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Os gêneros do discurso – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. 164p. Resenha de: BRAIT, Beth. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.2 São Paulo May./Aug. 2017.

Por que determinados textos, literários ou não, comportam mais de uma boa tradução, dentro de uma língua, sem que a ordem de aparecimento desqualifique a anterior? E se pensarmos num mesmo tradutor, o que justificaria a (re)tradução? Evidente que as respostas são muitas e vão depender, necessariamente, da maneira como se considera a passagem de um texto de uma língua a outra. Se, por exemplo, compreendermos a tradução como uma relação singular, estabelecida entre um texto de partida e um contexto de chegada, implicando modos de ler/reler uma obra e seu autor, será possível considerar não somente as idiossincrasias do tradutor criterioso que se volta mais de uma vez para um mesmo texto, e que com sua lupa persegue as minúcias estilístico-significativas do diálogo aí estabelecido entre duas línguas, duas consciências produtivas e em tensão, mas também, a possibilidade de reconhecer singularidades do tempo-espaço em que as traduções e (re)traduções acontecem. O novo contexto de recepção envolve, ao mesmo tempo, uma tradição temporal e espacial de estudos a respeito do autor/obra/tradução e a possiblidade de conferir ao novo trabalho do tradutor, ao texto de origem e à (re)tradução um estatuto diferenciado das manifestações anteriores.

Assim deve ser compreendido Mikhail Bakhtin: os gêneros do discurso, livro que chegou ao leitor em 2016, representando ganhos e significados especiais para os estudos bakhtinianos no Brasil. O crítico, ensaísta, professor e pesquisador Paulo Bezerra, reconhecido por suas importantes traduções literárias e por ser um dos responsáveis pela existência de Mikhail Bakhtin em língua portuguesa, retoma dois textos por ele traduzidos diretamente do russo e publicados em 2003 na coletânea Estética da criação verbal – “Os gêneros do discurso” e “O problema do texto na linguística e nas outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, este último renomeado como “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” – e a eles acrescenta dois inéditos – “Diálogo I. A questão do discurso dialógico e Diálogo II”, publicados pela primeira vez na Rússia em 1997.

Sem dúvida, esse evento tradutório, que interliga versões pontualmente modificadas de dois textos que, juntamente com outros do pensador russo, são centrais para a compreensão dos conceitos de gênero discursivoenunciado, texto, cadeia comunicativa, cadeia da comunicação discursiva, campos da comunicação cultural, cadeia histórica da cultura, deixa os estudiosos entusiasmados por ao menos duas razões. Pela estética das traduções de Paulo Bezerra, produto do reconhecido rigor acadêmico-científico, pautado na ética da pesquisa, sempre atento ao estado da arte de suas traduções e ao estado atual do conhecimento dos escritos do autor de Problemas da poética de Dostoiévski, notadamente na Rússia, onde vai buscar e conferir fontes. E pela chegada de dois novos escritos, voltados para diálogo, outra grandeza essencial na reflexão teórico-filosófica bakhtiniana que, como afirma Bezerra, “mesmo sendo textos preparatórios de ‘Os gêneros do discurso’, discutem questões congêneres não contempladas nessa obra e trazem rascunhos de projetos teóricos que o mestre pretendia desenvolver, revelando sua permanente preocupação com o aprofundamento e uma maior abrangência de sua teoria do discurso em vários campos das humanidades” (p.151).

Portanto, o gesto que implica (re)tradução acrescida de tradução de inéditos acontece a partir de um retorno do tradutor-pesquisador às fontes russas, aí consideradas a edição de Estética da criação verbal (Moscou, Iskusstvo,1979, organização e notas de Serguei Botcharov) e o tomo 5 das Obras reunidas de M. M. Bakhtin, (Moscou, 1997, volume organizado por Botcharov e Liudmila Gogotichvíli). A consequência imediata, altamente positiva para o leitor brasileiro e para o conhecimento do pensamento bakhtiniano, é uma decisão editorial que repensa a natureza dos textos reunidos em Estética da criação verbal, obra publicada na Rússia após a morte do autor.

Bastante conhecida no Brasil, essa coletânea, que teve uma primeira tradução feita a partir da edição francesa (Maria Ermantina Galvão G. Pereira, 1992), tem desde 2003 tradução feita por Paulo Bezerra, diretamente do russo. E é nela que se encontram os textos “Os gêneros do discurso”, “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, assim como diversos outros trabalhos produzidos em diferentes momentos por Mikhail Bakhtin. Como afirma Paulo Bezerra, “não é um livro tematicamente uniforme; são três livros em um, todos diferentes entre si pelos objetos de análise e reflexão, além de dois textos sobre Dostoiévski e outros quatro sobre diferentes temas de ciências humanas” (p.151). Ou seja, trata-se de um conjunto que, de fato, poderia, por um critério de relação e coerência entre obras, ser desmembrado e, com isso, oferecer ao leitor de hoje um panorama mais esclarecedor da maneira como alguns constructos do pensamento bakhtiniano foram aparecendo, sendo trabalhados e retrabalhados, evidenciando seu papel, função e participação na edificação da arquitetônica que rege e abriga o conjunto desse forte pensamento sobre linguagem.

E é justamente essa perspectiva que, considerando a possibilidade de agrupamentos coerentes dos trabalhos presentes em Estética da criação verbal, apresenta Os gêneros do discurso como o primeiro de quatro volumes previstos. Nesse sentido, o leitor se pergunta: “E qual é a coerência temática que dá conta, nesse primeiro volume, dos dois trabalhos conhecidos somados aos dois inéditos?”.

