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O rei, o pai e a morte – PARÉS (Topoi)

PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: REZENDE, Leandro Gonçalves. A religião vodum e seus indeléveis laços atlânticos. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.

O livro O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental, obra publicada em 2016, é fruto de anos de pesquisa de Luis Nicolau Parés, doutor em Antropologia da Religião pela Universidade de Londres e professor da Universidade Federal da Bahia. Autor de variadas publicações, sua produção acadêmica encontra-se no limiar entre a história e a antropologia, destacando-se pelas análises comparativas entre as populações da África Ocidental e as afro-brasileiras, enfocando aspectos religiosos, étnicos e culturais. De modo geral, o livro em questão examina as práticas religiosas na África Ocidental, ou seja, os antigos reinos de Aladá, Uidá e ­Daomé, região que atualmente corresponde à República do Benim, demonstrando seu dinamismo e sua imbricação na vida política, social e econômica daquelas sociedades, nos séculos XVII, XVIII e XIX.

Da antiga Costa dos Escravos ou ­Costa da Mina, como denominavam os portugueses, foram embarcadas grandes levas de africanos escravizados, que desembarcaram no Brasil, em especial na Bahia. Trata-se de africanos falantes dos idiomas do grupo gbe, que compartilhavam a fé nos voduns. Fato significativo, pois, uma vez ressignificada, a cultura desses povos será preponderante, desde então, no imaginário afro-brasileiro. Assim, o autor busca entender o processo histórico das práticas religiosas e das crenças associadas aos voduns, destacando-as como importante elemento de identidade cultural, imprescindível para entender aspectos sociais, políticos e econômicos cunhados historicamente em ambas as costas atlânticas.

Trata-se de uma análise comparativa, pois para compreender a religiosidade afro-brasileira, recriada em Salvador, no Recôncavo Baiano ou no Maranhão, faz-se necessário um retorno às origens africanas, principalmente nos períodos de maior intensidade do tráfico de escravos. De fato, são africanas muitas das heranças que o universo brasileiro carrega, porque Brasil e África, desde o século XVI, estiveram conectados, ambos inseridos num contexto maior, o qual se pode denominar Mundo Atlântico. Dessa forma, os povos e culturas que habitavam as duas margens do Oceano Atlântico, mantiveram intensos vínculos, estabelecidos não somente pelo tráfico de escravos, mas por inúmeras formas de trocas, principalmente as trocas socioculturais, que, apropriadas de diferentes maneiras dos dois lados dessa lógica atlântica, conformaram uma cultura e identidade, sendo um de seus pilares a religiosidade. Todavia, o autor é enfático ao afirmar que não busca revelar origens cosmológicas dessa ancestralidade africana, numa tentativa de reelaboração de uma idealizada “África mítica”; mas sim, almeja um sistemático estudo histórico da cultura associada ao vodum, compreendendo sua dinâmica social localizada no tempo e no espaço.

De forma simples, Parés entende a religião “como toda interação ou comunicação entre ‘este mundo’ sensível e fenomenológico dos humanos e um ‘outro mundo’ invisível, onde se supõe habitem entidades espirituais, responsáveis pela sustentabilidade da vida neste mundo” (p. 37). Assim, para além do fenômeno religioso, buscar-se-á a compreensão de um rico universo cultural que mediava e formava parte das variadas relações sociais, como parentesco, poder político, justiça, economia e/ou arte. Logo, percebemos a existência de um sistema de significados coerente e coeso, mas que, com o devir do tempo, soube se moldar, (re)configurando-se, dinamicamente, numa crescente diversificação religiosa, que “não seria possível sem o desenvolvimento paralelo de um alto grau de tolerância religiosa, um dos aspectos mais notáveis do complexo cultural do vodum” (p. 39). Da mesma forma, o autor busca examinar a micropolítica religiosa na sua dinâmica interna, mas também a dialética paralela estabelecida com as influências externas que levam à progressiva inserção do local na economia atlântica global.

