“Para que serve a História? ” / Ponta de Lança/2019
A pergunta que dá título ao dossiê – “Para que serve a História?” – resume bem o quadro geral das preocupações que marcam as reflexões epistemológicas das ciências humanas e sociais na última década. Nesse período, historiadores e cientistas sociais passaram a questionar seu ofício não apenas do ponto de vista teórico-metodológico, mas também a partir das perguntas fundamentais acerca dos pressupostos que sustentam e motivam seus discursos.
Impulsionados por uma espécie de reação ao sentimento de “crise da história”, isto é, de crise da capacidade de conferir uma explicação e um sentido coletivamente aceitos para as diferentes experiências sociais, os historiadores retomaram o questionamento sobre quais são os critérios que marcam a correção das análises científicas, quais são os valores que sustentam a investigação histórica, o que está em jogo para eles e seus pares quando escrevem e que revelam o significado mais substantivo e a destinação final do seu ofício. Esses debates sobre aquilo que é e não é a História na atualidade, com os quais esse dossiê busca contribuir, tem, portanto, o olhar voltado para o futuro: trata-se de buscar entender aquilo que a História pode e deve ser caso queira manter seu papel de agente privilegiado da compreensão da realidade social, uma missão particularmente importante num momento em que a História passa a ser não apenas debatida, mas também recusada e mesmo atacada em diversos espaços públicos fora dos muros universitários.
Do ponto de vista de uma história das ideias, um dos aspectos mais interessantes daquele quadro geral das preocupações das ciências humanas e sociais é a revaloração do sentido da atual “crise” entre os historiadores. Um século atrás, quando se falava em “crise da razão”, interpretada a partir das novidades radicais e desconcertantes trazidas pela física, os filósofos (sobretudo os franceses, mas também alemães) buscaram encontrar uma saída positiva àquela perda de confiança nas verdades supostamente imutáveis do pensamento científico. A “crise” se tornou uma abertura, uma oportunidade para repensar o que era esse sujeito do conhecimento e o próprio sentido da palavra ciência. No entanto, e um pouco paradoxalmente, enquanto a filosofia reconhecia os racionalismos regionais, isto é, admitia a existência de formas de racionalidade múltiplas (momento em que a velha Teoria do Conhecimento dá lugar à Epistemologia), os historiadores, buscando afirmar a cientificidade da sua disciplina, seguiram sustentando a ideia de unidade da ciência, uma unidade baseada no tripé teoria-método-objeto, segundo o modelo que acreditavam ser o das ciências mais bem estabelecidas. Se, a partir daquele momento, a Teoria da História e Metodologia da História foram as disciplinas institucionalizadas para defender o conhecimento histórico da crise da razão, hoje, diante da “crise da história”, parece ser a Historiografia que é mobilizada, não para defender o velho ideal de História-Ciência, mas como forma de autorreflexão sobre os ideais e práticas de racionalidade a partir dos quais acreditamos produzir um conhecimento verdadeiro.
Através de uma historiografia epistemologicamente orientada, interessada tanto pelas práticas e categorias epistemológicas (fato, fonte, documento, evidência, testemunho, método, crítica etc.) quanto pelas virtudes epistêmicas (imparcialidade, objetividade, utilidade etc.), os historiadores perceberam que não apenas os conceitos, mas também os valores, a moral, as práticas, as performances e os espaços de institucionalização da história e de atuação do historiador profissional possuem histórias próprias, que nos convidam a pensar uma história das formas de objetivação da escrita da história, desnaturalizando antigas práticas e categorias que durante muito tempo foram tomadas como universais, mas que hoje sabemos se tratar de dados etnográficos, isto é, que emergiram num espaço determinado, a Europa, num momento específico da sua história intelectual, a Modernidade. Dessa forma, abrimos a possibilidade para uma reflexão sobre a alardeada “crise” da História, apontando para uma saída que não passe pela defesa das velhas cátedras cientificistas apoiadas no pretenso universalismo da razão, do método ou da ciência, mas que aprofunde a historicização do conhecimento histórico, sem nem por isso supô-lo menos comprometido com a tarefa do dizer verdadeiro. É justamente por isso que, nesse dossiê cujo título fixa nosso olhar no futuro, as contribuições vieram sob a forma de investigações sobre a chamada história da historiografia.
