Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS | Júlia Rocha (R)

Júlia Rocha | Imagem: Canal Júlia Rocha |

Está expresso na constituição brasileira, conhecida como constituição cidadã, promulgada em 1988, que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” [2]. Entretanto, para que a saúde se tornasse direito de todos e dever do Estado houve um longo processo de reformas e lutas políticas e sociais. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o coroamento desse processo, já que a saúde como um direito da população pode ser acessada por meio dele um sistema que se pretende “público, universal e descentralizado” (PAIVA & TEIXEIRA, 2014). Fortalecê-lo, portanto, é assegurar que brasileiros e brasileiras possam exercer plenamente a sua cidadania.

O livro “Pacientes que Curam: O cotidiano de uma médica do SUS”, não narra uma experiência ou um ambiente exclusivamente de assistência hospitalar – como o título pode sugerir. Em vez disso, nos apresenta as vivências de Júlia Rocha – mulher, negra que trabalha como médica de família e comunidade no SUS [3] – com pouco mais de 10 anos de carreira. Graduada em medicina no ano de 2010 e com residência médica concluída em 2015, a autora destaca a partir de sua formação e experiência profissional que o “cuidado em saúde é algo impossível de se fazer só” (ROCHA, 2020, p: 301). Assim, embora o livro não faça referência à história institucional do SUS, ele nos apresenta questões fundamentais para a reflexão sobre a importância desse sistema e sua atuação diante das mais profundas contradições brasileiras.

Narrando suas experiências como médica em regiões periféricas das cidades do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, a autora nos apresenta uma obra sensível, em linguagem simples e potente. Com prefácio, 74 crônicas e uma seção de agradecimento, o livro revela mais do que o ordinário no cotidiano de uma médica, pois trata também da realidade de um país que tem problemas históricos – muitos ainda não superados, como o racismo, o machismo, a desigualdade social, a fome, a pobreza, entre tantos outros. Problemas que persistem e, que no diagnóstico da médica e autora do livro, estruturam um precário contexto sociocultural que adoece milhões de pessoas. Tornando os medicamentos ou qualquer outro esforço pouco efetivos. Em um prefácio de seis páginas – quantidade de páginas maior do que alguns contos -, a autora se apresenta, descrevendo o período em que iniciou a graduação em Medicina. Depois de formada, iniciou os seus trabalhos no SUS e, em suas palavras, foi ali que se tornou a médica que é atualmente. Exercendo a medicina nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA 24h) ou nas visitas domiciliares, a autora teve contanto com aquilo que ela definiu como “injustiças e precariedades”. A partir das vivências e interações com as pessoas mais afetadas pelos problemas estruturais do país, Rocha diz que teve tempo de se encantar com as histórias contadas, de “abraçar muito aquelas pessoas, de receber os presentes que colhiam em suas hortas, os queijos que eles próprios faziam. Houve tardes de encontro com a comunidade, café, batizado e casamento. Eles me salvaram” (ROCHA, 2020, p: 16).

“Pacientes que curam” são rememorados nas crônicas que variam em tamanho, com a menor tendo apenas uma página (Telefone) e a maior contando seis (Sofrimento de Mulher). Mais do que as dores e os recursos para remediá-las, as crônicas nos informam sobre um Brasil preso aos valores patriarcais, racistas e morais, um Brasil – que, como disse a autora: “insiste em sobreviver”. Revelam isso crônicas como “Bomba-relógio”, que narra o caso da paciente Glória, diabética e deprimida, para quem sobreviver ao marido abusivo e a falta de recursos vinha “antes da insulina”.

Outras crônicas apresentam o perfil de atuação da Medicina de Família e Comunidade, cujos profissionais se acham envolvidos com várias ações, tal como prevenção, cura e reabilitação. E, dessa forma, acabam por contribuir com a ampliação do entendimento de saúde, para além da dicotomia: ausência ou presença de doença. Em “Um calmante, por favor”, por exemplo, a autora nos apresenta a criança Vitória que preocupava a mãe com sua agitação e nervosismo. Observando o comportamento da criança durante uma de suas consultas – Vitória brincava com dois bonequinhos e simulava que se beijavam -, a médica surpreendeu a mãe, que esperava receber um calmante, dizendo que, aparentemente, a agressividade da filha parecia ser uma forma encontrada por ela para pedir socorro. Amparadas pela equipe da Unidade Básica de Saúde, composta por um profissional das seguintes especialidades: médico, psicologia infantil, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psiquiatria infantil, enfermagem, agente comunitário de saúde e assistência social ocorreu a identificação da situação de abuso sexual sofrida pela criança – o que acontecia sem o conhecimento da mãe, e os cuidados com Vitória e sua família foram iniciados.

Uma das poucas exceções ao conjunto das narrativas aparece na crônica: “Um passeio pelo meu corpo padrão. O meu padrão”, no qual a autora descreve a sua aparência e discorre sobre o quanto se sente bem consigo mesma. Nos evidenciando, portanto, que o fato de ser uma mulher negra a tenha permitido uma percepção mais aguçada dos desafios e contradições que acompanhariam as demandas de seus pacientes no SUS.

Portanto, a escrevivência [4] da autora produziu narrativas que tratam de uma médica de família que se permitiu transformar com as interações que estabeleceu com seus pacientes. Ela destaca vínculos que, em alguma medida, permitiram a médica (e autora) perceber nuances no processo de adoecimento que acometia seus pacientes, e também nuances de um SUS que se faz cotidianamente presente na vida de todos os brasileiros e brasileiras. O livro é sobre isso, sobre a importância desse sistema e a necessidade de fortalecê-lo para que o seu principal pilar: saúde para todos, seja exercido por toda a população. Cumprir esse propósito, em um país marcado por contradições e baixos indicadores sociais como o Brasil, continua sendo o maior desafio.

Notas

2. Brasil. Lei º 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.

3. Médica de família refere-se a uma especialidade médica que presta assistência à saúde continuada, integral e abrangente às pessoas, às suas famílias e à comunidade (LOPES & DIAS, 2012).

4. Conceito formulado pela escritora negra, Conceição Evaristo. Refere-se a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil.

Ramon Feliphe Souza – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Saúde e das Ciências – Fundação Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ). E-mail: ramon.feliphe@live.com.

Referências

EVARISTO, Conceição (2008). Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo Horizonte, n. 23.

LOPES, José Mauro Ceratti; DIAS, Lêda Chaves. Princípios da medicina de família e comunidade. In: Gusso G, Lopes JMC, (org.). Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed, p. 1-11, 2012.

PAIVA, Carlos Henrique Assunção; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Reforma sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde: notas sobre contextos e autores. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.1, jan.-mar, p.15-35, 2014.

Resenhista

Ramon Feliphe Souza – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História das Saúde e das Ciências – Fundação Oswaldo Cruz
(COC/FIOCRUZ). E-mail: ramon.feliphe@live.com


ROCHA, Júlia. Pacientes que curam: o cotidiano de uma médica do SUS. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. Resenha de: SOUZA, Ramon Feliphe. Vivências e Cotidiano no SUS: Crônicas Sobre Agentes De Saúde, Comunidade e Um País Que Insiste em Sobreviver. Boletim do Tempo Presente. São Cristóvão, v. 10, n. 04, p.63-65, abr. 2021. Acessar publicação original [IF]

Itamar Freitas

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