Assim sendo, a obra é composta de sete capítulos, num estudo que mantém um diálogo instigante entre as duas costas atlânticas, ou seja, da Costa da Mina ao Brasil e vice-versa, em constantes desdobramentos e reconfigurações. Mesmo que não formalmente, o estudo pode ser dividido em duas partes, que são tangenciadas pela estrutura religiosa associada aos voduns. A primeira é situada na África, compreendendo como as práticas religiosas, ligadas à estrutura de parentesco e ao culto aos ancestrais, se relacionam com a organização política e social desses antigos reinos, centralizada na figura do rei, numa época de intenso tráfico de escravos. Já a segunda parte ocupa-se das dinâmicas trocas culturais, que são ressignificadas de acordo com os novos cenários políticos, econômicos e sociais, os quais foram impostos aos africanos que desembarcaram no Novo Mundo. Assim, analisa-se a dinâmica e os significados dessas práticas e desses elementos rituais, demonstrando suas continuidades históricas, ressignificadas no contexto escravista.

Metodologicamente, o autor trabalha com diversificadas fontes, em especial os diários, correspondências e relatórios de estrangeiros e viajantes, que, geralmente, trazem um olhar eurocêntrico, dominador, intolerante e subjetivo, que precisa ser analisado e interpretado em seu viés ideológico; debatido e contextualizado com outras fontes e conhecimentos, para formar um relevante e útil corpus documental. Nesse sentido, Parés desenvolve uma apurada crítica historiográfica estabelecendo conexões e comparações com as fontes disponíveis, bem como analisando criticamente os discursos que tais fontes empregam, para, desse modo, entender a lógica cultural inerente à ação dos africanos, captando suas concepções locais, seu universo simbólico e sua práxis ritual. O fruto desse trabalho é a reconstrução de um universo religioso africano a partir de suas fontes internas, incluindo diversas tradições orais e elementos arqueológicos; e de suas fontes externas, abarcando os múltiplos tipos de escritos europeus, bem como as visões de mundo mistas e plurais de agentes intermediários, ou seja, dos africanos europeizados e dos europeus africanizados. Também se faz uso da etnografia ritual como subsídio histórico para interpretar comportamentos, aspectos simbólicos, expressivos e comunicativos. Nesse sentido, a tradição oral, em especial os contos, os mitos e as memórias locais sobre as práticas religiosas são importantes fontes históricas, na medida em que auxiliam no entendimento ou interpretação dos relatos, estabelecendo um profícuo diálogo entre a história e a antropologia.

Os primeiros capítulos do livro concentram-se, em parte significativa, nos processos históricos de formação dos antigos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, destacando sua centralização política, o apego ao espaço territorial, cuja organização social era estruturada em famílias patriarcais, marcadas por vínculos de pertencimento, de descendência – cultos aos ancestrais -, e de territorialidade. Essas ligações familiares ou identidades coletivas são significativas na configuração das práticas religiosas, ou seja, nos cultos aos ancestrais e voduns: as forças invisíveis, os mistérios ou deuses. O rei era sacralizado e responsável pela manutenção das práticas religiosas locais, prescritas pela tradição, havendo forte mescla entre o cerimonial religioso e o cerimonial da corte. Nessa lógica, Parés examina a complexa interação de forças históricas e culturais que formaram essa cultura, na qual há uma relação direta entre parentesco, política e religião. Desvenda-se assim, o imbricado jogo de palavras que compõem o título da obra: o rei – o político; o pai – o familiar; e a morte – a ligação ancestral, que funciona como a relação basilar das instituições e que garantia a continuidade do reino. Portanto, ganha destaque a centralidade do culto aos mortos e sua eloquência indissociável dos voduns na cultura religiosa da área gbe. Nas palavras do autor, o rei, o pai e a morte são elos de identidade cultural, pois “a análise da organização social dos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, das suas formas de legitimação política articuladas em função da ideologia da descendência, dos ritos fúnebres e do culto aos antepassados, permitiu compreender a imbricação entre o parentesco, a política e a religião” (p. 91).

