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Os saberes dos povos e a desconstrução: Religiosidade, Natureza e Cultura | Abatirá | 2021

The intimacy of friendship, Jacques Derrida writes, lies in the sensation of recognizing oneself in the eyes of another | Foto: Denis Dailleux / Redux

Jacques Derrida foi um filósofo nascido na encruza, uma encruzilhada chamada Magrebe, entre norte e sul, entre ocidente e oriente. Derrida, um pied noir, como chamavam os franceses aos africanos do norte, um pé-preto, judeu-árabe, mas nem judeu nem árabe completamente, muito branco pra ser Africano, mas muito preto pra ser Europeu, ele vem desse lugar, se assenta nesse lugar e sustenta que só nesse lugar de cruzos se pode pensar. Desse estranho lugar nasce “essa estranha instituição chamada filosofia”: seja na encruzilhada que foi a Grécia Antiga, antes de ser pretensamente purificada pelos alemães do século XIX, seja na encruzilhada que foi o Egito, seja aqui nas nossas esquinas das Américas.

Quando esteve no Brasil para a última conferência que daria em vida, em agosto de 2004 4, Derrida nos pede que deixemos de lado certas picuinhas filosóficas, herdadas da Europa como “os grandes problemas da filosofia”, para pensarmos nossas questões. Acreditava ele que alguns de seus textos poderiam nos ajudar, não como “método” para ser aplicado, nem como modelo, mas, talvez, como inspiração para que cada um possa pensar suas questões desde e a partir de seu chão, que não é nenhuma espécie de fundamento, nem lugar determinado.

Pelo contrário, nosso lugar errante, coreográfico, se afasta radicalmente de qualquer topologia ou topografia ocidental e se assemelha muito mais ao “Meu lugar”, de Arlindo Cruz, quando a única tradução possível para o termo grego ethos é “toca”. Lugar em que nos jogamos, ao final de um dia de trabalho, onde nos entocamos, onde nos encontramos para festas e lutas, afinal “O meu lugar / É cercado de luta e suor / Esperança num mundo melhor / E cerveja pra comemorar” 5.

Inspirados pelas palavras de Derrida e por diferentes iniciativas que encontramos em outros chãos dessa Latino-América6, Rafael Haddock-Lobo e Marcelo José Derzi Moraes procuram Emmanuel Biset para que as alianças possíveis, ou os laços afetivos, como prefere bell hooks, sejam ainda mais firmados entre nós, através da desconstrução e os saberes dos povos.

Abrindo a gira deste Dossi, temos o “Obituário Derrida”, com as palavras de Emmanuel Biset que traçam a estranha ausência, por parte de filósofos de nossos tempos, de referências à filosofia de Jacques Derrida, sobretudo em questões às quais ele poderia, tão contundentemente, contribuir. Esse texto comporia essa apresentação, mas dada sua relevância, optamos por publicá-lo de modo independente.

Saudando as encruzilhadas filosóficas, esse dossiê começa alimentando a boca que tudo come, o orixá iorubano Exu, com a “Padesofia: Uma filosofia a partir de encontros – Enubarijo: a boca do mundo”, de Adailton Moreira e Elisa de Magalhães, passando pelo encantamento que acontece no comer bem, com Marcelo José Derzi Moraes em “Comer bem como experiência do encantamento”, até chegar na espantosa relação que Mariane de Oliveira Biteti realiza entre lixo e comida, através de grandes filósofas populares brasileiras como Estamira e Maria Mulambo.

As mães ancestrais chegam para trazer o feminino pra gira, através do texto “A desconstrução do pensamento chega através da escritura das mulheres ancestrais”, de Fábio Borges-Rosario e Patricia Elaine Pereira dos Santos, mostrando que a própria gira é, ela mesma, feminina. Para correr a gira, Clairí Zaleski e Luiz Rufino trazem os saberes das saias rodopiantes, com “Corre-Gira Pombagira: A política do saber das Marias no Ser Mulher”, até chegar às esquinas noturnas com e nas vadiagens apresentadas por Georgia Amitrano e Luciano Severino de Freitas em “Por uma Antropofagia Arruaceira: Entre cruzos, resistências e vadiagens, o colono na gira da colonialidade”.

O texto de Marinazia Cordeiro Pinto e Alice Casimiro Lopes, “Desconstrução, colonialidade e ubuntu: Pela porosidade de fronteiras”, traz a potência da alteridade e abre os poros para uma viagem que nos leva para o São Joâo Venezuelano, com o texto “San Juan nuestro que cae del cielo: Intuiciones para una política sanjuanera en Venezuela”, de Livia Vargas-González e Marcelo de Mello Rangel, passando pelos Hip-Hops descolonizadores de William de Goes Ribeiro, com seu texto “‘Tem cor, age’: Sobre (e com) as encruzilhadas da indigenização do Hip Hop no Brasil”, pelas congadas de Uberlândia com “Território de criação étnico-religioso dos negros congadeiros de Uberlândia”, de Marli Graniel Kinn, atpe chegar às experiências quilombolas trazidas por Paula Odilon dos Santos, em “Barulho do Quilombo no Sertão: Saberes, fazeres e espiritualidades tecidas nas cosmovisões entrelaçadas pelas comunidades quilombolas Cariacá e Lajedo”, e por Samon Noyama e Renan Rodrigues Rosa em “Ensino de filosofia e exercício da aprendizagem: Conversa sobre uma experiência quilombola”.

