Os trabalhadores e o mutualismo | Mundos do Trabalho | 2010
Em pouco mais de vinte anos, a historiografia brasileira dedicada ao “mundo do trabalho” conheceu significativas mudanças de paradigma. Aqui, na apresentação deste dossiê dedicado ao “fenômeno mutual”, não é preciso reforçar a importância das publicações e das análises de E. P. Thompson para a referida renovação. Sem abandonar categorias como “classe” ou “luta de classes”, o marxista inglês entendeu que era preciso compreendê-las como algo processual, dependente da agência (existe como atividade, trabalho) dos sujeitos históricos1 . Através de um novo olhar, fundado na experiência, perdiam espaços as concepções mais ortodoxas e mais estruturalizantes, que eram tão caras aos “velhos” marxistas. Contudo, é necessário destacar que, no Brasil, a introdução e a recepção da obra de E. P. Thompson também dialogaram com novas conjunturas. A História ganhava contornos mais profissionais, o país se redemocratizava, os sindicatos mais combativos se (re)organizavam e os movimentos sociais (re)emergiam, impondo suas agendas aos intelectuais de esquerda2 . Nesse movimento, portanto, as classes subalternas faziam pressão por legitimidade política, direito à memória e à ampla participação social.
Ainda enfocando a historiografia brasileira das últimas décadas, vale fazer outro destaque sobre o “mundo do trabalho”. Por mais que um renovado olhar investigativo problematizasse a tradicional “história do movimento operário”, os pesquisadores da nova tendência continuaram focalizando, prioritariamente, objetos de estudo mais clássicos. Entre eles, podemos elencar: sindicato, chão de fábrica, socialismo, trabalho industrial, partidos de esquerda e reformismos3 . Outros historiadores sociais apontaram para a relevância e a originalidade acadêmica das dissertações e das teses produzidas sob as novas perspectivas, mas, criticamente, também propuseram a ampliação dos objetos e dos limites temporais da História Social do Trabalho. Não bastava, por exemplo, demonstrar a existência da “classe operária” na República Velha, relativizando sua “origem” na “Era Vargas”. Era preciso ousar ainda mais. Acreditava-se que, na História Social do Trabalho, também existia espaço para se estudar, quer os múltiplos imbricamentos entre trabalho livre e trabalho
escravo, quer as identidades e culturas laborativas dos trabalhadores que viveram na Colônia e no Império4.
No bojo das propostas investigativas mais audazes e da nova produção historiográfica preocupada com as experiências dos trabalhadores nacionais e estrangeiros que viveram no Brasil, também foram feitos alguns alertas para a necessidade de renovação dos estudos sobre as sociedades mutualistas, objeto considerado pouco ou mal explorado pela História do Trabalho5 . Segundo alguns críticos, as entidades de auxílio mútuo precisavam ser entendidas através de suas próprias especificidades e de substancial pesquisa empírica. Dessa forma, seria possível desconstruir a noção sociologizante e teleológica de que as mutualistas estavam enquadradas em uma espécie de “pré-história” da classe operária6 . De viés estruturalizante e explicativo, esta última perspectiva é categórica quando afirma que a “fase mutualista”, antitética à sindical, somente suavizou os conflitos entre patrões e empregados, o que teria inviabilizado a construção de uma “verdadeira” e mais “consciente” identidade de classe entre os trabalhadores brasileiros7.
Especialmente na última década, e mais precisamente nos últimos anos, repercutiram os apelos daqueles analistas que desejavam uma revisão mais substancial do(s) mutualismo(s) praticado(s) no Brasil. Por meio de diferentes recortes espaciais e temporais, historiadores de diversos estados do país debruçaram-se, de forma séria e crítica, acerca da temática – alguns desses estudiosos apresentam artigos neste dossiê, cujos textos são oriundos de suas pesquisas. Como resultado de seus esforços acadêmicos, hoje, são vislumbradas múltiplas possibilidades interpretativas sobre o “fenômeno mutual”. Apesar de as entidades de socorro mútuo apresentarem algumas regularidades formais (assistência aos membros, regulamentação estatutária, rotinas administrativas comuns etc.), também foram bastante diversas em sua composição, em seus objetivos sociais, em suas estratégias políticas e em suas formas de aliança com outros atores da vida pública. Certamente, o leitor perceberá tais complexidades no estudo atento dos artigos.