A seguir, o autor apresenta algumas instituições e discursos religiosos emblemáticos da correlação entre os processos de centralização política e o estabelecimento de cultos extradomésticos, como por exemplo, o culto à serpente Dangbé, no reino de Uidá, ou o do leopardo Agassu, no reino do Daomé, demonstrando que os mesmo foram instituições inicialmente associadas à monarquia, mas que, por meio dela, foram promovidas, através de processos identitários, a emblemas e símbolos da nação, garantindo certa coesão social do reino. No caso do Daomé, houve ainda um investimento complementar no culto aos ancestrais reais, celebrados nos festivais conhecidos como Costumes, que poderiam ser distintos entre os “grandes Costumes”, celebrados após a morte de um rei; e os “Costumes anuais”, menores, em que se evocava a memória e se sacrificava para os ancestrais reais. A historiografia sobre os Costumes enfatizou múltiplas dimensões dessa instituição, porém cada autor em questão ressalta um aspecto distinto: fenômeno social total, função política, natureza militar, legitimação do poder real, dimensão econômica/comercial etc. Parés corrobora esses aspectos, todavia, evidencia que em meio a essa multifuncionalidade é fundamental destacar o campo religioso/ideológico, ou seja, “as oferendas sacrificiais aos ancestrais (e a outras divindades) e a concomitante ativação pública da memória do passado, como a lógica estruturante do ciclo cerimonial” (p. 185). Confirma-se também que a centralização política foi acompanhada de uma relativa centralização religiosa, na qual os ancestrais reais foram erigidos como referentes espirituais da nação.

Da mesma forma, a pesquisa destaca que para entender a “economia da escravidão” que se desenvolveu na Costa da Mina é necessário entender a “economia do religioso”, que envolvia a troca de bens materiais e imateriais entre clientes e sacerdotes, e entre homens e deuses. Tratava-se de sociedades nas quais as práticas agrícolas eram fundamentais (economia camponesa), onde se conhecia a escravidão, contudo, não eram sociedades escravistas, pois o processo produtivo não girava em torno de uma mercadoria principal, centrada no trabalho escravo, mas, ao contrário, a principal mercadoria de exportação era por excelência o próprio escravizado, “o corpo humano capaz de gerar força de trabalho” (p. 279). A principal forma de angariar novos cativos era a guerra e essa mercadoria humana era trocada por armamento e munição, ou por produtos de consumo, a exemplo de aguardente e tabaco, ou por bens europeus que denotavam prestígio, visando a aumentar a distinção social daqueles que monopolizavam os “meios de produção escravista”, ou seja, a coroa e os funcionários da corte. Nesse contexto, o pensamento religioso do vodum certamente ocupou lugar de destaque na mediação das relações mercantis, ao orientar as disposições e, em última instância, as decisões dos atores envolvidos, que em suas empreitadas lançavam apelos ao mundo invisível do vodum e ao seu aparato espiritual. Dessa forma, o autor é enfático ao afirmar que a prática religiosa interferia nos processos de escravização, da mesma forma que a realidade da escravidão encontrava expressão no ritual.

Significativo é notar que já em África existia um processo de assimilação e agregação de outros cultos importados ou por conquistas, ou por alianças ou pelo deslocamento de escravos, o que contribuiu para um significativo pluralismo religioso, baseado numa tradição de tolerância religiosa. Partindo dessa interpretação histórica, os capítulos finais do livro fazem uma comparação entre práticas religiosas de origem africana desenvolvidas no outro lado do Atlântico. Apesar das inevitáveis e evidentes transformações acontecidas em ambos os lados do Atlântico, existe um significativo paralelismo, que pode ser identificado em vários aspectos do panteão e das atividades rituais, tal qual a iniciação, que encontra surpreendentes semelhanças. Além disso, as práticas rituais dos devotos dos voduns teriam sido um importante modelo referencial para a organização de diversos grupos religiosos afro-brasileiros, permitindo organizar comunidades coesas, oferecendo aos seus membros recursos e apoio emocional para enfrentar a adversidade imposta pela situação de marginalidade social. Nas palavras do autor:

