ALTAMIRA, César. Os marxismos do novo século. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, 460 p. Resenha de: COELHO, Eurelino. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.1, mar./jun., 2010.
Era para ser o fim do marxismo, de novo. Após as crises terminais da URSS e dos regimes políticos e econômicos que foram construídos no Leste Europeu depois do final da Segunda Guerra Mundial não faltaram vozes anunciando a desaparição iminente do marxismo dos meios intelectuais e dos espaços políticos em que ele existira até então. Ou então era a pós-modernidade que, ao transformar profundamente todas as dimensões da realidade, terminava deixando o pensamento marxista desprovido de referente. Em qualquer dos casos, de acordo com esses profetas, o marxismo estava em vias de tornar-se uma peça de antiquário, mais uma lápide no cemitério das idéias e da política.
Ocorreu, porém, que mais uma vez a profecia era falsa. O marxismo não apenas sobrevive, apesar de tudo, mas foi capaz de se renovar e de abordar de modo original e profícuo os próprios temas que supostamente teriam determinado a sua extinção. O livro de César Altamira discute a emergência desses ‘marxismos do novo século’ contra o pano de fundo das transformações que incidiram sobre o mundo da luta de classes no final do século XX. O contexto do aparecimento desses novos marxismos é o da grande crise capitalista global da década de 1970 que pôs fim aos 25 anos ‘gloriosos’ de crescimento do capitalismo. Por ‘novos marxismos’ devemos entender, basicamente, três grupos de intelectuais que ganharam evidência nesse período, a saber: a chamada Escola Francesa da Regulação, os autores que publicam nas revistas Common Sense e Capital & Class (chamados também de open marxism) e o operaísmo italiano, juntamente com seu desdobramento ‘autonomista’ que, dos três, é aquele com o qual Altamira mais se identifica e que ele melhor descreve e analisa. Com a possível exceção dos regulacionistas, são autores relativamente pouco publicados e lidos no Brasil, o que já confere ao livro de Altamira o mérito de apresentá-los aos leitores brasileiros.
No entanto, o autor faz bem mais do que apresentar os ‘novos marxismos’. Sua análise da crise dos anos 70 é parametrizada pelas categorias teóricas do operaísmo, sobretudo a obra de Toni Negri. O desenvolvimento do capitalismo – e suas crises – não são pensados como movimentos cuja lógica seja interna ao capital, mas como fenômenos gerados pelo conflito entre o capital e o trabalho: “A crise não pode ser considerada expressão de leis imanentes que conduzem o sistema ao estancamento e à paralisia do desenvolvimento. Deve sim ser apreendida a partir da ação operária que enfrenta o capital como sujeito antagônico” (p. 63). Assim, a grande crise dos 70 foi a manifestação do apogeu da combatividade do operário-massa, a forma assumida pelo trabalhador coletivo no período do fordismo. A resposta do capitalismo veio na forma da globalização e da aceleração da incorporação de capital fixo (mudanças tecnológicas), medidas com as quais se buscava “controlar as ameaças trazidas pelos conflitos de classe” (p. 67) e que tiveram como consequência a produção de uma nova ‘composição de classe’, o engendramento de um novo trabalhador coletivo – o operário social, substituto histórico do operário-massa fordista. Não é mais a velha fábrica fordista o lugar privilegiado da exploração da força de trabalho na produção de valor, mas sim o conjunto da sociedade. Poder-se-ia falar numa ‘fábrica social’ na medida em que as “diversas atividades a que se dedicam as pessoas, não apenas como trabalhadores, mas também como estudantes, consumidores, compradores, telespectadores estarão diretamente ligadas ao processo de produção” (p. 76).
Trata-se de uma expansão sem precedentes do trabalho assalariado e, por conseguinte, do antagonismo capital-trabalho. Para Altamira, seguindo de perto as indicações operaístas, o operário social é o novo sujeito histórico que antagoniza o capitalismo pós-moderno. Seria um ‘trabalhador de tipo novo’, caracterizado por estar imerso em redes comunicacionais e pela “forte e cada vez mais próxima recomposição e combinação entre tempo de trabalho e tempo de vida” (p. 77). Para o capital o objetivo passa a ser o de apropriar-se da cooperação coletiva e de seu substrato, a capacidade comunicacional dos trabalhadores.
Esta caracterização do contexto de emergência dos novos marxismos choca-se violentamente contra as alegações de autores para quem as novas configurações da vida social contemporânea teriam aposentado as análises marxistas. Altamira sabe disso e comenta alguns desses autores em sua longa introdução, o que agrega ao texto mais um valor: ele constrói sólidas refutações marxistas para algumas teses bastante difundidas e pouco contestadas, como as de Laclau e Mouffe, Alberto Melucci ou Alvin Tofler.
