Outros olhares sobre a Antiguidade Tardia e Idade Média | Outras Fronteiras | 2015
O Dossiê Outros olhares sobre a Antiguidade Tardia e Idade Média traz artigos escritos por estudantes de Graduação e Pós-Graduação em História e Letras, interessados no estudo e na compreensão dos períodos comumente chamados de Antiguidade Taria e Idade Média. A ideia para a produção do Dossiê surgiu nos encontros do Grupo de Estudo “Poder, autoridade e heresias durante a Antiguidade Tardia e Idade Média” e ganhou corpo durante a realização do “Ateliê de Estudos sobre Antiguidade Tardia e Idade Média”, na Universidade Federal de São Paulo, em 2015. Os estudantes envolvidos com o projeto de escrita dos artigos são tanto pesquisadores que realizaram e realizam pesquisas de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado na área, quanto alunos que, embora não dedicados a pesquisas sobre Antiguidade Tardia e Idade Média, tiveram, em algum momento de sua formação acadêmica, o interesse desperto para esses períodos históricos tão distantes e diversos da Contemporaneidade.
Neste dossiê, buscou-se problematizar o lugar da “Idade Média” na produção historiográfica desde o século XIX, que mais do que considerada um período, uma temporalidade histórica, foi forjada como conceito, agregado de juízos de valor. A historicidade do conceito é conhecida, bem como os alertas constantes de Jacques Heers, Umberto Ecco, dentre outros autores, para a fragilidade e artificialidade da consideração de uma idade medieval em antítese às glórias da Antiguidade e ao despertar do indíviduo e da consciência próprio ao Renascimento. Conhecidas também são a valorização e legitimidade que o período medieval recebeu durante o século XIX por autores vinculados ao movimento Romântico, que atribuíam à Idade Média o nascimento de suas Nações, contraposto aos estudos sobre o período realizados por historiadores e mesmo existentes em diversas expressões artísticas no século XX, que olharam para a Idade Média com nostalgia, encontrando nestes tempos históricos uma realidade perdida, ou uma alteridade posta no coração da própria Europa que demarcava aquilo que já não se era mais após a Revolução Industrial. Olhar para a Idade Média durante o pós-guerra também se constituía como um esforço de estabelecer um contraponto que revelasse o fracasso de uma modernidade concebida aos moldes racionais do movimento Iluminista.
Partindo do pressuposto de que a Idade Média foi, ao longo do tempo, constituída como um conceito historiográfico, os artigos aqui reunidos tiveram como meta realizar uma análise documental que buscou apresentar os séculos II a XVII a partir de seus próprios parâmetros, atentando para as especificidades, os limites e as condições de produção escrita e de reflexão, mas também o de investigar maneiras pelas quais a Idade Média foi apropriada nos séculos XIX e XX. Dos artigos aqui propostos, emergem temas comuns que perpassam a cronologia tradicionalmente atribuída para o período medieval e incidem sobre gêneros narrativos de mesma ordem ou diversos. Neste sentido, a primeira seção do Dossiê, intitulada Aspectos sobre a autoridade episcopal entre os séculos II e VI é dedicada à investigação dos elementos que promoveram o fortalecimento da autoridade episcopal. Os artigos de Lays Silva Stanziani e Karen Torres da Rosa demonstram como é possível reconhecer discursos que, de Irineu de Lyon e Eusébio de Cesáreia a Cesário de Arles, fundamentaram o exercício da função episcopal no combate à heresia, na afirmação da hereditariedade apostólica e martirológica, no desenvolvimento de estratégias de transmissão e preservação de bens e, finalmente, na defesa da perfeição de vida e da sacralização dos laços carnais por meio da recorrência ao ambiente monástico.
