O México se prepara para comemorar o centenário de sua Revolução, considerada por vários historiadores daquele país não apenas um evento nacional, mas de alcance latinoamericano. Alguns líderes do processo revolucionário, como Emiliano Zapata e Venustiano Carranza, se referiam em seus discursos e escritos à influência regional desta primeira revolução social da América Latina, no século XX.
A historiografia mexicana sempre dedicou um grande espaço à Revolução, mas a partir das décadas de 1960 e 1970 começam a surgir novas interpretações deste evento, assim como o resgate de alguns de seus personagens, até então marginalizados e tratados de forma preconceituosa. O livro do historiador Adolfo Gilly (La revolución interrumpida. México: El Caballito, 1971), por exemplo, mostra não apenas como o processo revolucionário é o resultado de um extraordinário avanço de um capitalismo primário-exportador que aprofundou a dependência do país em relação aos centros desenvolvidos, agudizando uma guerra de classes, mas também a periodização completa do ciclo revolucionário de 1910 a 1920 e sua correlação com a conjuntura mundial. Para Gilly, a curva da revolução ocorreu em dezembro de 1914, quando as forças camponesas tomam a capital do país, e não em fevereiro de 1917 com a nova constituição. Se para a história oficial a Revolução Mexicana termina em 1917, para outros ela vai até 1920, com a retirada de Villa e o assassinato de Zapata um ano antes.
O historiador mexicano Paco Ignacio Taibo II acaba de lançar o livro Pancho Villa – una biografía narrativa, no qual desconstrói toda uma carga de preconceitos contra este personagem, alimentada e estimulada durante décadas. Enquanto as estátuas de Zapata proliferaram pelo sul pobre do México, as de Villa sofreram todo tipo de resistência no norte desenvolvido. Quando se construiu uma em sua natal, Chihuahua (1956), o escultor, por ordem do governador, mudou o bigode e a testa. Na inauguração, as autoridades não só omitiram o seu nome nos discursos, como também na placa de bronze. Falou-se apenas do “combatente da Divisão do Norte”, cabendo ao povo que assistia gritar: Viva Villa, cabrones!
Na Cidade do México, só em 1969 apareceu o primeiro monumento ao Centauro do Norte. Em setembro do mesmo ano houve uma longa discussão na Câmara dos Deputados, com ampla repercussão na imprensa, sobre se o nome de Francisco Villa poderia ser escrito com letras de ouro naquele recinto, tal como dezenas de outros líderes e heróis. Somente no mês de novembro se chegou à permissão, passando a história oficial a aceitar mais um mito popular.
Paco Ignacio, em seu trabalho, mostra as várias etapas pelas quais passou Villa ao longo do processo revolucionário. Na primeira (1911-1912), Pancho se alia a Francisco I. Madero, filho de um oligarca do norte, que levanta o país contra o ditador Porfírio Diaz sob o lema sufrágio efetivo, não reeleição. Villa não apenas ajuda a mobilizar o estado de Chihuahua, mas também convence o líder sobre a radicalidade da Revolução. “Pois se é assim”, disse Madero, “vamos fazer”. Mais tarde, quando Madero já estava na presidência e Villa na prisão, este não deixou de ser fiel àquele, inclusive chamando-lhe a atenção para o golpe de Estado que se avizinhava.
Assassinado Madero, o prófugo Villa começa a sua segunda etapa de revolucionário (1913- 1915), a mais importante, por sua definição política, ideológica e social. Ele não apenas se alia a Álvaro Obregon, vindo da burguesia agrária, e a Venustiano Carranza, rico fazendeiro do norte, para derrotar o novo ditador Victoriano Huerta, reconhecido por ambos como o grande estrategista do exército irregular da Divisão do Norte. Villa busca apoio na população do país, prometendo uma mudança em sua estrutura política, agrária e social. A expropriação das grandes fazendas, a cobrança de impostos forçados das companhias mineiras estadunidenses e a pressão sobre os banqueiros visam ao financiamento de seu exército, mas também à distribuição de bens e víveres a toda uma população faminta. Para Villa, diz Paco Ignacio, “é chegada a hora dos pobres, que agora a revolta terá que enfrentar, sem titubeios, os grandes fazendeiros e os militares” ( p.177).
O decreto de 12 de dezembro de 1913, expropriando a oligarquia nortenha, apresenta as seguintes justificativas: por sua cumplicidade nos complôs, golpes de Estado e quarteladas; por seu caráter de defraudadores do erário público e dominadores da sociedade durante 50 anos através do engano e da força, “É chegada a hora de prestar contas” e como “a posse de seus bens somente serviu para comprar traidores e assassinar presidentes”, decidimos “cortar o mal pela raiz” (p. 251). Villa, então, lista as famílias e seus bens a serem tomados. Mais tarde seria decidido o destino das expropriações. De imediato, uma parte da terra seria doada para as viúvas e órfãos da Revolução; outra, para os combatentes; e uma terceira seria devolvida aos legítimos proprietários, já que a mesma fora roubada pelos latifundiários. Isso era a Revolução… Na medida em que ela avança, Villa vai deixando atrás de si grandes conquistas sociais, como a construção de escolas e hospitais, o controle dos preços de alimentos e as pensões para as viúvas e os órfãos.
