Os feitos e os efeitos das cotas raciais no Brasil: avanços, desafios e possibilidades | Escritas do Tempo | 2022
Professores criam grupo para defender implantação de cotas raciais na UEM | Imagen: Maringá Post
Depois de mais de uma década de intensa discussão sobre a legalidade e a constitucionalidade do sistema de vagas reservadas para negros no ensino universitário, em 26 de abril de 2012, a Suprema Corte Brasileira, por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, declarou a constitucionalidade do Plano de Metas de Inclusão Étnico-Racial instituído pela Universidade de Brasília UnB). Para a Suprema Corte, as cotas, ao utilizarem do critério racial para inclusão destes homens e mulheres negras nas universidades, estavam exercendo uma política de reparação e construindo possibilidades de ampliar a igualdade material e simbólica no Brasil.
O reconhecimento constitucional das cotas pelo STF foi normatizado por meio da Lei Federal 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas, que garante a reserva de 50% das matrículas nas universidades e institutos federais de educação a alunos oriundos de escolas públicas. O texto legislativo ainda estabelece que as vagas reservadas às cotas sejam subdivididas, metade para estudantes de escola públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda superior 1,5 salário-mínimo. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Tanto a ADPF 186/2012 como a Lei 12.711/2012 foram um avanço na mobilização da população negra brasileira por direitos e por ocupar espaços que em outros momentos históricos lhe foram negadas ou obstaculizados. Por uma questão de memória histórica é fundamental lembrar que homens e mulheres negras que chegaram ao Brasil a partir do século XVI como escravizados sempre lutaram por direitos, seja por meio de ações individuais ou coletivas, o que levou inclusive à Abolição da Escravidão em 1888. No século XX, por meio de movimentos sociais negros como Frente Negra Brasileira, Associação dos Homens de Cor, Teatro Experimental Negro e Movimento Negro Unificado, e mais recentemente por organizações como Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as, Coalização Negra e Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros espalhados pelo país, a luta continua nas mais diversas áreas e de formas distintas.
Percurso histórico que levou à aprovação das cotas raciais, faz parte da luta dos povos negros no Brasil pelo reconhecimento desde que desigualdades sociais são potencializadas pela raça/cor. Um dos marcos para o reconhecimento foi a participação brasileira na Conferência de Durban na África do Sul, em 2001, em que o governo brasileiro reconheceu os efeitos do racismo e a necessidade de adoção de medidas que pudessem minimizar ou mitigar as consequências destes na sociedade. Foi a partir de Durban que diversas Instituições de Ensino Superior (IES) passaram a implementar algum tipo de política de ação afirmativa para a população negra.
A participação na Conferência em Durban fez com que o Estado brasileiro desse passo importante para amenizar as consequências do racismo, ao se comprometer em criar ações afirmativas para a população negra. Seu objetivo é discutir ações concretas para viabilizar a sua erradicação, ressaltando a necessidade de criar não só ações preventivas, mas também medidas efetivas que proporcionassem a reversão dos quadros de desigualdade produzidos ao longo dos tempos. Ao utilizar o critério da raça para políticas de ações afirmativas como as cotas, o Estado reconhece legalmente que a raça é um definidor das relações sociais no Brasil, para além disso é desafiado a rever os nossos saberes sobre como o conceito de raça foi utilizado na construção da identidade nacional brasileira.
Nestes mais de vinte anos de existência de cotas raciais, iniciando em 2001, quando o Deputado José Amorim Pereira, do extinto PPB-RJ, propôs uma Lei, projeto 2.490/2001, para criar uma emenda, reservando vagas para estudantes negros em universidades públicas. A Universidade Estadual da Bahia (UNEB), utilizando de sua autonomia, aprovou cotas raciais em 2002 e Instituições Federais, como a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade de Brasília (UNB), e Universidade Federal do Paraná (UFPR) adotaram o sistema de cotas em 2004, quase uma década antes da existência da Lei Federal 12.711/2012. Os feitos e os efeitos desta política foram inúmeros, como por exemplo, conseguimos perceber uma mudança no perfil dos discentes do Ensino Superior.
Apesar da percepção de que as cotas raciais têm um papel fundamental na ampliação e consolidação da igualdade no Brasil, a missão histórica dessa política ainda não terminou. Acreditamos que na revisão que está prevista no corpo da lei supracitada, é necessário adotar medidas de aprimoramento desta política, como por exemplo: a não condição a uma renda específica, a previsão explícita das comissões de heteroidentificação no próprio corpo da lei, além da introdução de políticas de ação afirmativa também nos programas de pós-graduação e a construção de políticas de permanência como bolsas de estudo aos cotistas. Ou seja, as cotas raciais já tiveram diversos efeitos no tecido social brasileiro, mas ainda há muito o que fazer.