O artigo de Itamar Freitas de Oliveira sobre Ranke é um dos exemplos mais claros, nesse dossiê, do sentido da aproximação, praticamente transformada em expressão singular nos periódicos, congressos científicos e concursos docentes, dos termos “Teoria da História e História da Historiografia”. Nessa investigação sobre aquele que é frequentemente apontado como sendo o responsável por configurar o ideal de “história como ciência”, o autor propõe uma reflexão sobre um tema tão fundamental quanto geralmente irrefletido: o próprio significado da locução “Teoria da História”.
Dois artigos tratam diretamente da questão ética em Histórica, partindo do interesse demonstrado pela própria Teoria da História já há alguns anos. Marcelo de Melo Rangel, da Universidade Federal de Ouro Preto, nos apresenta um panorama historiográfico daquilo que tem sido chamado de “giro ético” (aqui, bem tipificado como “giro ético-político”), recenseando pressupostos e propostas de três autores de inegável relevância para os debates teóricos no país: François Hartog, Hans Ulrich Gumbrecht e Hayden White. Já Valeria Alejandra Olivares-Olivares propõe uma reflexão sobre como essa dimensão ética que se tornou central à Teoria da História ajudou a pensar e mesmo redefinir um aspecto da nossa profissão muitas vezes entendida como autoevidente: a função social do historiador. Esses dois artigos ajudam a historicizar esse papel público que tem sido ao mesmo tempo reivindicado pelos historiadores e reprimido pelos seus adversários, que, em nome de um pretenso ideal de objetividade, pretendem negar aos historiadores o direito de comprometer-se, por meio da produção de conhecimento, com as questões de seu tempo.
É justamente essa “serventia” do conhecimento histórico que é diretamente tematizada nos artigos de José Ferreira Júnior e Janaina Freire dos Santos e de Tiago Santos Almeida. O primeiro mostra, a partir de três exemplos buscados nas historiografias europeia, brasileira e nordestina, como a história pode estar a serviço da satisfação de demandas previamente determinadas, como a construção de um passado histórico exemplar, ou tem sido chamada a fornecer certo tipo de testemunho especializado em julgamentos sobre episódios passados e de forte repercussão no tempo presente. No segundo artigo, o objeto é a longa tradição de pensamento e práticas institucionais nas faculdades de medicina que reconheceu na história uma ferramenta privilegiada para a análise de uma realidade social marcada por profundas carências em saúde, e que constituiu o objeto do campo da Saúde Coletiva brasileira, bem como um motor de transformação epistemológica dos próprios conhecimento e práticas dos profissionais em saúde. É uma forma interessante de colocar em questão a falaciosa hierarquia entre os saberes imposta, pela ignorância, às políticas de educação superior e de desenvolvimento científico no país.
Longe de pretendermos respostas definitivas à pergunta que dá título ao dossiê, esperávamos entregar aos leitores de Ponta de Lança textos que apontassem alguns dos caminhos para a reflexão sobre o tema, como indicadores táticos das múltiplas articulações que a história continua a manter com os diversos aspectos de nossa vida social e intelectual. Nossos agradecimentos aos autores que contribuíram com esse projeto.
Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília. Professor Titular do Departamento de História / E-mail: afsa@ufs.br
Tiago Santos Almeida – Doutor em História Social – Universidade de São Paulo Prof. Dr. UFG / PNPD / CAPES E-mail: tsalmeida@ufg.br
SÁ, Antônio Fernando de Araújo; ALMEIDA, Tiago Santos. Apresentação. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.13, n. 25, 2019. Acessar publicação original [DR]