Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20 – FIGUEIREDO (AN)

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20. Belém: IAP, 2012. 148p. Resenha de: SILVEIRA, Flávio Leonel A. da. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 401-406, jul. 2014.

Acredito que o ofício da leitura é sempre uma dádiva compar­tilhada com o autor que torna público o seu trabalho. Ao oferecer aos leitores os seus devaneios acerca de determinado tema (sobre o qual se debruçou ao longo de um período de sua vida), por certo, o artífice desvela parte da aventura intelectual que envolve a imersão meditativa e o investimento em pesquisas, leituras e diálogos com fontes diversas, possibilitando a outrem que mergulhe no universo ético-estético da obra que traz em suas mãos sobre a qual também, seguindo a inspiração bachelardiana, se lança em devaneios fecundos.

Todavia, a leitura é igualmente troca, por tratar-se de um diálogo silencioso, de um cruzamento de horizontes hermenêuticos que tensiona/aproxima os anseios do autor aos do leitor, num processo criativo capaz de instaurar certo jogo interpretativo que impulsiona a construção do saber para além das intenções primeiras de quem escreve, passando a compor um repertório compartilhado pelo qual a leitura do Outro avança em direção às sutilezas do tema abordado. A obra, se pensarmos com Deleuze (1991), desdobra-se em devires possíveis na leitura, porque os devaneios imaginativos do leitor, ao encontrarem os do autor, se não o alcançam totamente, cercam-no, perscrutam-no e abrem-se à reflexão, seguindo caminhos insuspeitados e próprios.

-O autor, portanto, diante de sua “vontade de saber” (FOUCAULT, 1982), complementaria o anseio de conhecer alheio e, assim, supriria temporariamente a falta que, paradoxalmente, nos preenche sobre dado tema e desde aí nos instiga a querer compre­ender melhor o tema debatido. Ele nos lança às descobertas e às reflexões, mediante a consciência do que seria, de alguma forma, a dimensão saudável de nossa ignorância, a “vontade de saber” sobre as questões que aborda em seu texto. O encontro de ambos, uma espécie de leitmotiv de ideias articuladas e abertas, insiste em nos conduzir ao encontro das tensões e convergências presentes em diversas leituras e temas, quiçá entre regiões que o texto expõe como panorama possível.

É nesse sentido que o livro de Aldrin Moura de Figueiredo intitulado Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20 – excerto de sua tese de doutorado em História, laureada com o prêmio IAP de Literatura em 2011 –, é o exemplo de uma obra que, ao explorar a diversidade cultural brasileira a partir da experiência intelectual modernista dos anos 20 do século passado no norte do país, força-nos a pensar as possibilidades de expressões regionais acerca de um modo de ser moderno, refle­tindo o ethos de uma determinada sociedade.

Aldrin Figueiredo oferece ao leitor um livro saboroso, de leitura fluida e interessante. A sua proposta de produzir um texto de caráter acadêmico – mas diria que de maneira ensaística – cuja preocupação é a de contribuir para a “ruptura com a história linear” (p. 16) revela uma obra com 148 páginas de instigante leitura, principalmente para aqueles que desejam conhecer melhor o universo literário e histórico amazônico, com as suas vicissitudes políticas e extensões estéticas, que o historiador aborda com maestria.

Nesse sentido, ao deslocar a perspectiva de pensar o Moder­nismo através do sudeste do país e, mesmo, colocando-nos na situação de termos que relativizar certas noções de unidade nacional mediante um caminho que nos conduz à “polissemia dos regiona­lismos” (p. 12), Aldrin Figueiredo permite que pensemos a plura­lidade cultural brasileira de maneira atenta às peculiaridades regio­nais, sem com isso cair em bairrismos quanto à análise que propõe. Se “o modernismo amazônico” significou mais uma forma de expressão dos modernismos brasileiros que tomaram assento em diferentes porções do país, desde os seus conteúdos estéticos e políticos, é porque as imagens que moveram os intelectuais à época, em sua dialética criativa, ao emergirem de uma espécie de fundo comum de arquétipos e de símbolos nacionais que também fervilhavam noutros cantos do país, assumiram na Amazônia fei‑ções próprias, mestiçando o regional ao nacional, sem com isso perder de vista a amplitude do fenômeno, porque ele estava inse­rido no que representava a globalização cultural como decorrência do fausto da borracha, com a sua “bela época”, mas, também, com suas mazelas socioeconômicas e políticas.

Ao voltar-se para as idiossincrasias do “movimento” ocor­rido no norte do Brasil e, mais especificamente, no Pará, o autor demonstra a existência dos outros modernismos que ocorreram no cenário intelectual brasileiro. Portanto, para além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, havia cenários de efervescência estética que produziram formas sociais, leituras do contexto nacional e do mundo pela óptica regional. Sendo assim, a importância do livro está em evidenciar a presença de pensamentos inquietos e disso­nantes com os paradigmas intelectuais e estéticos da época, que se espraiavam pelas várias porções do território nacional. A Amazônia não foi exceção.

