Os Restauradores foi uma conferência realizada por Camillo Boito (1836-1914) na Exposição de Turim em 7 de junho de 1884 e posteriormente publicada em texto. Ela é considerada bibliografia básica para quem deseja entender sua obra e a história do restauro como um todo.
Boito foi uma personalidade muito importante para a conceituação teórica acerca da restauração. Ele formulou teorias influenciadas por inúmeros aspectos, conhecidas como restauro “científico” ou “filológico”, que resultaram numa espécie de meio-termo entre as conflitantes mais discutidas na época sobre restauração: as do francês Viollet-le-Duc e as do inglês John Ruskin.
Até o século 18, com o iluminismo, a arte era entendida como linear e o passado como algo a ser superado. No campo da arquitetura isso se traduzia, salvo exceções, na não-preservação dos prédios, que eram abandonados, destruídos ou mutilados em favor de novas construções. Nos próximos quatro séculos a restauração e conservação se resumiram ao pragmático: a manutenção. Tudo acontecia sem a conotação cultural que hoje se atribui.
No século 18 a arte romana vê uma onda de valorização, caracterizada como “romântica”. Esta valorização é percebida nas pinturas de Piranesi, que retratam uma Roma antiga muitas vezes pitoresca. No governo napoleônico é criada a Comissão para o Embelezamento de Roma, que empreendeu significativos trabalhos de restauração. A intervenção consistia principalmente na recomposição ou consolidação do monumento. Dentre os diversos exemplos da época, cabe destacar a restauração do Arco de Tito executada entre 1819 e 1821 por Valadier e Raffaele Stern. Datado de 81 d.C., o arco encontrava-se parcialmente destruído e encostado em um muro. A obra desconectou o Arco deste muro e reconstruiu suas partes faltantes, tendo o importante cuidado de utilizar formas simplificadas e travertino no lugar do mármore grego. Esta diferenciação permite, ao observador mais atento, distinguir o original do restaurado, o que distancia a obra de um falso histórico. Contudo, o arquiteto Paolo Marconi defende que, no caso do Arco de Tito, esta diferenciação teria sido feita por economia de recursos muito mais do que por motivos teóricos.
A ideia de preservar está intimamente ligada à ideia de história coletiva. Se preserva, muitas vezes, para manter vivo – e visível – parte daquilo que liga dois cidadãos do mesmo país que podem nunca ter se encontrado. Desta forma, a valorização do passado comum esteve presente na formação de praticamente todos os estados modernos e a unificação italiana, que ocorreu ao longo do século 19, não foi exceção. Na época, encontrou-se na arquitetura medieval um símbolo de identidade nacional. Desta forma, a Idade Média foi objeto de estudo de muitos intelectuais – como o próprio Camillo Boito.
As profundas e constantes transformações advindas da Revolução Industrial e a destruição em massa do patrimônio antigo após a Revolução Francesa criaram um ambiente tal na Inglaterra e na França (e consequentemente na Europa como um todo) que percebeu-se ser necessário reavaliar o que estava acontecendo – e que acabou resultando em movimentos para a preservação e restauração de monumentos. A partir deste momento, entraria em voga uma nova maneira de encarar o legado cultural.
Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc talvez seja o mais célebre arquiteto restaurador de todos. Conhecido pelo restauro da Catedral de Notre Dame de Paris, teve papel fundamental no entendimento da arquitetura gótica/medieval e na história da restauração. Muitos de seus princípios foram ao longo do tempo sendo contestados mas são, até hoje, norte para trabalhos. Seus preceitos são resumidos em sua mais conhecida citação – a definição da palavra “restauração” de acordo com seu próprio dicionário:
“Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode jamais ter existido em um dado momento” (1).
Le-Duc defendia, desta forma, a idealização do estilo, motivo pelo qual este tipo de restauração ficou conhecida, muito propriamente, como estilística. A partir de um estudo aprofundado e demorado de todas as informações existentes sobre um determinado prédio, o arquiteto restaurador deveria entender qual o espírito – ou estilo – que definia aquela construção. Assim, se fosse o caso, refazer porções perdidas seria não só feito mas celebrado. Boito considerava a doutrina de le-Duc “cheia de perigos”, apesar de tê-la seguido em seus primeiros projetos.
O inglês John Ruskin foi personalidade também muito importante no tema, cuja teoria influenciaria fortemente a formação dos conceitos de restauração, sendo considerado da corrente de “conservação romântica”. Principal opositor de le-Duc, entendia o edifício histórico como corpo com necessidade de manutenção periódica e aceitava a possibilidade de morte eventual desse edifício conforme a passagem de tempo; além disso, condenava veementemente a restauração – considerando absurdo apagar e modificar as cicatrizes do tempo. Como Ruskin dizia:
“A restauração é a destruição do edifício, é como tentar ressuscitar os mortos. É melhor manter uma ruína do que restaurá-la” (2).