Na seção Olhares sobre a escrita da História na Antiguidade Tardia e Idade Média, encontramos artigos que procuraram identificar componentes próprios à produção historiográfica medieval, sobretudo em dois momentos considerados de “crise” na história do Ocidente: a queda de Roma no século V e o período pós-carolíngio entre os séculos IX e X. O primeiro artigo, escrito por Bianca Mayumi Saijo, abordou a escrita da história na obra Os sete livros de História contra os pagãos, de Paulo Orósio. A autora procurou indicar como o uso de técnicas retóricas por Orósio permitiu-lhe dar novo sentido aos acontecimentos que vivenciava, a partir da importância que atribuiu ao providencialismo divino como fator fundamental de interpretação dos fatos históricos. O Juízo de Deus também foi um tema que apareceu nos escritos dos historiadores Regino de Prüm e Raul Glaber, tal qual demonstrado por Bruna Giovana Bengozi, o que tornou possível a problematização e releitura de um momento consagrado pela historiografia como de crise, já que vinculado à defesa do esfacelamento do poder público com o fim da dinastia carolíngia.
A terceira seção do Dossiê, Entre Idade Média e Renascimento, faz uma incursão sobre o olhar lançado à Idade Média a partir de pressupostos modernos, seja para afirmar sua inadequação e decadência, seja para determinar momentos de “renascimento” a que ela própria estaria sujeita. Neste sentido, o primeiro artigo desta seção apresenta as dificuldades enfrentadas pelos historiadores que desejam se aventurar a analisar a História das minhas calamidades de Pedro Abelardo, um filósofo que teria sido o precursor da Modernidade no coração do século XII, em razão da descoberta do indíviduo, da consciência e da ética da intenção que propôs. Neste artigo, Rafael Bosch pretende restituir o escrito à sua época, a partir da demonstração de como a historiografia, ao longo do tempo, considerou os aspectos de autoria e gênero narrativo deste que é considerado um escrito que definiria toda uma época.
O segundo artigo desta seção também se dedica ao questionamento sobre os limites entre Idade Média e Renascimento, em mais um momento considerado de crise na história Ocidental, a partir da leitura de outro autor tido como o precursor da Modernidade e, em especial, do Renascimento italiano do século XVI. Ao trabalhar com o Decameron de Boccaccio, Jéssica Scheer Salles problematiza o enquadramento medieval da reflexão do autor ao questionar a peste negra que acometeu Florença em 1348 como resultado da ira e do Juízo de Deus em razão dos pecados humanos. Apesar das inovações de escrita e de linguagem propostas por Boccaccio, em sua narrativa de caráter satírico, é possível notar temáticas já encontradas na escrita de obras de história de autores medievais como Paulo Orósio e Regino de Prüm, relacionadas, aqui, à descoberta de uma Península Itálica simultaneamente urbana e rural e governada, ainda, pela Igreja e pela nobreza. Diferente de uma Itália nortenha afirmada como contraponto à ruralidade feudal por ter na cidade, no comércio e nos mercadores suas principais características, a obra parece apontar para a diluição das fronteiras entre campo e cidade e tornar mais complexa a disposição dos atores políticos e históricos no momento. Com isto, parece demonstrar que a crise do século XIV, tida como etapa de ruptura fundamental entre Idade Média e Modernidade, não se sustenta completamente.
Do mesmo modo, Shakespeare parece ajudar a tornar mais complexo o conhecimento que se tem do Renascimento como período marcado pela superação da Idade Média, sobretudo no que dizia respeito à retomada dos antigos, à imitação da natureza e ao realismo propostos como cânones de produção artística e letrada. Ao analisar Sonhos de uma noite de verão, Daniel de Oliveira Paiva demonstrou o caráter alegórico da peça que, estruturada como comédia, embaralha os espaços da floresta e da cidade, da razão e da desrazão e situa o amor como tema fundamental. Se levarmos em consideração a tese de Georges Duby de que o indíviduo foi descoberto na Idade Média, movimento percebido, principalmente, na expressão de sentimentos e espaços de intimidade delimitados nos romances de cavalaria do qual Tristão e Isolda constituem um exemplo por defender que os amantes são eximidos de culpa pela inversão social que promovem ao serem submetidos ao filtro amoroso e viverem esse amor na floresta, podemos entender o quanto de medieval há na peça de Shakespeare, ainda que o bardo inglês tenha lidado com filtros do amor para fazer rir aqueles que, isentos de qualquer consideração sobre o pecado, acompanhavam as peripécias de dois casais de amantes em uma noite passada na floresta, longe dos olhos da corte de Teseu.