O espaço amazônico enquanto receptáculo de imagens mítico-fantásticas e de encantarias diversas; de saberes, fazeres e dizeres distintos; de mesclas complexas de Belle Époque, com seus teatros suntuosos e óperas europeias, com florestas e rios selváticos e exube­rantes – quando figuras caboclas evocariam o imaginário em torno da rede de dormir, de bois-bumbás e de comidas com temperos singulares – carreava uma simbólica de imagens ressignificadas pelo modernismo paulista. Ora, na visão da intelectualidade local, a Amazônia – e, neste caso, o Pará – estava situada para além desse reservatório imagético de “coisas” exóticas, pois ela mesma nutria uma produção que trazia consigo a potência revolucionária desde uma estética que buscava romper com os cânones presentes no seu vasto território, onde Belém e Manaus figuravam como ambiências para as “letras amazônicas”, a partir dos jovens pensadores que deambulavam pelas suas ruas, galerias e cafés atentos às diversas dimensões do que representariam as formas de ser amazônida.

Longe de existir uma unidade de grupo, havia pessoas interes­sadas em debater acerca do lugar da Amazônia na história brasileira, sem com isso legitimar os símbolos veiculados por uma “comunidade imaginária” (ANDERSON, 1993), que evocavam imagens icônicas da Amazônia, manauara ou belenense, centradas em algumas datas, iconografias e episódios. Não se tratava, dessa forma, de reificar imagens autoritárias de certa história da Amazônia nem de servir de mero manancial de imaginários para modernismos outros. Era preciso desconfiar de tais boas intenções históricas e estéticas, mas, acima de tudo, era preciso rir de si e dos outros desde o seu lugar, que provocativamente denomino de “descentrado”.

A leitura do livro lança boas pistas para pensarmos as tensões entre o que chamarei aqui, por falta de oposição mais caricata, de centro e de periferia, bem como acerca das formas engenhosas que se buscou para revertê-las, quiçá suprimi-las. Talvez a consciência de que a dita periferia é também um centro de evocação das diferenças estimulasse a reação de alguns intelectuais aos manifestos que surgiam à época, longe dos labirintos amazônicos de florestas e de rios com as suas boiunas hediondas. Era preciso produzir os manifestos, sim, mas estando situados na paisagem-matriz (BERQUE, 1998).

O que parece ficar claro é que a Amazônia, na visão dos lite­ratos locais, não poderia ser percebida como simples elaboradora de imagens para outras porções do país e, desta forma, alguns deles se insurgiram contra tal figuração. Ela, pelo contrário, mostrava-se autônoma, no sentido de ser produtora de um pensamento prenhe de riquezas e, por isso, capaz de engendrar transformações sensí­veis, considerando-se o seu lugar no cenário nacional. Ao mesmo tempo, mantinha-se integrada ao pensamento nacional desde o seu afã de diferença, pois tinha uma voz, uma agência que os intelec­tuais tomavam para si como representantes deste devir estético amazônico no contexto nacional.

Portanto, os modernistas do Norte desdenhavam do parnasia­nismo enfadonho, dos europeísmos miméticos de forma ambígua, e não faziam por menos em relação aos paulistas, pois se por um lado dialogavam com parcela deste pensamento, não deixavam de devorá-lo, exatamente pela insurgência em relação ao centro e pela consciência de não serem apenas fornecedores de imagens, buscando subvertê-las desde o seu lugar. É possível que naquele momento os intelectuais amazônidas, à sua maneira, descentrassem o centro, a fim de reverterem à periferia, revelando os “aspectos diversos do modernismo literário” (p. 11).

Os ímpetos revolucionários dos Novos Paraenses diante de seu projeto de nação, em que a Amazônia teria um lugar central, indi­cavam a força e a dinâmica tensional que o regionalismo assumia naquela década, especialmente em torno das revistas A Semana (1918) e Belém Nova (1923), loci de emanação da rebeldia dos jovens literatos nortistas. Se Bruno de Menezes era a figura de proa nas plagas para­enses, no contexto amazônico acreano essa figura parece ter sido Abguar Bastos, não menos rebelde e crítico às formas canônicas de pensar e, mesmo, ao modernismo dos paulistas. De qualquer forma, a Amazônia seria, também, lugar de deambulação criativa de duas figuras interessantíssimas, que à sua forma dialogaram com o universo sensível e intelectual da região: Raul Bopp e Mário de Andrade. Sua contribuição ao modernismo excedeu os limites da “Pauliceia” e, para o primeiro, dos Pampas, mas esta já é outra história.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Reflexiones sobre el origen y difusión del nacionalismo. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BERQUE, Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemá­tica para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Org.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 84-91.

CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

DAOU, Ana M. A belle époque amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991.

DURAND, Gilbert. Science de l’Homme et Tradition. Paris: Berg International, 1979.

FIGUEIREDO, Aldrin M. de. Eternos modernos: uma história social da arte e da literatura na Amazônia, 1908-1929. 2001. 316 p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: I. A vontade de saber. Rio de Janei­ro: Graal, 1982.

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: Um estudo da vida religiosa de Ita, Baixo Amazonas. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1976.

MAFFESOLI, Michel. O poder dos espaços de celebração. Revista Tempo Brasi­leiro, Rio de Janeiro, n. 116, p. 59-70, jan./mar. 1994.

SARGES, Maria de N. Belém: Riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002.

Flávio Leonel A. da Silveira Professor Adjunto do Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo – Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Antropologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFPA. E-mail: flabreu@ufpa.br.

Itamar Freitas

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