O pesquisador Fábio Py lançou, em junho de 2020, Pandemia cristofascista, publicação em formato e-book, pela editora Recriar. A obra é o quarto volume da série “Contágios infernais”, organizada por Fellipe dos Anjos e João Luiz Moura. O autor da obra em questão é doutor em teologia pela PUC-Rio e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). O texto de Fábio Py chama a atenção logo no título, que é justificado pelo próprio autor:
São reflexões que versam sobre o contexto e vivência da pandemia desde os primeiros casos do novo coronavírus, no território. No título, há o termo ‘cristofascista’ porque essa é a forma de governo que está gerindo o contexto da pandemia. ‘Cristofascista’ porque instrumentaliza seu mandato pelo fundamentalismo evangélico conservador (PY, 2020, p. 9).
O termo ‘cristofascista’ sem dúvida poderá evocar reações diversas em pessoas que não tenham leitura prévia sobre o fascismo e as relações peculiares deste com o Estado brasileiro e a religião, desde uma leitura teológico-política. O termo “Cristofascismo” remete à teóloga alemã Dorothee Sölle e tem sido previamente trabalhado por Py em artigos e ensaios publicados em alguns ambientes virtuais. Dessas primeiras articulações do autor, destacamos os artigos “Cristofascismo à brasileira na eleição de 2018”1, por ocasião da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, e “A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro”2, ambos publicados na página eletrônica da Carta Capital. Outras reflexões como em “Disposição cristofascista à brasileira na semana das eleições”3, publicada no site Ativismo Protestante, e mais recentemente, “Cristologia pascoal bolsonarista”4, publicada no site IHU, e “Cristofascismo em 7 atos: como Bolsonaro usou a alegoria da Páscoa para não perder popularidade”5, publicada em The Intercept, foram algumas iniciativas do autor em explicitar o termo em relevo. O livro Pandemia cristofascista é uma revisão e retomada de boa parte desses textos anteriores de Fábio Py, em formato acessível e de leitura fluida.
O autor parte do pressuposto de que a teologia pode e deve oferecer contribuições na leitura dos cenários políticos e de sua problematização. No caso brasileiro, religião e política estariam ligados por uma espécie de “teologia do poder autoritário” (PY, 2020, p. 9).
A análise de Fábio Py estabelece os pontos básicos de ligação entre a ascensão da teologia política autoritária do bolsonarismo, a visão fundamentalista da chamada bancada evangélica em Brasília e as linhas de discursividade e de simbolismo dirigidas ao povo, cujos mais vulneráveis sobrevivem sob constante ameaça e risco de morte em tempos de pandemia. Segundo o autor, “as grandes estruturas evangélicas são partes monumentais das forças que compõem o bolsonarismo” (p. 5). Em outras palavras, “as bases do bolsonarismo se plainam a partir da racionalidade religiosa” (p. 6). O autoritarismo em questão não apenas busca meios de arrefecer processos democráticos que ponham em relevo as diversidades e os direitos humanos, mas se configurou em uma postura irresponsável e anticientífica, ao notarmos demissões de ministros da Saúde em sequência, e, dessa forma, destilam-se insensibilidade e indiferença ante a dor de dezenas de milhares de famílias que perderam seus entes queridos para a devastação do novo coronavírus.
Estruturada em três capítulos, a obra enuncia algumas conexões entre religião e política, especialmente entre grupos evangélicos e o governo de Bolsonaro. No primeiro capítulo, Py apresenta uma síntese da fundação, ascensão e ações da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), considerando sua influência no Estado em termos de pautas conservadoras e com viés fundamentalista (p. 14). Inclusive, sob intervenções de pastores ligados a setores de movimentos pentecostais, como Silas Malafaia, Edir Macedo, R. R. Soares e com o protagonismo de políticos como o pastor assembleiano Marco Feliciano, a FPE vem funcionando, já bem antes das eleições de 2018, como sendo o próprio “sustento bolsonarista” (p. 11), desde então e até a época da pandemia de 2020. E ainda vale lembrar da mesma Frente também como “peça chave do golpe de 2016, que retirou Dilma do poder” (p. 19).