Finalmente, a última seção do Dossiê, A Idade Média nos séculos XIX e XX, lança a Idade Média para a Contemporaneidade ao analisar como ela foi mobilizada para a defesa da existência histórica de liberdades fundamentais à existência da Nação, ou para, através dela, se mostrar um mundo destituído de Deus e de sentido no pós-guerra. O artigo de Larissa da Costa Oliveira analisa o conto do literato e historiador português, Alexandre Herculano, intitulado O bobo, que retrata o século XII e a batalha da qual Alfonso Henrique sairia vencedor para tornar o Condado Portucalense independente. A autora demonstra como a escrita deste conto estava vinculada à defesa que Herculano faz de um liberalismo constitucional para Portugal no século XIX, sobretudo ao considerar a Liberdade, a autonomia e a independência valores norteadores da Nação e dos governantes Portugueses. Ao contrário do que foi disposto por Michelet, portanto, Herculano valorizaria a Idade Média como período áureo da história portuguesa, relegando a decadência ao Renascimento.
Se, ao longo da Idade Média, a peste foi tida como expressão do Julgamento divino, na produção fílmica de 1956, O sétimo selo, acompanhamos, em um século XIV tomado pela peste e pela guerra, a saga do cavaleiro Block à procura de um Deus distante que não responde aos seus apelos. Victor Andrade Godoy expõe a inquietação de Bergman sobre os destinos dos homens em uma contemporaneidade sujeita ao medo de um apocalipse nuclear, à falta de um sentido transcendente para as ações humanas e à experiência de um amor fugaz. O drama do cavaleiro Block em busca da garantia sensível da existência de Deus parece evocar a súplica de Horácio, amigo de Hamlet na peça shakesperiana, pela certeza da evidência dos sentidos como resposta metafísica. Ao ver o fantasma do rei da Dinamarca no castelo de Elsinore, lugar para onde também se dirige a trupe circense bergmaniana, Horácio exclama a seus companheiros: “Juro por Deus, eu jamais acreditaria nisso sem a prova sensível e verdadeira dos meus próprios olhos!” Diante da peste, da guerra e da morte no século XX, em um mundo desprovido de sentido metafísico, o Julgamento de Deus revela-se o julgamento do próprio homem sobre si mesmo.
Ao seguir uma narrativa cronológica, o Dossiê propõe, simultaneamente, um rompimento com a cronologia comumente atribuída ao período medieval. Se Cellarius, no século XVII, definira a Idade Média como o período que iria de 476 a 1453, um tempo intermediário entre a Antiguidade e o Renascimento, duas épocas de ouro contrapostas aos 1000 anos de trevas medievais, este Dossiê abrange pesquisas que vão de 176 d.C até os anos 50 do século XX, atentando para a diacronia e sincronia históricas. Com isto, pretende-se enriquecer o conhecimento que se tem sobre o período, a partir da composição de um olhar que desvela a complexidade e riqueza das experiências históricas que puderam ser ali encontradas. Em um momento que poderia ser considerado como de crise para os estudos sobre a Idade Média, em que se questiona, como nunca, a importância e relevância de se estudar um período que não guardaria correspondências explícitas com a história nacional brasileira, e em que se faz necessário combater por e justificar um espaço intelectual, acadêmico e nas diretrizes educacionais do país para a Antiguidade e Idade Média, este Dossiê é, ainda, um esforço de demonstrar como o período medieval é um campo fundamental para a realização do sempre e cada vez mais necessário exercício de reflexão que transcenda seu próprio tempo. E não há como negar que em razão de sua diferença em relação a nós, de seu caráter de alteridade e exotismo que obriga à realização um deslocamento congnitivo e intelectual, a Idade Média continua despertando o interesse de inúmeras pessoas, dentro e fora da academia.
Organizadora
Rossana Alves Baptista Pinheiro – Departamento de História Universidade Federal de São Paulo
Referências desta apresentação
PINHEIRO, Rossana Alves Baptista. Apresentação. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 2, n. 2, p. 1-4, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]