Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa | Eva Eisenstaedt
Nos primeiros anos que sucederam os períodos ditatoriais em diferentes países da América Latina, foi possível observar uma ampla produção acadêmica direcionada às questões macroestruturais destes regimes. Nas mais diversas áreas das ciências humanas, buscava-se compreender as estruturas políticas, econômicas, repressivas e ideológicas que permeavam estes modelos autoritários e seus funcionamentos. Embora tenham sido extremamente relevantes e importantes para entender melhor o contexto em questão, com o passar dos anos foi notória a necessidade de se ampliar a pesquisa histórica, seus objetos de estudo e análise. Diante desta perspectiva, produções centradas em assuntos que até então não haviam sido problematizados começaram a surgir e enriquecer o entendimento acerca do tema, evidenciando os indivíduos desta história. Neste contexto, está situado o livro “Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa” (2014) da autora Eva Eisenstaedt.
Eva Eisenstaedt natural de Buenos Aires é formada em Ciencias de La Educación pela Universidade de Buenos Aires – UBA, e na “Primera Escuela de Psicología Social” de Buenos Aires. A autora ficou conhecida com o livro “Sobrevivir dos veces. De Auschwitz a Madre de Plaza de Mayo” (2007) no qual conta a história de Sara Rus.[1]
“Padres de Plaza de Mayo” é constituído de uma compilação de entrevistas realizadas com doze pais de desaparecidos por razões políticas na última ditadura civil militar argentina: Bruno Palermo, Mauricio Brodsky, Ángel Lepíscopo, Ricardo Braverman, JulioMorresi, Abraham Dyszel, Julio Lareu, Marcos Weinstein, Teobaldo Altamiranda, Benjamín Schwalb, Lisandro Cubas e Oscar Hueravilo Curihuinca.
Respectivamente nesta ordem, seus doze capítulos são construídos com os testemunhos de cada pai e uma foto do acervo pessoal dos entrevistados, na qual pais e filhos aparecem juntos. Um importante recurso frente à tentativa de retirá-los do âmbito do anonimato. Embora não seja historiadora e sua obra não tenha a pretensão de ser acadêmica, é possível observar uma preocupação teórica e metodológica com relação às entrevistas e suas transcrições. Da mesma forma, é necessário dar o devido crédito ao fato de Eisenstaedt ter publicado uma das poucas obras escritas conhecidas sobre os “Pais da Plaza de Mayo”[2].
Implementada entre os anos de 1976 e 1983, a última ditadura civil militar argentina foi um período no qual se fez uso de uma ampla composição repressiva, estatal e clandestina frente às manifestações de resistência ao novo projeto. Em meio a este contexto surgem diversas organizações encabeçadas principalmente por familiares de vítimas diretas da repressão ditatorial, e seu entorno social, buscando “seus” desaparecidos. Apesar disso, não foi possível observar uma agrupação exclusivamente paterna, como se observou com as mães, e muito menos, conhecer a atuação e busca destes homens, ainda que estivessem inseridos em outros grupos.
Esta “luta silenciosa” gera muitas interrogações, e, sobretudo interesse da sociedade civil e da comunidade acadêmica. A preocupação da autora está em evidenciar o tema e desenvolver um espaço de fala (assim como de escuta). Para tanto, Eisenstaedt opta pelas entrevistas que contemplam o modelo de “história de vida” nas quais são percorridas suas narrativas pessoais desde a juventude – em alguns casos até mesmo da infância – até o momento em que se entrelaçam aos acontecimentos do último golpe civil militar no país.
Mesmo que a autora não desenvolva uma “análise crítica” a respeito das narrativas ao longo do livro, é na introdução que observamos algumas colocações que aclaram sua interpretação (todavia não aprofundada) sobre o silêncio em torno dos pais. Na introdução ela descreve a curiosidade em conhecer os pais e suas experiências em relação ao desaparecimento dos filhos. Aponta que o lugar dos pais ficava apenas no campo imaginativo, intuitivo. A partir disso, faz referência às questões de gênero envolvidas neste processo, “timidamente” ela afirma:
Venía dándole vueltas a la idea del libro y la pregunta se reiteraba entre amigos y conocidos: “¿Cómo si te ocurrió pensar en los Padres de Plaza de Mayo?”. A decir verdad, no lo sabía. Quería conocer más acerca de los Padres. Sospechaba que habrían compartido con sus mujeres el enorme desamparo ante la desaparición de sus hijos. Partía de la evidencia de que en nuestra cultura, tradicionalmente, los hombres ocupan un rol asociado al género y sus sentimientos son procesados en forma diferente. Sin embargo, no era suficiente reconocerlo. ¿Por qué se los había notado tan poco? (EISENSTAED, 2014, p.15-16).
A partir do primeiro capítulo, entramos em contato com as entrevistas. Introdutoriamente existe um breve relato da autora sobre a forma como se deu o contato e o primeiro encontro com o entrevistado em questão, o que aproxima e sensibiliza o leitor da história a ser contada. Igualmente, no final de cada narrativa Eisenstaedt relata de forma detalhada como ocorreu o desaparecimento dos filhos. Tal relato conta com nome completo, idade destes jovens, o local e forma de seqüestro, a data do desaparecimento, o centro clandestino de detenção para o qual foram enviados e algumas informações complementares sobre a participação dos pais em causas judiciais posteriores.