Em função da multiplicidade de abordagens e de interpretações, outras peculiaridades também serão observadas na leitura do dossiê. Nesse sentido, os organizadores optaram por divulgar, no conjunto de textos apresentados abaixo, as mais significativas divergências analíticas entre os autores brasileiros que atualmente estudam o mutualismo. A ideia foi, menos, a de explicitar e de delimitar o que se julga ser a melhor forma de encará-lo, do que a de demarcar a importância das múltiplas possibilidades de estudo sobre o “fenômeno mutual”; o propósito é o de indicar as linhas de força que vêm se constituindo sobre o tema, na historiografia nacional, e o de chamar a atenção de novos pesquisadores que possam se interessar pelo assunto8 . Junto destas preocupações, desejase reforçar também a importância do mutualismo para a constituição de uma cultura associativa que contribuiu, positivamente, para a tradição organizativa dos trabalhadores brasileiros, seja em seus traços marcadamente classistas ou não.
Claudio Batalha, um dos historiadores que incentivou a renovação dos estudos sobre as instituições mutualistas brasileiras, especialmente daquelas que congregavam trabalhadores, abre o dossiê afirmando que já é, até mesmo, possível fazer um balanço da nova produção. Em seu texto, intitulado “Relançando o debate sobre o mutualismo no Brasil: as relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos à luz da produção recente”, indica que, sobre a temática “fenômeno mutual”, ganham destaque, no tempo presente, duas importantes tendências analíticas. Na primeira delas, ele aparece como uma das diversas formas de organização daqueles que viviam de seu suor e de sua labuta. Na outra tendência, contudo, as entidades de auxílio mútuo seriam caracterizadas por sua plasticidade associativa, pois, indistintamente, congregavam, em um mesmo espaço de sociabilidade, tanto trabalhadores, quanto outros grupos sociais com interesses díspares. Sublinha-se que, em seu artigo, Claudio Batalha debruça-se sobre esta segunda corrente e esmiúça suas implicações teóricas e metodológicas.
Dando continuidade aos seus conhecidos trabalhos sobre a temática que motiva o dossiê, Claudia Viscardi, em “O estudo do mutualismo: algumas considerações historiográficas e metodológicas”, apresenta um considerável levantamento acerca da historiografia sobre o tema. Além disso, encontra-se, em seu artigo, uma generosa discussão sobre os recursos metodológicos que são empregados nas investigações do “fenômeno mutual” e as principais tipologias documentais que têm sido utilizadas para sua pesquisa. Como se verá, a autora reforça sua interpretação, já apresentada em outros textos, de que o mutualismo foi um fenômeno que favoreceu muito mais a formação de identidades interclassistas do que as que se deram no interior das classes, inclusive da classe operária. Claudia Viscardi questiona, então, a pertinência do “potencial analítico” do referencial classista strictu sensu para o estudo das associações de socorro mútuo.
Em “A luta contra a adversidade: notas de pesquisa sobre o mutualismo na Bahia (1832-1930)”, Aldrin A. S. Castellucci demonstra que, através de um estudo de longa duração e com um recorte espacial preciso, as diferentes mutualistas baianas construíram múltiplas estratégias de sobrevivência e de solidariedade. O autor observa que, na primeira metade do século XIX, o auxílio mútuo foi muito praticado por mestres de ofícios ligados aos arsenais e às irmandades. Portanto, as identidades sociais vinculadas às profissões especializadas foram muito valiosas para a formação de associações. No final daquele século e no início do seguinte, Aldrin Castellucci também percebe que os trabalhadores sem qualificação começaram a buscar proteção em mutualistas e em outras entidades operárias. Contudo, engana-se quem pensa que o agrupamento e a organização dos trabalhadores baianos (tão diferentes entre si) tenham sido homogêneos e tranquilos. Além disso, por meio desse texto, nota-se que conjunturas específicas e processos não lineares marcaram a relação entre sindicatos e mutualistas, relativizando a categoria teleológica “pré-história” da classe operária.