Ao texto não faltam ousadia e espírito polêmico, inclusive contra posições no interior do marxismo, pois, para Altamira, nem todo marxismo está preparado para os desafios do século XXI. As “novas genealogias marxistas capazes de imaginar um horizonte crítico diferente” são precisamente aquelas que não se deixam atingir pela “desintegração do bolchevismo”. O leninismo, esse sim, foi superado pela história porque era “um marxismo super-adaptado a um momento particular do desenvolvimento do capitalismo que, consubstanciado no fordismo, adquiriu características próprias: divisão taylorista do trabalho, mecanização industrial, ênfase na organização de massa, etc.” (p. 23).
Não será menor, entre os leitores marxistas, a polêmica provocada por seu endosso à recusa da dialética propugnada por Toni Negri. Ele aborda a questão nos dois últimos capítulos explorando os principais pontos de divergência entre os autores ligados ao open marxism e o operaísmo. Os primeiros, inspirados pela dialética negativa de Adorno, admitem a presença do sujeito no objeto negado. A existência do sujeito trabalhador é concebida não apenas contra, mas dentro do capital, como sua contradição. A relação entre os polos capital e trabalho não é de exterioridade, mas de determinação dialética e o capitalismo é constituído por esta contradição imanente. A emancipação do trabalho, nesta perspectiva, passa pela dissolução (Auflösung) da contradição. Negri (e Altamira), ao contrário, postula uma negação não dialética entre o capital e o trabalho, uma relação de exterioridade e antagonismo que enfatiza a autonomia ontológica do trabalho perante o capital. Altamira interpreta esta posição como sendo a afirmação da materialidade da classe operária em contraposição à visão do marxismo crítico e do open marxism na qual, como no Lukács de História e consciência de classe, “os trabalhadores considerados de maneira concreta e direta, em carne e osso, parecem estar ausentes” (p. 333). O antagonismo tem caráter absoluto e sua solução exige a destruição do oponente. Altamira ainda extrai, dessa dissensão, desdobramentos no plano da organização política: enquanto o open marxism aposta na crítica e na compreensão das contradições, o operaísmo engaja-se na atividade espontânea das lutas dos trabalhadores (mantendo-se, assim, mais próximo de Lenin, apesar de tudo). O capítulo final prolonga esta contraposição para o terreno epistemológico. Contra o perfilhamento clássico do marxismo no campo da dialética, que Altamira (seguindo, mais uma vez, Negri) identifica como o “eixo teórico Hobbes-Rousseau-Hegel-Marx” ele propõe outro eixo, notadamente materialista: Maquiavel-Spinoza-Marx. O exame de aproximações e divergências entre os pensamentos de Althusser e Deleuze servem de guia para as contribuições que ele propõe ‘para uma teoria do conhecimento materialista’, o título do último capítulo.
Por mais incômodo que provoquem, as idéias de Altamira não são fáceis de atacar. Inútil cobrar delas fidelidade estrita aos textos de Marx, já que o autor não se cansa de repetir que está interessado na renovação do marxismo, o que inclui permitir-se selecionar criteriosamente os elementos que perduram daqueles que ficaram datados na obra marxiana. O caminho mais promissor para uma crítica parece ser o de testar a validade lógica, histórica e política dos argumentos, ou seja, aceitar o debate nos termos propostos por ele. Poderíamos também indagar sobre a relação entre o tipo de crítica que ele nos propõe e as lutas da classe trabalhadora ‘de carne e osso’ e insinuar que haja aí, talvez, uma dialética. Ou argumentar que ainda existem bons motivos para formularmos questões sobre o problema da consciência de classe a partir de observações de fenômenos que não se deixam explicar pela mera ‘afirmação do ser’ deleuziana. Ou mesmo poderíamos nos perguntar sobre se as noções de composição de classe e antagonismo absoluto deixam espaço para uma formulação adequada do problema da dominação de classe, considerando-se que o capital não foi, afinal, derrotado.
A relevância das questões propostas por César Altamira e a qualidade da sua formulação, não importa se concordamos com as respostas que ele nos dá, constituem razão mais do que suficiente para que seu livro seja lido. Seu maior mérito, porém, talvez seja outro. Ao invés de apenas reivindicar a validade ou a atualidade do marxismo, Altamira trata de procurar desenvolver o marxismo aplicando-o a temas da contemporaneidade. Ele não apenas nos fala dos marxismos do novo século: ele nos dá um texto que é a prova concreta de que o marxismo continua vivo e capaz de enfrentar as questões do nosso tempo.
Eurelino Coelho – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Bahia, Brasil. E-mail: eurecoelho@gmail.com
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