Claudio Vinícius Felix Medeiros, Thadeu Rabelo Cecílio dos Santos e Victor Galdino Alves de Souza nos trazem as mandingas filosófico-experimentais de “Feitiço da racionalidade e pensamento epidérmico”, que nos ajudam a passear pelos textos descoloniais de Diego Santos, Marcelo Cavalcanti Vianna e Fábio Py “Efeitos da Igreja Católica nos saberes dos povos autóctones: Notas decoloniais”, na crítica à noção de sincretismo apresentada por de Alex Pereira de Araújo, em “O Candomblé e a desconstrução da noção de sincretismo religioso: Entre utopias do corpo e heterotopias dos espaços na Diáspora Negra”, até chegar aos assentamentos conceituais de Eneida da Silva Fiori, Érica Renata Vilela de Morais e Luiz Fernando Conde Sangenis, em “Cultura popular: Articulações entre religião e cultura afro-brasileira”.

O encontro entre as escrevivências de Conceição Evaristo e as escrituras de Jacques Derrida e os poemas macumbeiros de Edmilson Pereira dão o ritmo da última parte do dossiê, que se inicia com “Sabela e o dilúvio: A reescrita da gênese do povo brasileiro”, de Pauline Champagnat, seguido de “Espectros nos versos: Por uma leitura derridiana do poema ‘Cemitério Marinho’ de Edimilson Pereira”, de Helano Jader Ribeiro e Jeean Karlos Souza Gomes. Esse encontro entre a vida e o literário nos alimenta a pensar, junto com Gabriela Barcarce, em “Políticas del buen vivir: Miradas sobre el terricidio y espiritualidades no modernas”, a espiritualidade política de um “bem viver”, mesmo diante do terricídio. E, para fechar o dossiê, Paula Vargens e Dirce Elenora Nigro Solis enfrentam, com Derrida e outros espectros, o problema do encarceramento em um texto-firmado que nada amis é que um singelo pedido “Por uma pausa”.

Tenham uma boa leitura!

Notas

4 O Colóquio “Pensar a desconstrução” organizado por Evando Nascimento, foi realizado na segunda semana de agosto de 2004. Os textos do colóquio foram publicados em NASCIMENTO, E. (org.). Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.

5 Arlindo Cruz, “Meu lugar”. YOUTUBE. Arlindo Cruz – Meu Lugar (Ao Vivo). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vNK58tL6J70 Acesso em: 06 dez 2021.

6 Sublinhamos o impactante colóquio organizado por Emmanuel Biset e Ana Paula Penchazsadeh, em homenagem aos dez anos de morte de Jacques Derrida, em Buenos Aires. O colóquio, um dos primeiros passos para tentar articular a rede de estudiosos de Derrida na América Latina, abria caminho para que cada pesquisador pensasse de seu modo a questão da Soberania.


Organizadores

Emmanuel Biset – Doutor em Filosofia. Investigador Assistente do CONICET e Professor da Universidade Nacional de Córdoba. Coordenador do Programa de Estudos em Teoria Política do CIECS (UNC-CONICET). E-mail: emmanuel.biset@unc.edu.ar

Marcelo José Derzi Moraes – Doutor em Filosofia pela UERJ. Professor Adjunto do Departamento de Educação da FFP/UERJ e do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e saúde Coletiva-PPGBIOS. Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ GENTE da UERJ. https://orcid.org/0000-0003-0086-5314 E-mail: marcelojdmoraes@hotmail.com

Rafael Haddock-Lobo – Filósofo e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordena o Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas, do Programa de Pós-Graduação Interinstitucional de Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGFIL-UERJ. É autor e coautor de diversos livros dedicados a temas contemporâneos, desconstrução e, mais recentemente, crítica da colonialidade, entre eles “Da existência ao infinito” (2005), “Derrida e o labirinto de inscrições” (2008), “Para um pensamento úmido” (2011), “Experiências abissais” (2019), “Os fantasmas da colônia” (2020) e “Arruaças: uma filosofia popular brasileira” (2020). https://orcid.org/0000-0002-3983-7313. E-mail: outramente@yahoo.com


Referências desta apresentação

BISET, Emmanuel; MORAES, Marcelo José Derzi; HADDOCK-LOBO, Rafael. Os saberes dos povos e a desconstrução: Religiosidade, Natureza e Cultura.Abatirá – Revista de Ciências Humanas e Linguagens. Eunápolis, v.2, n.4, p.45-48, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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