Adhemar Silva Jr. realiza um esforço para compreender algumas categorias no artigo intitulado “Oligarquias em sociedades de socorros mútuos (1854-1940)”. Para tanto, a despeito de trabalhar, na mais longa duração, com os traços oligárquicos observados nas mutuais, o autor empreende uma discussão acerca de outros diversos aspectos relativos às sociedades de socorro mútuo, centrando seu foco empírico no Rio Grande do Sul. Em seu texto, é discutida a relação entre “interesses espirituais” e “materiais” nas mutuais, seus valores morais e as formas retóricas de sua divulgação/socialização. Além disso, ainda são considerados os critérios de fechamento ou abertura de mutualistas, uma vez que a sua durabilidade tinha relação, entre outros fatores, com o aumento do número de associados. Perpassando o debate, encontra-se uma detida discussão sobre os níveis de democracia das mutuais: a rotatividade ou não de suas diretorias, a participação dos sócios nas assembleias, as formações de grupos políticos, seus conflitos internos etc.
Marcelo Mac Cord, um dos organizadores deste dossiê, contribui com um artigo que sintetiza parte de sua tese de doutorado. Segundo o texto, intitulado “Redes de sociabilidade e política: mestres de obras e associativismo no Recife Oitocentista”, percebese que alguns membros da Irmandade de São José do Ribamar mobilizaram-se para defender seus interesses profissionais, os quais foram prejudicados com o fim das corporações de ofício, oficialmente extintas pela Constituição de 1824. No seio da irmandade recifense que reunia pedreiros, carpinteiros, tanoeiros e calafates surgiu a Sociedade das Artes Mecânicas, que recebeu denominações diversas durante o século XIX. O grupo, formado, fundamentalmente, por mestres pedreiros e carpinas de pele escura, angariou prestígio e espaços de poder através de uma hábil utilização das normas legais e regimentais vigentes e de uma rede clientelar bem-sucedida. Por meio desse estudo, demonstra-se como uma mutual composta de mestres de obras conseguiu, através de solidariedades horizontais e de alianças verticais, estabelecer formas de controle de seu mercado de trabalho e ser um sujeito importante nas políticas de instrução pública voltadas para a formação profissional na província.
Focados na vida cotidiana da cidade do Rio de Janeiro, durante o reinado de d. Pedro II, Ronaldo Pereira de Jesus e David Patrício Lacerda analisam os processos de criação e de legalização de associações de socorros mútuos na corte. O ano de 1860 foi escolhido como marco inicial do artigo, pois, nele, o governo central havia aprovado a Lei 1.083 e os decretos 2.686 e 2.711. Entre outras medidas, a referida legislação passou a regulamentar a constituição e a existência das mutualistas (das que já existissem ou das que fossem idealizadas a partir da publicação das regras supracitadas). No texto intitulado “Dinâmica associativa no século XIX: socorro mútuo e solidariedades entre livres e libertos no Rio de Janeiro Imperial”, os autores afirmam, baseados em um importante conjunto documental (pedidos de aprovação de estatutos junto ao Conselho de Estado), que determinadas mutuais foram espaços que fortaleceram identidades e culturas coletivas. Nesse sentido, o artigo analisa, precisamente, as associações formadas por homens de cor (vinculados a algumas etnias que vivenciaram a escravidão atlântica) e por trabalhadores de determinadas profissões, mais ou menos, especializadas.
Fecha o dossiê Paula Christina Bin Nomelini, a qual apresenta o artigo “Mutualismo em Campinas no início do século XX: possibilidades para o estudo dos trabalhadores”. Primeiramente, a partir de suas investigações, a autora entende que o conceito “mutualismo” é de difícil definição, pois, apesar de certa homogeneidade formal e administrativa, as associações de auxílio mútuo aglutinavam indivíduos de diferentes origens sociais e com expectativas bastante diversas. Por conta dessa peculiaridade, Nomelini percebe, em seu recorte espaço-temporal, que cada uma das mutualistas analisadas centrava sua atuação em estratégias previdenciárias ou humanitárias ou beneficentes. Na medida em que os grupos mutualistas de Campinas estiveram mais preocupados em ocupar espaços assistenciais inexplorados pelo poder público, o texto indica que se tornou secundário para os trabalhadores da cidade paulista a construção de uma identidade operária mais homogênea. Apesar disso, segundo a historiadora, existiram algumas relações entre as sociedades que estudou e organizações, como, por exemplo, a Liga Operária.