Para pensar os feitos e efeitos das cotas raciais, precisamos nos valer do acúmulo epistêmico e político advindo dos processos de discussão e implementação das cotas raciais nas diferentes instituições de ensino no Brasil, enquanto mecanismo de ações afirmativas. Os artigos propostos neste dossiê, utilizando das preocupações de suas autorias e conectadas as suas realidades, demonstram que as cotas raciais são uma política social revolucionária no Brasil, no entanto, o seu potencial pode ser maior se nos atentarmos para a proteção da política e sua ampliação nas mais diferentes áreas do ensino e no mercado de trabalho.
O artigo que abre o dossiê foi intitulado Cotas raciais, movimento negro e os núcleos afro-brasileiros: O caso da UEM, de Caroliny de Souza do Nascimento Cardoso, Marivânia Conceição Araujo e Daniara Thomaz Fernandes Martins faz uma análise do processo de implementação das cotas para negros(as) na Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná, com ênfase na articulação entre os movimentos negros locais e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB) da instituição para as mobilizações em torno da ação afirmativa.
Ainda, a partir das realidades locais e conversando com o processo de implementação das cotas raciais a partir da luta dos movimentos negros, temos o artigo de Danilo Luiz Marques e Rosa Lúcia Lima da Silva Correia, intitulado O movimento negro, o NEABI/UFAL e a implementação do programa de políticas de ações afirmativas da Universidade Federal de Alagoas (2003-2022), que trata de uma reconstituição do itinerário das ações afirmativas na Universidade Federal de Alagoas, no início dos anos 2000, como resultado da ação política e pedagógica do Movimento Negro, dentro e fora do meio acadêmico, para assegurar o acesso aos direitos sociais da população negra ao Ensino Superior público.
O terceiro texto do dossiê é o Protagonismo negro nas políticas públicas: a Lei de Cotas em tempo de avaliação no Congresso Nacional, de Arilson Dos Santos Gomes, que analisa os conteúdos de oito Projetos de Lei (PL) e um Anteprojeto de Lei que foram enviados ao Congresso Nacional. Com foco na avaliação da Lei de Cotas na Educação (12.711/12), o autor apresenta uma discussão histórica, o debate político e jurídico instaurado pelos sujeitos negros sobre a necessidade da sequência das políticas públicas, com recorte racial, visto que, além da discriminação negativa, esse grupo se encontra entre os menos favorecidos no aspecto material e no acesso ao Ensino Superior.
O penúltimo texto do dossiê é O dualismo político de igualdades raciais na educação: das cotas e do engodo meritocrático para população negra de Amanda Salomão, Marivania Conceição Araujo e Caroliny Souza Nascimento Cardoso. O artigo discute a entrada e a permanência dos negros nas universidades brasileiras e reflete sobre as barreiras que estes sujeitos encontram no universo acadêmico. As autoras argumentam que todo o processo de inserção é sistêmico e nem sempre igualitário, fazendo-se necessário a criação de formas de tornar estes processos mais justos para quem ainda não pode competir em grau de igualdade por causa das desigualdades históricas.
O texto que finaliza o dossiê, proposto por Delton Aparecido Felipe, intitula-se Cotas raciais e Comissões de Heteroidentificação como Direito de Minoria: Contexto e desafios, artigo que tem como objetivo demonstrar como as comissões de heteroidentificação são fundamentais para a efetivação do direito da população negra como estabelecido na Lei Federal 12.711/2012. Para isso, o autor argumenta o motivo das pessoas negras no Brasil serem sujeitos do direito de minoria e como este conceito de torna produtivo para estabelecer estratégias para a efetivação da igualdade jurídica e a construção de igualdade material e simbólica. Para além disso, argumenta que as comissões de heteroidentificação feitas no Brasil, em especial após 2014, são fundamentais para garantir que as cotas raciais realmente sejam acessadas pelos seus sujeitos, garantindo assim a construção de uma política de reconhecimento, reparação e de representatividade fortalecendo com isto o Estado Democrático de Direito brasileiro.