As religiões afro-brasileiras, ou de matriz africana, como sabemos, são o resultado de um complexo processo histórico de síntese e criatividade cultural em que se emaranharam as contribuições mais diversas, tanto dos vários povos africanos, de sua descendência crioula com o do cristianismo ibérico e das populações ameríndias. Contudo, isso não impedia que certas tradições culturais africanas fossem mais atuantes do que outras no processo de institucionalização dessas religiões. Minha tese é de que, a partir do século XVIII, especialmente na primeira metade do século XIX, os saberes dos sacerdotes dos voduns – relativos à instalação de altares em espaços estáveis, aos processos de iniciação, à hierarquização do corpo sacerdotal e à devoção conjunta a múltiplos deuses – estabeleceram um padrão de grande eficácia para integrar o pluralismo religioso dos escravizados em comunidades de tipo eclesial (p. 322).

Percebemos, assim, que a obra de Parés se enquadra na perspectiva de uma história conectada entre África e Brasil e vice-versa, ou seja, numa circularidade atlântica, em que práticas e discursos geograficamente distantes teriam se constituído mutuamente através do fluxo e refluxo de pessoas, ideias e mercadoria. Nas últimas décadas, percebemos que a ótica dos estudos africanos tem enfocado as relações culturais, que são formadoras de uma base comum, ou seja, uma herança cultural que une diferentes comunidades criadas a parir da diáspora africana, corroborando a existência de uma grande área cultural interligada em intensas trocas culturais e ressignificadas de maneiras distintas e em diferentes realidades no fluxo e refluxo que se deu nas duas costas atlânticas ao longo do tempo. Percebe-se, assim, uma grande redefinição identitária, ou seja, a reelaboração de novas formas de ser, agir e pensar o mundo. Há um diálogo criador, que superou as injustiças e adversidades impostas àqueles indivíduos. As religiões afro-brasileiras podem ser pensadas não apenas em termos de continuidades e sobrevivências africanas, mas sim como um processo de diálogo e interação constante com as práticas e os discursos religiosos africanos recepcionados e reelaborados nos diferentes contextos regionais. Assim, a devoção aos voduns se espalhou pelo Brasil, Haiti, Cuba, Estados Unidos, Jamaica e outros lugares do Caribe, onde essa memória ritual, mediada pelas entidades espirituais, contribuiu para interessantes desdobramentos identitários no contexto atlântico. O campo religioso, sem dúvida, é um espaço privilegiado para reivindicar identidade, para criar formas de pertencimento e até para a mobilização e a ação política. Conforme bem salientou Perés: “A centralidade das práticas religiosas para enfrentar, no nível individual, os momentos de experiência difícil e para negociar, no nível coletivo, as situações de subalternidade política faz delas um tema sempre relevante, qualquer que seja a sociedade ou o momento histórico” (p. 358).

Destarte, concluímos que a obra O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental é uma importante contribuição para a historiografia em língua portuguesa sobre a diáspora africana, demonstrando os impactos das práticas religiosas na economia, política e sociedade dos antigos reinos da Costa dos Escravos em sua correlação com a cultura afro-brasileira. Trata-se de uma obra significativa e referencial que estabelece um diálogo entre dois universos que se conectam por indeléveis laços religiosos confeccionados em contexto histórico marcado pela intolerância, mas que recriados deixaram um grande legado para os dias atuais.

Referências

PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [ Links ]

Leandro Gonçalves Rezende – Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais / Departamento de História, Belo Horizonte/MG – Brasil. E-mail: leandro9rezende@yahoo.com.br.

Itamar Freitas

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