A Secretaria de Ordem Pública do Rio de Janeiro, em setembro de 2019, por ordem do então prefeito Marcelo Crivella, realizou uma operação na Bienal do Livro com o objetivo de encontrar “material impróprio para crianças e adolescentes”. O livro em questão, uma HQ voltada ao público infantojuvenil, tinha uma cena de beijo gay. Foi a primeira vez que uma ação desse tipo aconteceu no evento, entretanto não foi a primeira vez que a literatura de diferentes estilos foi alvo de censura. Pinochet, no Chile, mandou queimar livros considerados comunistas, e a ditadura civil-militar no Brasil apreendia livros com temática política. Sendo assim, governos autoritários, ou não, utilizam da instituição do Estado para reprimir e censurar a cultura, e Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, não foi diferente. É essa temática que a historiadora e letrista Gabriela Grecco apresenta em seu livro Palavras que resistem: censura e promoção literária na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945).
Diversas pesquisas sobre o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e a censura realizada durante o Estado Novo estão presentes na historiografia sobre a temática, entretanto a obra em análise vai além disso. Buscando a origem da censura no Brasil, a autora apresenta no seu primeiro capítulo, Censuras antes do Estado Novo, a estruturação da prática ainda no período colonial, assim como salienta que foi entre o período colonial e a emancipação política do Brasil que a liberdade de imprensa surgiu. Contudo, a autora não apresenta somente o período colonial como importante para entender a complexidade da participação da imprensa brasileira. Sob essa perspectiva, passando pelo período Imperial, as Regências, a República, a belle époque, a inauguração da Academia Brasileira de Letras, a política do café com leite, a Assembleia Constituinte de 1933, entre outros momentos significativos para a temática, ela demonstra com uma detalhada pesquisa que a relação entre o Estado e os escritos sempre foi constante.
Grecco inicia o segundo capítulo, denominado A censura literária durante Estado Novo, caracterizando o Estado Novo e reforçando a função que a ditadura dava à cultura: “devia concordar com a ideologia da nova sociedade idealizada pelos protagonistas do regime.” (Grecco 2021, 41). A autora reforça, então, que a visão do regime varguista em relação à literatura era ambígua, pois ao mesmo tempo que identificava o livro como um “guardião da memória”, percebia o potencial subversivo que as obras poderiam tomar e, por isso, ela busca colocações do então Ministro da Educação, Gustavo Capanema. É ainda no capítulo em análise que é apresentada a função dupla que a ditadura varguista via na literatura; se, por um lado, poderia disseminar ideais contrários ao regime, por outro, poderia contribuir para a construção de uma identidade nacional, que era tão buscada nesse período. Essa percepção de Grecco já deixa claro que nas páginas seguintes essa “dupla função” será constantemente trabalhada.
Para compreender de quais formas o Estado varguista assolou a liberdade de expressão de seus contrários, Grecco faz um estudo minucioso sobre o funcionamento dos principais órgãos de controle: o DIP e o DOPS. Nesse sentido, ela expõe ao leitor diversas estratégias que os órgãos utilizaram, desde questões tributárias até o subsídio ofertado pelo regime para aqueles que aceitassem as orientações do governo.
É a partir desse momento que Grecco traz à luz sua formação no curso de Letras e apresenta diversos literários que tiveram suas liberdades ceifadas. Temáticas como desigualdade social, críticas à Igreja, comunismo e condenação da elite eram frequentemente perseguidas pelos órgãos controladores. A autora apresenta literários que tiveram suas obras perseguidas, queimadas, censuradas e apreendidas durante o regime varguista; de Jorge Amado a Monteiro Lobato, o Estado Novo queria garantir que o ideal de cidadão brasileiro e a identidade nacional não correriam riscos. A partir das escritoras Patrícia Galvão (Pagu) e Haydée Nicolussi, a autora apresenta o caráter conservador que o Estado Novo tinha. Essas mulheres são, por vezes, caracterizadas a partir de ideais de gênero e recebem títulos como “amante” e “subversivas” em documentos oficiais, porém são essas mulheres que servem de prelúdio ao terceiro capítulo, para uma parte extremamente importante e que serve de subtítulo para a obra: a resistência.