Os estudiosos interessados em alguns dos fios condutores do pensamento bakhtiniano têm procurado estabelecer, dentre outras coisas, a relação existente entre os conceitos de enunciado (por vezes enunciado concreto ou mesmo enunciação em algumas traduções), textodiscurso, gênero do discurso, cadeia da comunicação discursiva, campos ou esferas da comunicação cultural, sem dúvida pilares da construção reflexiva bakhtiniana, voltada para a linguagem nas artes e nas ciências humanas e, especialmente, a maneira como esses elementos constituem unidades e elos para a compreensão do processo vivo da comunicação humana, das cadeias discursivas.

Essa busca leva, necessariamente, aos dois trabalhos produzidos por Mikhail Bakhtin nas décadas de 50 e início de 60, do século passado, aproximados de forma muito pertinente nesse volume: “Os gêneros do discurso” (1952 – 53) e “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” (1959-61). Neles, os conceitos mencionados são apresentados, tematizados, discutidos e inseridos na construção de uma perspectiva dialógica de concepção e abordagem da linguagem, bem como interligados numa interdependência que evoca outros escritos de Bakhtin, caso de “O discurso no romance” (texto iniciado em 1929 e concluído entre 1934 e 1936, publicado pela primeira vez na União Soviética em 1972).

A tentativa constante de compreensão do significado desses constructos fundamentais para a perspectiva dialógica da linguagem, caso de gênero do discursoenunciado, texto fica facilitada pela organização desse primeiro volume do desmembramento de Estética da criação verbal, justamente pela forma como discurso, gênero e enunciado se articulam em relação a texto e vice-versa.

Em “Os gêneros do discurso” encontra-se um momento da concepção bakhtiniana de linguagem que sistematiza a importância da noção gênero para a compreensão da língua em movimento, plena de vida e de mobilidade, flagrada no diz-que-diz do burburinho da vida e da cultura, da vida na cultura, quer artística ou científica, do enunciado como unidade dialógica de tensão entre um/outro, entre ao menos duas consciências, entre identidades/alteridades, entre a língua/unidade, preservada a duras penas pelas forças centrípetas, e a língua/plural, multifacetada, plenamente realizada pelas forças centrífugas provocadoras do plurilinguismo. E é precisamente por essa dualidade – unidade/unicidade – que em “Os gêneros do discurso” encontra-se a importante discussão sobre as realidades representadas pela oração, enquanto unidade/modelo do conjunto de possiblidades de um sistema, e o enunciado, oral ou escrito, proferido de forma concreta e única, por integrantes das diferentes esferas da atividade humana.

Se gênero do discurso é um tema que acompanha o pensador russo ao longo de toda a sua vida, podendo essa presença ser vivenciada em Problemas da poética de Dostoiévski e em O discurso no romance, por exemplo, a concepção de texto como unidade semiótico ideológica também se reitera ao longo do conjunto da obra, ganhando discussão específica em “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, no qual se pode ler: “[…] por trás de cada texto está o sistema da linguagem. […]. Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido […]. Esse segundo elemento (polo) é inerente ao próprio texto, mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de dado campo)” (p.74-75).

O trecho em destaque indica duas dimensões implicadas, como também se pode observar em Os gêneros do discurso, que são evocadas como condição de existência de um texto: a materialidade sígnica ou dimensão semiótica, que o constitui e o faz participante de um sistema; a singularidade que lhe é conferida a partir de sua participação ativa e efetiva na cadeia da comunicação discursiva da vida em sociedade. Essa combinatória constitutiva de elementos dados (sistema) e elementos criados (linguagem em uso) possibilita a um texto ser reconhecido como pertencente a um sistema (linguístico, pictórico, musical, etc.), e, ao mesmo tempo, como portador de valores, de posições que garantem a produção de sentidos, sempre em confronto com outras posições e valores presentes numa sociedade, numa cultura. De acordo com Bakhtin, “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (p.71).

Os dois inéditos, por sua vez, tem um sabor muito especial. O título evoca uma das peças-chave da teoria bakhtiniana, que é o diálogo, concebido como constitutivo da linguagem humana e não apenas como estrutura de conversa. Escritos antes da versão definitiva de “Os gêneros do discurso”, “Diálogo I” (1950) e “Diálogo II” (1952), publicados em 1997 no volume 5 das Obras de Bakhtin (Editora Rússkie Slovarí), certamente surpreendem, conforme afirma Bezerra:

À primeira vista são rascunhos do que viria a ser o texto final de “Os gêneros do discurso”, porém, uma leitura atenta mostra que Bakhtin vai além do livro projetado. […] Em toda a concepção bakhtiniana a linguagem humana é vista sob um prisma dialógico, mas nesses “diálogos” atribui-se à própria língua uma natureza dialógica, o que, a meu ver, é uma novidade na teoria linguística de Bakhtin (p.111).

A esse coerente conjunto, Paulo Bezerra ainda acrescenta um posfácio, a bem da verdade um substancioso ensaio de quase vinte páginas, sugestivamente intitulado “No limiar de várias ciências”, por meio do qual caracteriza a coerência do quarteto, enquanto composição teórica interligada por uma das unidades temáticas própria do pensamento bakhtiniano, relacionando-a com outros trabalhos do autor, discutindo a importância desse conjunto e auxiliando, neste momento dos estudos bakhtinianos, a compreensão dos complexos meandros de “Os gêneros do discurso”, trabalho nem sempre pensado em suas reais especificidades, em consonância com outros trabalhos de Mikhail Bakhtin. E aí a (re)tradução se justifica, ganhando corpo e lugar na cultura brasileira.

Beth Brait – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP, São Paulo, Brasil; CNPq-PQ nº. 303643/2014-5; bbrait@uol.com.br.

Itamar Freitas

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