Contudo, ao falar propriamente das teorias de Ruskin, Boito as considera “de uma lógica impiedosa”. Contudo, defende Beatriz Mugayar Kühl na apresentação do livro (3), esta consideração parte do princípio que o edifício deveria ser deixado sempre à própria sorte e cair em ruínas – não obstante o próprio Ruskin recomendar conservações periódicas que assegurem a sobrevivência do edifício. Dado que Boito conhecia pessoalmente Ruskin, é difícil alegar se sua impressão do mesmo era baseada em pensamentos já superados pelo inglês, se tratava-se de um desconhecimento de suas nuances ou se era algum tipo de desavença pessoal – o que é pouco provável e não passaria de especulação.
Camillo Boito, por sua vez, nasceu em Roma no ano de 1834 e ingressou na Academia de Belas Artes de Veneza no ano de 1849. Devido à influência de Pietro Selvatico, Boito começou a estudar a arquitetura italiana da Idade Média. Selvatico estava inserido no contexto que apontava a arquitetura gótica como expressão do povo italiano. No mesmo período que Boito, John Ruskin frequentava a cidade de Veneza e mantinha um relacionamento profissional com Selvatico.
Após sua formação inicial, colaborou na Academia como professor, mas logo empreendeu uma série de viagens pela Itália, na quais procurou saber mais sobre a arte medieval. Em 1858 foi designado para a restauração da Basílica dos Santos Maria e Donato, na cidade de Murano, Veneza. A partir de um estudo aprofundado, muitas medições e levantamentos feitos pessoalmente e registros documentais, Boito realiza o projeto de maneira relativamente coerente com o que pregaria mais tarde como princípios de restauração a serem seguidos. Seu método neste caso já demonstrava influência de le-Duc na documentação e pesquisa extensiva anterior a qualquer tomada de ação e também na demolição de elementos acrescentados que se diferenciavam do estilo original da construção. Contudo, a influência de Ruskin se fez presente, por exemplo, na preservação da pátina, prova da degradação natural na edificação.
Boito teve atuação marcante no Congresso de Engenheiros e Arquitetos Italianos realizado em Roma em 1883. Lá, foram propostos critérios de intervenção em monumentos históricos que seriam adotados pelo próprio Ministério da Educação posteriormente. O documento resultante deste congresso, com os sete princípios definidos, é considerado por muitos como a “Prima Carta del Restauro” tamanha é sua importância. Alguns pontos defendidos aproximam-se das teorias de John Ruskin enquanto outros são influenciados por le-Duc, principalmente no que tange ao método científico de documentar toda a intervenção. Além disso, é interessante notar que determinados princípios são hoje regras em qualquer grande obra de restauração, como a inscrição em lápide e o registro das obras. Muitos destes pontos seriam retomados por Camillo Boito em outros textos – inclusive no ano seguinte, na conferência proferida na Exposição de Turim, que deu origem ao livro do qual trata este trabalho.
Camillo Boito inicia a Conferência com a citação abaixo, esclarecendo a importante diferenciação entre conservação e restauração e sua posição:
“Mas aqui não se discorre sobre conservação, que aliás é obrigação […]. Mas, uma coisa e conservar, outra e restaurar […]; e o meu discurso é dirigido não aos conservadores, homens necessários e beneméritos, mas, sim, aos restauradores, homens quase sempre supérfluos e perigosos” (p. 37).
A seguir, Boito divide a conferência em três partes – escultura, pintura e arquitetura – e encerra cada uma delas com uma espécie de síntese do que preconizava para a restauração/conservação daquela determinada arte.
A dificuldade da restauração quando se trata de esculturas é exemplificada com o caso da estátua de Hércules Farnésio, obra do século III encontrada em 1546. Na época, Michelangelo foi chamado para acrescentar a perna faltante da escultura e Boito descreve o acontecimento da seguinte forma:
“O artista põe-se a trabalhar, realiza-as de gesso e ajusta-as ao colosso; examina, reexamina, gira em volta, regira, depois, sacudindo a cabeça, pega um martelo e começa a bater até que as pernas se despedaçassem; e dizem que gritava: nem mesmo um dedo eu saberia fazer para essa estátua” (p. 39).
Esse episódio mostra como é delicado acrescentar algo em uma escultura feita por outro artista, em uma época distinta. Cada mínimo detalhe tem seu devido significado, como explicado (longamente, diga-se de passagem) por Boito sobre o “nariz” de uma escultura, que apenas essa parte do rosto mudaria completamente a escultura, e poderia levar a grandes modificações não fidedignas, verdadeiras criações sobre uma obra de arte. O restaurador poderia por fim colocar suas próprias impressões, o que Boito não considera correto. Finaliza assim com a Teoria geral para a escultura: “restaurações, de modo algum; e jogar fora imediatamente, sem remissão, todas aquelas que foram feitas até agora, recentes ou antigas” (p. 44).
Na pintura é importante compreender que a restauração é um ato minucioso, que pode gerar confusões. Boito também defende que conservação das pinturas não deve ser confundida com restauro. Naquela, são usados vernizes ou algum tipo de produto para ajudar com as condições de conservação material, tendo que manter o cuidado para não se usar nada que prejudique a obra. Na conferência Boito conta algumas histórias (muito interessantes e explicativas) sobre o cuidado com as pinturas e as dificuldades em relação aos cuidados, até restauração, desse tipo de obra.