No terceiro capítulo, intitulado de Resistências à política literária estadonovista, Grecco cria suas próprias categorias de análise da resistência contra o regime varguista, a fim de garantir que não haveria, como coloca a autora, uma “romantização” ou supervalorização de atos de resistência. É interessante notar que o substantivo vem no plural: resistências. Isso ocorre porque a autora quer demonstrar, durante todo o capítulo, que o Estado Novo precisou lidar com diferentes formas, em diferentes esferas sociais, desse imbróglio que, durante todo o regime, se fez presente. A detalhada pesquisa, que categoriza as resistências dentro e fora do regime, vai além disso: faz subdivisões com o intuito de demonstrar ao leitor as diversas formas de resistência que ocorreram durante o Estado Novo, o que permite pensar, como coloca a autora, que as formas de resistências não vieram somente “de baixo” ou de organizações políticas. É nesse capítulo que a literatura é apresentada como “porta-voz de todas as oposições políticas, em um passo decisivo para o fim do Estado Novo.” (Grecco 2021, 102)
Antes de decretar o “fim” do Estado Novo em sua pesquisa, Grecco apresenta aos leitores seu quarto capítulo Os livros da Nação. Nesse capítulo, a autora mostra como a ditadura varguista utilizou da literatura e de órgãos oficiais, como o Instituto Nacional do Livro, como “mediadores simbólicos entre o popular e o nacional.” Assim, ela deixa claro que um projeto de nação sempre se fez presente durante o Estado Novo, tão presente que até mesmo negociações entre a ditadura varguista e o regime de Benito Mussolini na Itália para a produção da Enciclopédia brasileira por empréstimo de equipamentos italianos foram feitas. (Grecco 2021, 110) Então, a partir desse capítulo, demonstra, página por página, como o regime de Vargas utilizou de diferentes ferramentas para aparelhar espaços tanto físicos, como as bibliotecas públicas, quanto simbólicos, como os intelectuais.
Nessa perspectiva, romances considerados clássicos e muitas vezes lidos pelos estudantes na educação básica até hoje foram frutos dessa construção identitária do período. Além dos romances, o projeto de Enciclopédia brasileira surge como ferramenta singular para a construção desse ideal nacionalista, dialogando com diferentes classes sociais brasileiras. Contudo, a autora destaca a dificuldade de fazer esse projeto tomar as proporções desejadas: a desigualdade social, que apresentava o expressivo número de mais de 60% da população brasileira analfabeta. E, por isso, a presente pesquisa se faz tão relevante. Ao apresentar o funcionamento da relação do Estado Novo com o INL e as bibliotecas públicas de todo Brasil, é possível perceber o projeto de nação que a ditadura desenhou durante todo o seu regime. A escrita mostra a importância de, ao se falar do Estado Novo, não se concentrar somente na figura de Getúlio Vargas (apesar de ter como característica o paternalismo), mas sim em todo o conjunto de intelectualidade que envolvia o regime. O Estado Novo, a INL, a Enciclopédia brasileira e algumas produções literárias faziam parte de um projeto de governo pensado por várias cabeças.
O projeto de um Brasil leitor englobava diversas esferas, desde a criação da INL, o incentivo à leitura nas bibliotecas públicas, a redução de preço dos livros para incentivo às bibliotecas particulares, às temáticas de interesse da população, além, é claro, de uma impressão em massa para propagação dessas leituras. Grecco afirma que, apesar de conter na historiografia um debate sobre a participação do INL enquanto um veículo de propagação dos ideais do regime, pode-se pensar que “o Instituto figurou como um dos órgãos que deu lugar a um sistema de universalização de valores pertencentes à classe dominante e foi um eficiente instrumento do poder estatal.” (Grecco 2021, 126)
Outros instrumentos do poder estatal foram as premiações e os concursos literários durante o período em análise. Sob essa perspectiva, a Academia Brasileira de Letras e outras premiações são objetos de estudo nesse capítulo e permitem que o leitor perceba os ideais do regime durante sua duração. A literatura como forma de reforçar os valores culturais e a participação feminina nessas premiações é sintomática para se compreender a cultura política do período. Grecco deixa muito claro que, ao pesquisar as mulheres literárias do período, deve-se reparar que as mulheres negras ocupam um espaço diferenciado. A liberdade feminina, trazida muitas vezes pela literatura, é uma liberdade branca; às mulheres negras é reservado um espaço ainda mais distante das premiações.
Logo, durante toda a obra, percebe-se a relação do Estado com a literatura e, como apresenta a autora, o papel fundamental que os livros têm em um regime como o Estado Novo. Nesse sentido, a literatura tem tamanho poder que interfere direta e indiretamente na sociedade e participa da construção de uma identidade nacional como a desejada por Vargas. Contudo, a diferença está se a literatura contribuirá para o discurso dominante ou se será subversiva.
Referência
GRECCO, Gabriela de Lima. Palavras que resistem: censura e promoção literária na ditatura de Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2021.
Resenhista
Vitória de Almeida Machado – Mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduada em História pela Faculdade Porto-alegrense (FAPA). Autora da dissertação “Para além de bordadeiras: a representação feminina nos periódicos Jornal das Moças e Modas e Bordados durante os Estados Novos (1937-1945)”. E-mail: vitoriamachado.historia@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9210-1970
Referências desta Resenha
GRECCO, Gabriela de Lima. Palavras que resistem: censura e promoção literária na ditatura de Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2021. Resenha de: MACHADO, Vitória de Almeida. Dominante e subversiva: a literatura na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945). Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.1, p. 450- 454., 2021. Acessar publicação original [DR]
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