O segundo capítulo é a principal parte que mantém relação mais direta com o título do livro. “Cristofascismo em sete atos” (p. 24) indica uma sequência de episódios contendo referências teológicas presentes na construção das narrativas em torno de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores. O autor enfatiza, nesse contexto, que “o apelo à religião foi usado como estratégia de comunicação para a manutenção do caráter autoritário de seu governo” (p. 25). A construção de um imaginário a partir de alusões à Bíblia, ou de um messianismo difuso, com práticas e discursos religiosos em volta de um projeto de poder explícita ou implicitamente repressor, é o tema central das reflexões do capítulo. As implicações políticas em face de situações como a convocação para jejum, os usos da Bíblia em determinadas ocasiões de projeção nacional, a neurose anticomunista e a mania de conspiração inclusive durante a proliferação de covid-19, são características que perpassam a utilização que Bolsonaro faz de ferramentas teológico-políticas para manter determinada imagem diante da sociedade civil. Tudo isso não ganharia o mesmo vulto sem o apoio especial de parlamentares ligados à bancada evangélica e a setores conservadores do catolicismo.
Já o capítulo terceiro propõe um exercício de interpretação do livro bíblico de Levítico, demonstrando que a teologia pode contribuir com a valorização da vida e da justiça, e contra a necropolítica (p. 40) que tem sido gerada no contexto analisado pelo autor. A nefasta apologia ao bolsonarismo encontra eco em líderes evangélicos com grande alcance midiático como Silas Malafaia, cujo argumento, segundo Py, “colore o discurso eugênico de Bolsonaro com tons religiosos, inventando um cristo sacrificial” (p. 41). Isso diz respeito a uma leitura grotesca e perversa segundo a qual a economia e a manutenção do status quo mantêm primazia sobre a vida de pessoas, como se o sacrifício delas pelo vírus mortal fosse o “preço” a ser pago em nome do neoliberalismo que alimenta a união entre religião e Estado opressor. Em contrapartida, o autor oferece uma chave de leitura teológica da santidade enquanto expressão do cuidado (p. 45), indicando um caminho libertador em um contexto de pandemias, ao passo que evita o reducionismo das leituras fundamentalistas como as que se apresentaram em nossa recente história política.
Tendo realizado uma breve síntese de seu conteúdo, pontuamos também que a primeira edição de Pandemia cristofascista conta com diversos trechos grifados, imagens, gráficos e fotografias que aludem a cada questão ou fato exposto na reflexão, intencionando-se certa didática na própria editoração do material. Tratando-se de um e-book, a edição parece ter sido pensada como um registro conciso, objetivo e didático, acessível também a pessoas não iniciadas na temática estudada, embora possuindo o constante rigor acadêmico cultivado pelo autor em sua trajetória na pesquisa.
As leituras teóricas desenvolvidas na obra perpassam não apenas o pensamento propriamente teológico-pastoral (por exemplo, em Jon Sobrino, Dorothee Sölle, Milton Schwantes) ou teológico-político (Carl Schimidt), também em diálogo com a filosofia contemporânea (Giorgio Agamben, Walter Benjamin, Judith Butler, Achille Mbembe) e a sociologia do campo religioso brasileiro (Antônio Flávio Pierucci, Saulo Batista), entre outras áreas de estudo.
Em nossa visão, a obra de Fábio Py emerge nestes tempos como uma análise contundente ao denunciar a violência e a injustiça construídas sistematicamente e que resultaram no cenário sociopolítico apresentado no texto. Pequeno em extensão, mas um livro vigoroso em ideias, ao demonstrar a complexidade dos grupos evangélicos – mais precisamente os pentecostais – em suas formas de experiência política e em suas relações com o Estado brasileiro na contemporaneidade. Um livreto com um pouco mais de 50 páginas merece ser apreciado pela comunidade acadêmica, não apenas pela relevância do tema discutido e pela interdisciplinaridade que situa a teologia como interlocutora, mas também pela clareza e objetividade com que o autor transmite sua leitura dos projetos teológico-políticos hegemônicos no país.