De forma geral, alguns elementos se destacam e aparecem repetidamente nas falas. É possível iniciar com uma questão muito presente nas narrativas, a divisão de tarefas entre pais e mães. Deparamo-nos com trechos de entrevista que afirmam a importância e a necessidade destes homens seguirem trabalhando e provendo a casa financeiramente e, que devido a esta obrigação, seu tempo para as atividades diárias de busca por informações dos filhos era bastante limitado. Eles executavam tarefas bastante burocráticas como reuniões com militares e funcionários públicos que pudessem fornecer quaisquer informações. Suas aparições públicas eram marcadas pela discrição, sem o mesmo “protagonismo” das mães, principalmente, no espaço da Plaza de Mayo. Alguns pais afirmam que eram impedidos pela polícia, e pelas próprias mães, de adentrar a praça.
Outro ponto comum das entrevistas é muito importante e revela a prática da “desinformação”, sobretudo, por parte do Estado por meio dos próprios agentes repressores. Mentiras sobre o paradeiro dos desaparecidos, pistas falsas sobre pessoas que pudessem dar maiores esclarecimentos sobre o ocorrido, e informações mentirosas eram apontadas para desestimular a busca. Alguns detalhes sobre farsantes que pediam dinheiro em troca de respostas sobre as tantas dúvidas que pairavam nas cabeças destes pais, além de promessas para retirar os jovens do país, também aparece nas falas.
No depoimento de Julio Morresi se exemplifica muito bem a situação referenciada. Na época do desaparecimento de seu filho, Norberto, foi procurado por uma mulher que dizia ter informações sobre ele e que por uma quantia em dinheiro conseguiria retirá-lo do país:
“Yo pude pasar a verlo al flaquito. ¡Qué parecido es a usted!” Entonces le toma la mano a mi mujer y le dice: “¡Tiene la misma mano y la misma piel! Su hijo en lugar de querer comer, solo pide manzanas verdes”. Cuando escuchamos eso, nos abrazamos y besamos con mi mujer. Era lo que hacía mientras estudiaba. […] Empezamos a creerle otra vez, pero nos pidieron mucha plata […] No solo era una estafa económica, era una estafa moral terrible. Le dimos todo lo que pudimos. “Le hicieron documentos falsos para salir. El martes lo van a sacar en una camioneta para el traslado en avión” (EISENSTAED, 2014, p.70).
Ao descreverem os desaparecimentos dos filhos, os entrevistados recaem em delicadas questões emotivas que revelam seus sentimentos controversos de culpa, e em alguns casos até de arrependimento. É perceptível a sensação de “insuficiência” que estes homens externam ao evidenciar que “deveriam” ter tirado os filhos do país, mesmo que eles insistissem em ficar. Que poderiam tê-los protegido de alguma forma. Também quando suscitam a possibilidade de terem influenciado os filhos politicamente por suas histórias pessoais de envolvimento seja com partidos políticos, ou com grupos sindicais, trabalhistas, entre outras questões.
Em suma, é possível afirmar que as entrevistas revelam algo que parece óbvio mas que até então não havia sido documentado: os pais estiveram presentes na busca por seus filhos nas rondas históricas na Plaza de Mayo, e até mesmo com as mães, suas companheiras. O livro cumpre sua função de criar um espaço de visibilidade paterna e principalmente, consegue ser extremamente acessível já que não se constitui enquanto uma pesquisa acadêmica, sendo objetivo e conciso. Ao assumir o compromisso de, com suas ferramentas de escritora, “contar” a história destes pais, Eisenstaedt toma o projeto como uma dívida social pendente e ajuda a publicizar e popularizar o tema.
Notas
1. Sara Laskier de Rus foi uma judia vítima da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, fugiu para Argentina em 1948 com seus pais e em 1977 “tornou-se” uma Mãe da Plaza de Mayo devido ao desaparecimento forçado de seu filho, Daniel.
2. O livro começou a ser produzido em 2010, mesmo ano em que foi lançado o documentário argentino “Padres de la Plaza: 10 recorridos posibles” que igualmente interroga a visibilidade dos pais e as buscas aos filhos desaparecidos. Atualmente também está disponível a dissertação sobre o tema: CASTELLI, Natasha Dias. Redesenhando o papel paterno. Memórias e atuação dos pais da Plaza de Mayo: da invisibilidade à confrontação do papel materno.144f. Dissertação (Mestrado), Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo, RS, 2015
Resenhista
Natasha Dias Castelli – Mestre em História pela Unisinos. E-mail: Natasha.dias.castelli@hotmail.com
Referências desta Resenha
EISENSTAEDT, Eva. Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa. Buenos Aires: Marea, 2014. Resenha de: CASTELLI, Natasha Dias. Memórias dos pais da Plaza de Mayo. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.5, n.16, p. 257-260, ago./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]