Os casos mais comuns, as transposições das telas, madeiras, ou bases em que a pintura permanece, muitas vezes afetada rapidamente pela ação do tempo, podendo estar envergada, ou passado por ataque de cupins, sendo necessário a troca para não causar danos a pintura, que não poderia ser recuperada, Boito considera que são operações delicadas, que precisam de muita técnica e cuidado e conclui que:
“Nas restaurações da pintura eis aqui o ponto chave: parar a tempo; e aqui está a sabedoria: contentar-se com o menos possível” (p. 53).
Em relação a Arquitetura, Boito inicia expondo a dificuldade do arquiteto em relação às inúmeras possibilidades e discussões, na parte teórica, e a dificuldade da ação em si, dizendo:
“mas em nenhum campo é tão difícil operar e tão fácil refletir quanto naquilo que se refere a restauração dos monumentos arquitetônicos” (p. 53).
A teoria da restauração é baseada nos pensamentos opostos de Viollet le Duc e Ruskin, as quais Boito critica e analisa para entender e encontrar sua própria tese, que acaba sendo moderada e muito importante para o estudo da restauração. Sua síntese para a restauração de arquitetura acaba sendo uma síntese de sua teoria como um todo:
“1º é necessário fazer o impossível, é necessário fazer milagres para conservar no monumento o seu velho aspecto artístico e pitoresco;
2º é necessário que os complementos, se indispensáveis, e as adições, se não podem ser evitadas, demonstrem não ser obras antigas, mas obras de hoje” (p. 60-61).
Camillo Boito fez parte de uma época de significativas mudanças socioculturais. As revoluções recentes, as novas tecnologias, a unificação de seu país e as diferentes formas de encarar o patrimônio e a cultura do passado colocaram-no no centro de um turbilhão rico de ideias conflitantes e possibilidades. Boito foi capaz de analisar diferentes teóricos e atuar em diversos lugares para chegar em sua própria tese. Seu pensamento pode ser considerado uma verdadeira síntese daquilo que havia em seu tempo – contudo, uma síntese crítica, que guardava o que fosse considerado correto e descartava o incorreto.
O arquiteto italiano executou poucas obras em vida, algumas consideradas incoerentes com seus ensinamentos teóricos, mas foi capaz de criar textos e documentos que se consolidaram ao longo dos anos e o colocaram no hall de personalidades mais importantes na história do restauro e da conservação. Teórico e moderado, sua influência no que hoje entendemos e estudamos como restauro é inegável.
No embate em que os extremos são Viollet-le-Duc e John Ruskin, Boito é frequentemente situado como “intermediário”. Preconizava a pesquisa extensiva e documentação, assim como le-Duc, e também a restauração somente em casos muito excepcionais – comparando-a com uma cirurgia ou a utilização de uma prótese. Se aproximava do francês neste aspecto, mas clamava que a restauração fosse feita de forma facilmente distinguível do original. Por outro lado, pregava que a ação do tempo não fosse descartada e que seu aspecto pitoresco fosse valorizado, além de pregar a conservação como essencial para evitar a restauração, inclinando-se à uma teoria mais ruskiniana.
Algumas das proposições de Camillo Boito para o restauro vieram a se consolidar no século 20, como as expostas acima, e a utilização de lápides em grandes obras com datação, memorial e nome dos responsáveis. Ao mesmo tempo, mais de um século após a morte de Boito, algumas restaurações feitas recentemente, como a do Castelo de Matrera, Espanha, mostram que a população em geral não enxerga com bons olhos qualquer intervenção considerada “moderna demais”. É preciso atentar-se, entretanto, para a observação de Boito, que recomendava que quaisquer adições fossem feitas com caráter diverso do original – sem no entanto destoar do conjunto.
Camillo Boito tem importância inconteste no estudo da restauração e da conservação. A análise de Os restauradores mostra sua relevância na época em que foi publicada e ainda no presente.
Notas
1VIOLLET-LE-DUC, Eugène E. Dictionnaire Raisonné de L´Architecture Française du XIe au XVIe siècle. 10 volumes. Paris, Grund, v. 8, s/d, p. 14.
2RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture. Londres, Smith, Elder, and Co., 1849.
3KÜHL, Beatriz Mugayar. Os restauradores e o pensamento de Camillo Boito sobre a restauração. In: BOITO, Camillo. Os restauradores. Coleção Artes & Ofícios. São Paulo, Ateliê Editorial, 2002, p. 24.
Resenhistas
Pedro Silveira Camara – Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF).
Gabriela dos Santos Paiva – Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF).
Sofia Carderelli Rosa e Silva – Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU/UFF).
Referências desta Resenha
BOITO, Camillo. Os restauradores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. Artes & Ofícios. Resenha de: CAMARA, Pedro Silveira; PAIVA, Gabriela dos Santos; ROSA E SILVA, Sofia Carderelli. Camillo Boito, o teórico moderado do restauro. Resenha Online. São Paulo, n. 218, fev. 2020. Acessar publicação original [DR]
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