Quando a Revolução de ativa se transforma em passiva, pactuada por uma nova burguesia agrária consubstanciada na aliança Obregón-Carranza com o apoio da classe operária, Villa entra em sua terceira etapa (1916-1920) com a guerra de guerrilha, passando a ser um fora da lei, perseguido pelos poderes constituídos mexicanos e pelo governo de Washington. O Centauro do Norte, então, radicaliza ainda mais suas ações para não perder o apoio social dos camponeses. Conhecido como o novo Robin Hood, não apenas tira dos ricos para dar aos pobres, mas também procura mobilizá-los. Em 1918, na região de Chihuahua, tem-se um verdadeiro poder dual: o do governador e o de Pancho Villa. As tropas do exército mexicano perseguiam os rebeldes e os camponeses que os apoiavam. Grande parte deles foi levada à força para as cidades grandes, vindo a morrer de fome, minando assim as bases de apoio a Villa.
Pancho Villa, perseguido pelo governo mexicano e boicotado pelo estadunidense que não mais lhe permite a venda de armas, aposta na conquista do apoio popular. Quando prende camponeses que lutam ao lado do governo, poupa-lhes a vida fazendo-lhes ver que, por serem gente de abajo, estão do lado errado; outras vezes, fuzila-os, não admitindo que um peão de fazenda lutasse pelo seu patrão. O general Felipe Ángeles, seu grande amigo, reunia as pessoas nos povoados falando-lhes de luta de classe, de sua condição de explorados, do capitalismo, da necessidade de humanizar a guerra e respeitar a vida dos prisioneiros.
Villa pensava em um país onde todos vivessem bem. Quando governou Chihuahua adotou como lema fechar cantinas e abrir escolas. O historiador Friedrich Katz chegou a chamá-lo de governador revolucionário, já que em apenas um mês abrira cinqüenta escolas em uma cidade com apenas 40 mil habitantes. Embora não tivesse um plano de reforma agrária como o defendido por Zapata, pensava nas colônias militares, onde os camponeses vivessem juntos, trabalhassem juntos e desfrutassem juntos de uma vida melhor. O socialismo para Villa não consistia em uma sociedade sem classe, mas em uma maior igualdade entre as pessoas. “É justo que todos aspiremos a ser mais”, dizia ele, “porém, também que todos possamos valer pelos nossos feitos” (p. 793).
No calor das batalhas de Celaya, em maio de 1915, o governo villista emitirá vários decretos, assinados por Pancho e Escudero, constituindo um programa social avançado. Obrigam, por exemplo, que em todas as minas do país sob o controle villista seja pago um salário em prata, ouro ou dólar. Estabelece-se o cambio oficial do dólar em relação ao peso em dois por um; proíbem-se as famosas tiendas de raya, ou seja, as vendas de produtos alimentícios aos camponeses pelo próprio fazendeiro; decreta-se o salário mínimo de um peso diário e defende-se a liberdade de culto e o fim da perseguição religiosa. Villa, no entanto, detestava o clero, pois foram os grandes apoiadores ideológicos da ditadura porfiriana. Quando tomava as cidades não os matava, mas expulsava. Depois da tomada de Zacatecas prendeu um grande número de padres professores lasallistas, tendo o cônsul francês intercedido por eles. Alguns dias depois recebeu o diplomata um oficial villista muito educado que lhe comunicava que os curas poderiam continuar a trabalhar na cidade, conquanto que, ao invés de aulas de religião, passassem a ensinar as Leis da Reforma (as mesmas que durante a república juarista despojava a Igreja de seus poderes) e trocassem as missas por atos cívicos. Diante da negativa dos padres, Villa cobrou um resgate de 100 mil pesos, metendo-os em um carro de carga ferroviária e enviando-os aos Estados Unidos. Gregório López y Fuentes, em seu livro Tierra – la revolución agrária em México, descreve em detalhes a visita de um curita a uma fazenda do Estado de Morelos, por volta de 1910.
Sem dúvida, a aliança entre o dono das almas e o dono das terras mantinha uma ditadura quase que perfeita.
Quando Villa assina um acordo de paz com o governo em 28 de julho de 1920, que alguns chamam de rendição, recebe a fazenda de Canutillo para morar, transformando-a em uma casa de todos os villistas. Além de uma escola diurna com 400 alunos, havia uma noturna para alfabetizar os adultos. Os salários dos trabalhadores eram os mais altos da região, participando muitos deles dos lucros das vendas dos produtos.