Coloca-se o permanente desafio das ciências humanas quanto à análise das corporações religiosas e dos discursos teológicos que alicerçam governos autoritários como o de Jair Bolsonaro. Sabemos que essa é uma etapa de nossa história que faz parte de longa tradição de golpes, tendências antidemocráticas e regimes de exceção na América Latina. Mais do que uma reflexão teológica sobre a ascensão do bolsonarismo, fato que já tem sido discutido em outras abordagens, por Ghiraldelli Jr. (2019), Jessé Souza (2019) e Márcia Tiburi (2019), por exemplo, uma das contribuições de Fábio Py tem sido a busca pelo diálogo entre a produção acadêmica militante e as práticas das bases populares que em grande medida concentram-se nas igrejas pentecostais e neopentecostais, e têm amplo potencial para definir resultados eleitorais, como tem sido percebido há pelo menos três décadas. Por conseguinte, ao concluirmos a leitura do livro, pode-se indagar se desse mesmo grupo que ajudou a fortalecer o Cristofascismo, poderíamos esperar também uma resposta efetiva de renovação e fortalecimento das esquerdas no Brasil. A pandemia demonstrou a necessidade de se repensar e de se reinventar a experiência humana em todas as esferas e possibilidades. Em especial, com os antagonismos, conflitos e paradoxos que constituem a categoria do político, essa experiência ganhou contornos ainda mais elaborados.
Notas
1 PY, Fábio. Cristofascismo à brasileira na eleição de 2018. Carta Capital, Eleições, 21 set. 2018. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Eleicoes/Cristofascismo-a-brasileira-na-eleicao-de-2018/60/41803. Acesso em: 16 jul. 2020.
2 PY, Fábio. A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro. Carta Capital, Opinião, 11 jun. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-cristologia-cristofascista-de-jair-bolsonaro . Acesso em: 16 jul. 2020.
3 PY, Fábio. Disposição cristofascista à brasileira. Ativismo Protestante, Opinião, 5 out. 2018. Disponível em: https://ativismoprotestante.wordpress.com/2018/10/05/opiniao-disposicao-cristofascista-a-brasileira-na-semana-das-eleicoes . Acesso em: 16 jul. 2020.
4 PY, Fábio. Cristologia pascoal bolsonarista. Instituto Humanitas Unisinos, 17 abr. 2020. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598117-cristologia-pascoal-bolsonarista/. Acesso em: 16 jul. 2020.
5 PY, Fábio. Cristofascismo em 7 atos: como Bolsonaro usou a alegoria da Páscoa para não perder popularidade. The Intercept, 1º maio 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/05/01/cristofascismo-bolsonaro-pascoa/. Acesso em: 16 jul. 2020.
Referências
GHIRALDELLI JR Paulo. A filosofia explica Bolsonaro São Paulo: LeYa, 2019.
PY, Fábio . A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro. Carta Capital, Opinião, 11 jun. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/a-cristologia-cristofascista-de-jair-bolsonaro/ Acesso em: 16 jul. 2020.
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PY, Fábio . Cristofascismo à brasileira na eleição de 2018. Carta Capital, Eleições, 21 set. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Eleicoes/Cristofascismo-a-brasileira-na-eleicao-de-2018/60/41803 Acesso em:16 jul. 2020.
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PY, Fábio . Pandemia cristofascista São Paulo: Recriar, 2020.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
TIBURI, Márcia. Delírio do poder Psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação. Rio de Janeiro: Record, 2019.
Resenhista
Bruno da Silveira Albuquerque – Professor da Prefeitura Municipal de Itatiaia, RJ – Brasil. E-mail: poeta.bruno@gmail.com . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7577-9504.
Referências desta Resenha
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020. (e-book). Resenha de: ALBUQUERQUE, Bruno da Silveira. Evangélicos, bolsonarismo e a pandemia fundamentalista. Topoi. Rio de Janeiro, v. 22, n. 48, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
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