Mãos à obra, leitor! (ou, mais acertadamente, olhos à tela, leitor!). O espaço que vem sendo aberto pela Revista Eletrônica Mundos do Trabalho tem propiciado o fortalecimento de três frentes de trabalho: importantes visitas a consagrados temas da História Social do Trabalho, a exploração de novos tópicos e agendas na área de pesquisa e o debate em torno de questões centrais no que se refere a todas as instâncias, esferas, temáticas e abordagens da história da classe que produz o valor e a riqueza do mundo. Em certa medida, com este dossiê, reforçam-se todos os pilares que alicerçam a política editorial do periódico organizado pelo GT Mundos do Trabalho: o mutualismo é revisitado de maneira renovada, são indicados novos caminhos que transformam a temática em forte agenda de pesquisas e é desmistificada a pouca importância do “fenômeno mutual” para a construção de sociabilidades e para a reivindicação de direitos de artífices, de operários e de demais seguimentos das classes subalternas. Afinal, dentre outros aspectos que podem chamar a atenção teórica e metodológica para o mutualismo, para aqueles que militam ou militarão nesse campo de investigação, está o fato de que é um assunto que transita nos tensos limites da história do trabalho e da classe trabalhadora.
Notas
1 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. V. 1. 3ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
2 CHALHOUB, Sidney e FONTES, Paulo. História Social do Trabalho, História Pública. Perseu: História, Memória e Política. [s.c.], [s.e.], nº. 4, ano 3, pp. 219-228, [s.m.], 2009.
3 BATALHA, Claudio H. M. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003, pp. 145-158.
4 LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. [s.c.], [s.e.], nº. 16, pp. 25-38, [s.m.], 1998. Mais recente, porém não menos importante, outro artigo aponta para problemáticas semelhantes. NEGRO, Antonio Luigi e GOMES, Flavio dos Santos. Além de Senzalas e Fábricas: uma história social do trabalho. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP. São Paulo, V. 18, nº. 1, pp. 217- 240, [s.m.], 2006.
5 BATALHA, Claudio H. M. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cadernos AEL: sociedades operárias e mutualismo. [s.c.], [s.e.], V. 6, nsº. 10-11, pp. 41-68, [s.m.], 1999.
6 Idem. Identidade da classe operária no Brasil (1880-1920): atipicidade ou legitimidade? Revista Brasileira de História. [s.c.], [s.e.], V. 12, pp.111-124, set. 1991/ago. 1992.
7 RODRIGUES, José Albertino. Sindicato e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968, p. 6.
8 Na esfera internacional, esforços semelhantes são feitos há algum tempo. Por exemplo, veja-se: LINDEN, Marcel van der (ed.). Social security mutualism: the comparative history of mutual benefit societies. Berm, Berlin, Frankfurt, New York, Wien: Peter Lang, 1996.
Organizadores
Marcelo Mac Cord
Osvaldo Batista Acioly Maciel
Referências desta apresentação
CORD, Marcelo Mac; MACIEL, Osvaldo Batista Acioly. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 2, n. 4, p. 3-9, jul./dez. 2010. Acessar publicação original [DR]
(Outros) Trabalhadores livres no atlântico oitocentista | Mundos do Trabalho | 2011
(Outros) Trabalhadores livres no atlântico oitocentista | Mundos do Trabalho | 2011, MAMIGONIAN Beatriz Gallotti (Org d), POPINIGIS Fabiane (Org d), Mundos do Trabalho (MTd), Trabalhadores Livres (d), Trabalhadores do Atlântico (d), Séc. 19
Organizadores
Beatriz Gallotti Mamigonian
Fabiane Popinigis
Referências desta apresentação
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti; POPINIGIS, Fabiane. Apresentação. Mundos do Trabalho. Florianópolis, v. 3, n. 6, p. 1-6, 2011. Sem acesso ao original [DR]