O Manifesto de San Andrés Villa (1916) foi, possivelmente, o documento mais genuinamente de Pancho. Sem a ajuda de intelectuais, tendo apenas um secretário a sua disposição, tratou de política interna e externa. Defende eleições livres no México com pena de morte para os que fraudarem o voto do povo; que os caudilhos – e ele incluído – não poderão se candidatar, pois dispõem de grupos armados, tornando ilegítimas as eleições; que deputados e senadores que usarem de seus cargos para fazer negócios duvidosos “que redundem em proveito próprio com prejuízo da coletividade” serão passados pelas armas; e propõe a volta das Leis da Reforma do juarismo, uma bandeira dos intelectuais villistas.
No entanto, o mais importante do manifesto é o seu programa antiimperialista: abolição da dívida pública e proibição aos estrangeiros de serem proprietários de terras no México; nacionalização das minas estrangeiras e das ferrovias, e o fechamento da fronteira com os Estados Unidos para promover a indústria nacional; supressão do telégrafo a 18 léguas da fronteira. Chega a falar, mais tarde, em uma entrevista para o New York World, sobre a abertura de um fosso entre os dois países, “tão largo e profundo que nenhum americano poderia jamais vir a roubar terra mexicana, ouro ou petróleo”. (p.675).
Quando Lázaro Cárdenas nacionalizou o petróleo, em 1938, por certo haverá de ter se lembrado as palavras de Villa sobre a proteção das riquezas do país diante do vizinho voraz.
O antiimperialismo de Villa se tornou público quando Washington reconhece o governo de Carranza, proíbe a venda de armas à Divisão do Norte (até então as empresas estadunidenses haviam auferido grandes lucros com a venda de armas e alimentos) e permite a passagem de tropas mexicanas por território estadunidense para combater as de Villa na cidade fronteiriça de Água Prieta. Daí a famosa invasão a Columbus, nos Estados Unidos, que motivou a entrada de uma expedição punitiva no México de tropas do exército vizinho, as quais fortaleceram ainda mais a guerra de guerrilhas de Villa, agora não mais contra o ditador Carranza, mas também contra as forças do general Pershing. Villa tornara- se o inimigo comum dos invasores estrangeiros e do governo constitucionalista, mas, caso o exército de ocupação não saísse do México, Pancho poderia converter-se em herói nacional em vida.
Villa calculava ter participado de aproximadamente 1.300 batalhas, algumas delas famosas, como a conquista de Ciudad Juárez, conhecida como o trem de Tróia. As tropas villistas, depois de assaltarem uma locomotiva carregada de carvão, obrigaram o telegrafista a se reportar à cidade de origem dizendo que os revolucionários haviam bloqueado o caminho. Recebeu ordens o maquinista de pôr imediatamente a locomotiva em marcha à ré, não sabendo a estação central que os vagões de carga já transportavam o exército de Pancho. Em cada povoado que passava, o telegrafista local era forçado a dizer a Ciudad Juárez por que estava o trem regressando. Uma vez passada a mensagem, o telégrafo era cortado. Assim, o trem de Tróia meteu no coração da cidade o exército completo da Divisão do Norte. Mais tarde Villa diria que na Ciudad Juárez ele não teria entrado de trem, mas que ela lhe havia caído do céu. Juárez tornou-se a meca do villismo.
Ramón Puente, um de seus colaboradores, assim definiu Villa: “Coragem até a temeridade; desprendimento até a gastança; ódio até a cegueira; raiva até o crime; amor até a ternura; crueldade até a barbárie; tudo isso é Villa em um dia, em um momento, em todos os momentos da vida”(p. 564). Paco Ignacio diz que “Villa era o produto das forças mais obscuras da sociedade porfiriana, porém não daquelas superficiais, mas destas mais profundas que faziam de um camponês pobre um condenado a uma vida de presídio, carne de troca nas grandes fazendas, carne de canhão do exército, operário faminto das novas minas e das indústrias” (p. 44).
O livro de Paco Ignacio Taibo II sobre Villa, e conseqüentemente sobre o villismo e a Revolução Mexicana, desfaz preconceitos, corrige equívocos históricos e mostra como a ala radical do movimento armado foi vencida por uma burguesia agrária nascente que teve o apoio decisivo dos Estados Unidos.
O autor apresenta mais de 400 fotografias, algumas delas inéditas, ao longo do livro, corrigindo legendas e cometendo alguns exageros em suas interpretações. Faz falta no livro um índice remissivo de nomes e datas, tendo em vista a extensão da obra e a necessidade de recorrer a alguns deles para rever e analisar fatos. O leitor está diante de uma grande obra, de um grande historiador e escritor, sobre um grande líder da Revolução Mexicana.
Resenhista
Waldir José Rampinelli – Departamento de História, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Referências desta Resenha
TAIBO II, Paco Ignacio. Pancho Villa – una biografía narrativa. Cidade do México: Planeta, 2006. Resenha de: RAMPINELLI, Waldir José. Francisco Villa: Bandido ou Herói?. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 6, p.130-135, 2007. Acessar publicação original [DR]
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