias de um stalinista, de Hércules Correa, parece combinar com isso: “Meu jovem”, disse-lhe o senador Amaral Peixoto, do psd, “as boas idéias o PCB formula, o PTB agita e o psd realiza”. Em alguma medida, em plena Arena, isso talvez tenha valido para suas alas radicais, as concentrações udenistas e o realismo pessedista.
Afora o fantasma da turbulência social e do facciosismo extremado, o temor ao retorno das siglas do sistema partidário do pré-64, proscrito no ai-2 de 1965, é usado pela autora para remeter ao peso do mulitpartidarismo dos anos 1945-1964, que permaneceu como “referência identitária durante o bipartidarismo”, frisando “a importância da sigla, do vocabulário, enfim, da história de um partido” (p. 223, 222). É também quando dialoga com as teses da artificialidade da Arena – que a censuram “pelo que ela não é, não tem, não faz” (p. 31) – que Grinberg afirma que a Arena era uma novidade em posse de lideranças experimentadas. Embora inventada pelo novo regime, seus aderentes possuíam “longa prática na política partidária”. Muitos haviam exercido “mandatos sucessivos para diversos cargos eletivos, razão pela qual não se pode deixar de reconhecer sua visibilidade e representatividade junto à população” (p. 32).
Essa é, a propósito, uma proveitosa consideração para a Bahia, que pode ter ficado de fora da conspiração, conforme se presume, mas que certamente sustentou com base social o golpe que derrubou Jango. Antes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que aconteceu depois da queda do presidente, a Bahia era um estado que, por décadas a fio, políticos udenistas (Juracy Magalhães), mas também pessedistas (Pedro Calmon), afirmavam ser um lugar avesso a conflitos de classe, ao mesmo tempo em que rezavam um catolicismo conservador e assumiam posições anticomunistas. Tudo isso sem negar seus princípios liberais. Como alerta Grinberg, é preciso notar homens como Luiz Viana Filho (udn) e Antônio Carlos Magalhães (psd) foram eleitos e reeleitos antes do golpe e, depois do golpe, foram feitos governadores, convertendo-se em lideranças nacionais.
Nesta, como em outras passagens de seu livro, a autora é certeira em sua original análise. No lugar de responsabilizarmos apenas os militares pelo autoritarismo, é preciso enxergar a proeminência social desses civis que receberam a Arena das mãos do novo regime. Um detalhe positivo de Grinberg, a propósito, é ter documentado o apoio do ex-deputado federal da udn Gilberto Freyre à ditadura. Considerando a democracia um estrangeirismo nas terras do Brasil (p. 169), desqualifica também o liberalismo. Nisso, Freyre ladeia o ex-integralista Miguel Reale, afora outros reacionários.
A presença dos estados é outro ponto alto do livro, pois as origens diversas dos arenistas são relevantes para o enfrentamento do “tempo de crise” (1964-1975), quando tiveram de ceder espaço à “atuação ostensiva do militares” (p. 46). É a partir daí que Grinberg evidencia, sistematiza e analisa a heterogeneidade vigente na Arena, na sua relação com o Executivo, nos debates sobre sua identidade, suas alas e chefes em disputa, seus dilemas e impasses. Resumidamente, ela explica: “nem todos os militares e políticos que apoiaram o movimento de 1964 desejavam o mesmo modelo de partido. Em segundo lugar, nem todos os governos militares procuraram fortalecer o seu partido” (p. 42).
Esse tempo de crise foi, também para a Arena, uma experiência difícil e angustiante, dividida em quatro fases: 1964-1966 (conspiração e dúvidas), 1966-1968 (incerteza e cisões), 1969-1973 (silêncio e reorganização) e 1974-1979 (abertura política). Como ocorre de suceder nas revoluções, enquanto uns queriam fazer tabula rasa do passado, outros faziam a defesa, às vezes migalhas, dos variados interesses da representação política parlamentar do pré-64, o que indica que Arena e governo “não formavam um bloco monolítico” (p. 48). Em acréscimo ao ai-5 e a episódios de absoluto controle do poder (cassações, nomeações, os recessos do Congresso em 1966, 1968 e 1977), o impedimento da posse do vice-presidente do marechal Costa e Silva Pedro Aleixo na presidência do país, em 1969, marcou o auge do conflito entre governistas, cindidos entre militares e arenistas. Fica assim patente que os militares não eram patriotas idealistas, ludibriados por raposas civis. As decisões centrais do regime, apesar da participação dos civis, foi, muitas vezes, exclusividade dos militares, em particular no que toca à questão institucional, independentemente das disputas internas na Arena, que sempre existiram.
Cumpre-me tecer paralelo entre a agonia da Arena com outras dilacerações. Foi a defesa da autenticidade da representação parlamentar perante o trabalhismo e o comunismo que levou o Congresso a abjurar princípios democráticos em favor do poder militar. Sistemas de inspiração diversa (o Parlamento liberal e o sindicalismo corporativista) passaram por experiências similares. Em nome de sua autenticidade, forças direitistas do pré-64 ganharam dos militares cenários varridos de seus rivais, mas foram depois encurraladas por esses mesmos militares, sendo marginalizadas e fragilizadas, demonstrando pouca competitividade perante seus adversários, quando estes conseguiam se reorganizar. Contudo, de 1978 em diante, se o sindicalismo pró-ditadura saiu abatido, a disputa no sistema partidário teve outro resultado. Não só uma série de casuísmos protegia e promovia a Arena, como também os arenistas lograram acordar de sua depressão, exibindo consigo aquela costumeira astúcia de quem tem prática, recursos e influência.
Partido Político ou Bode Expiatório, de Lucia Grinberg, é um livro poderoso. Encontra seu posto na História do Brasil, além de mudar, qualitativamente, nosso entendimento sobre seu objeto. Dada sua análise habilidosa, abre pontes para sabermos mais da Anistia, dos novos do pós-79, das Diretas Já, e da política no Brasil, tanto ontem como hoje.
Antonio L. Negro – Professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil (negro@ufba.br).
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