Para além dos artigos do dossiê, este número ainda conta com os artigos livres. Anatólio Medeiros Medeiros Arce, em artigo intitulado 4 de fevereiro de 1992: história e política na Venezuela Contemporânea, analisa a construção da narrativa histórica do 4 de fevereiro de 1992. Esse acontecimento marcou a entrada no cenário político do grupo que comandaria a Venezuela nas próximas décadas. Neste país, o grupo que detém o poder político pode impor sua visão sobre o passado. O uso da história, moldada por uma leitura favorável aos interesses políticos daqueles que controlam o Estado no momento, permitiu à narrativa do 4 de fevereiro exercer considerável influência política e potencializar a liderança de Chávez. O texto foi construído com base nas seguintes fontes: discursos e entrevistas de Chávez entre 1992 e 2012 e matérias jornalísticas publicadas durante os eventos do 4 de fevereiro de 1992, além de ampla revisão bibliográfica.
Por fim, o texto Os Pretos do Rosário no pós-abolição: experiências de uma irmandade negra em Laguna (SC) no final do século XIX, de Julio Cesar da Rosa, enfatiza experiências das populações afrodescendentes na cidade de Laguna, no estado de Santa Catarina, a partir dos vestígios deixados pela Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Laguna. Diante das dificuldades em encontrar fontes produzidas pela Irmandade, através dos escassos vestígios, às pistas e aos indícios investigados, o autor constrói uma argumentação para retirar do esquecimento esta confraria e compreender seu modo de atuação. O autor identifica que a Irmandade de Laguna desenvolvia atividades muito semelhantes às suas coirmãs e abriu espaço na cidade para novas formas de sociabilidade e associativismo no pós-Abolição.
Encerrando este número, temos a resenha Patrimônio Imaterial de Marabá: a festa do Divino em cores, fé e devoção, uma análise da obra “A festa do Divino Espírito Santo: uma homenagem ao patrimônio cultural Marabaense”, organizado por Ramon de Souza Cabral, que atua na Fundação Casa da Cultura de Marabá (PA), no NAEEPNúcleo de Arqueologia, Etnologia e Educação Patrimonial. Geovanni Gomes Cabral, autor da resenha, aponta que o livro apresenta uma contribuição importante para os festejos da cidade, com valiosa coleta das fontes documentais, escolha de imagens fotográficas e narrativa exposta em suas 200 páginas.
Como podemos ver nessa apresentação, discutir os feitos e os efeitos das cotas raciais no Brasil: avanços, desafios e possibilidades, requer o entendimento da luta dos movimentos negros por igualdade no Brasil, além disso, implica em problematizar quais as garantias jurídicas que temos para a proteção e ampliação da Lei 12.711/2012. Conseguimos reconhecer que nos mais de vinte anos de existência das cotas raciais no país, tivemos avanços, como a maior entrada na população negra no Ensino Superior. No entanto, ainda existem desafios a enfrentar, como a construção de políticas de permanência institucional e de estratégias de sucesso e empregabilidade dos sujeitos das cotas raciais.
Organizadores
Delton Aparecido Felipe – Professor Adjunto na Universidade Estadual de Maringá – Paraná. Doutor em Educação com estágio de doutoramento junto ao Centro de Investigação Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF) da Universidade de Aveiro- Portugal. Pesquisador – Visitante da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas – São Paulo (FGV-SP) e Investigador do Núcleo de Estudo Interdisciplinares Afro-Brasileiros da Universidade Estadual de Maringá-Paraná (NEIAB-UEM). Atualmente é Diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN – 2020-2022), Conselheiro Consultivo da Ouvidoria Geral do Estado do Paraná (2019-2021), Conselheiro do Conselho Permanente de Direitos Humanos do Paraná – COPED (2021-2023) e Representante da Universidade Estadual de Maringá no Conselho da Igualdade Racial de Maringá (COMPIR). https://orcid.org/0000-0003-3637-0401
Vera Regina Rodrigues da Silva – Professora adjunta no Instituto de Humanidades da UNILAB- Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Líder do Grupo de pesquisa Oritá – Espaços, Identidades e Memórias e coordenadora da Linha de Pesquisa “Identidades e Políticas Públicas”. Vice-coordenadora do Comitê de Antropólogos(as) Negros(as) da ABA – Associação Brasileira de Antropologia. Diretora de Áreas Acadêmicas da ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) Gestão 2020-2022. Doutora em Antropologia Social pela USP – Universidade de São Paulo (2012). https://orcid.org/0000-0002-0202-8010
Referências desta apresentação
FELIPE, Delton Aparecido; SILVA, Vera Regina Rodrigues da. Apresentação. Escritas do Tempo, v. 4, n. 10, p. 4-9, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]