Os exuberantes anos 90 | Joseph E. Stiglitz
Em Os exuberantes anos 90 Joseph E. Stiglitz traça uma interpretação do grande boom e da subsequente retração da economia norte-americana durante a década de 1990. Trata-se preponderantemente de uma interpretação econômica, sob viés keynesiano, escrita em linguagem simples, sem gráficos nem tabelas, nem pretensões teóricas elevadas. Pelo contrário, Stiglitz quer escrever ao grande público, divulgando uma visão crítica e mais alternativa, que destaque não apenas os pontos positivos da década- que de fato existem, para ele, sob o ponto de vista da abundância material, para os EUA – mas principalmente as contradições do período, que em geral despertou apenas muito otimismo, e consequentemente muita ladainha laudatória.
De fato, o objetivo é menos perscrutar as causas do vigoroso crescimento econômico da economia norte-americana mas sim quais teriam sido as “sementes da destruição”- segundo sua própria expressão- da subseqüente queda, proporcional àquele crescimento, que jogou por terra a hipótese do desaparecimento dos ciclos dada uma suposta “nova economia da informação”. Para Stiglitz, as bases sobre as quais se apoiou a “exuberância irracional” econômica dos anos noventa nos Estados Unidos foram débeis, instáveis. As tintas com que os grupos e interessados as pintaram não passavam de véus míticos; suas justificativas de que passariam a trazer crescimento econômico e distribuição de riqueza de modo perene, erradas.
“Nos exuberantes anos 90, o crescimento atingiu níveis não vistos em uma geração. Artigos de jornal e especialistas proclamavam que havia uma Nova Economia, que as recessões eram coisa do passado e que a globalização traria prosperidade para o mundo todo. Mas ao final da nova década o que parecia ser o alvorecer de uma era passou a assemelhar-se mais e mais a um daqueles breves surtos de atividade economia, ou hiperatividade, seguido inevitavelmente por um colapso, que marcaram o capitalismo há duzentos anos. Exceto que desta vez a bolha- o boom na economia e no mercado de ações- foi maior, como maiores foram também suas conseqüências, pois a nova era para os Estados Unidos também foi para o país inteiro”. (p.23)
A razão explicativa fundamental do inevitável colapso é a renúncia a um maior papel fiscalizador e regulador por parte do governo. A vitória do pensamento liberal no campo da disputa da supremacia ideológica, que interessa aos grupos que tendem a perder com a regulação pelo Estado de suas atividades, culminou numa típica crise vinda da irracionalidade intrínseca da economia capitalista, nos mesmo moldes que já destacava a “crítica da economia política” há mais de um século: super-investimento e super-valorização de um lado, mais do que aos quais a economia real pode proporcionar demanda efetiva ou sustentar, e sub-investimento de outro. Tal cenário, que traz à tona as deficiências clássicas do sistema capitalista, ocorre com os investimentos relacionados à “nova economia”, mas não apenas com ela. A diminuição do papel regulador do Estado levou a crises de superacumulação no campo da instalação de cabos de fibra-Ótica- dos quais apenas 5% foram utilizados efetivamente- mas também a crises de déficit de investimento em capital fixo- infraestrutura- e também à formação de “bolhas” no mercado financeiro cujo resultado foi a falência de bancos e investidores, “socorridos” com recursos públicos.
“Desregulamentação mal orientada e políticas ruins de juros estavam no cerne da recessão de 1991, e desregulamentação, políticas de juros e práticas contábeis todas mal orientadas estão no cerne da queda da atividade econômica atual. […] A ideologia levou a políticas que ajudaram a gerar a bolha que finalmente estourou; além disso, a ideologia do livre mercado também impediu ações que poderiam ter resolvido alguns dos problemas subjacentes que deram origem à bolha, bem como outras ações que poderiam ter reduzido a bolha e deixado o ar sair gradualmente” (p.45)
Para Stiglitz, a indução ao colapso vem também da renúncia do papel de investidor do governo, como bom keynesiano que é. Neste sentido, a discussão do debate déficits/superávits é elucidativa; seu posicionamento quanto a ela é a seguinte. Por um lado, reconhece que a luta encarniçada contra ele é travada pelo capital financeiro, temeroso de um calote vindo de uma dívida impagável. Mas mesmo assim, por outro lado, um déficit crescente deve ser combatido, pois “com uma dívida crescente, o governo federal tinha de pagar taxas de juros cada vez mais altas, e com taxas de juros mais altas e mais dívida, mais e mais dinheiro saía para pagar juros da dívida nacional. Esse pagamento de juros acabaria por impedir outras formas de gastos” (p.64). Vê-se que o argumento com que hoje as autoridades brasileiras defendem com dogmatismo o superávit também está presente nos mesmos moldes nos EUA. Ocorre, porém, que Stiglitz bem sabe que não necessariamente a redução dos juros trará o crescimento. Todavia, um déficit que estimule a demanda agregada é positivo, no curto prazo- “déficits moderados e estruturados para serem removidos gradualmente quando a economia recuperar a saúde” (p.78). Outro ponto importante e curioso é a crítica de Stiglitz à possibilidade da defesa, pela direita, do déficit como algo positivo, quando se trata de diminuir a tributação sobre os setores mais ricos.
Em tempo: o raciocínio entre déficit, juros e investimentos pode ser resumido como se segue. Stiglitz insiste para que não se diminua tanto o déficit, para não bloquear tanto a economia, para não prejudicar tanto a situação fiscal no médio prazo (o que favoreceria outro déficit etc.). Os juros se reduzem porque o governo não precisa provar tanto que tem dinheiro para pagar. Os riscos para quem empresta ao governo, numa situação de controle e eliminação do déficit, diminuem, e isto torna possível caírem os juros. Para os novos keynesianos, a redução do déficit permitiria diminuir os juros e induzir a um aumento dos investimentos- supondo que haveria uma relação mais ou menos direta entre juros baixos e investimento. Mas daí surge o Stiglitz crítico, novamente: “se o mercado de títulos acreditasse que os déficits declinariam no futuro, as taxas de juros se reduziriam. Nós nos colocamos à mercê do volúvel mercado de títulos, daquelas mesmas pessoas que algumas vezes exibiam exuberância irracional e outras, um pessimismo irracional. […] Isso não deixou nenhum de nós, inclusive o presidente, muito tranquilo” (p.70).
De fato, o debate entre a regulamentação e participação do Estado na economia é antigo, e em relação à qual uma abordagem apolítica- como querem os defensores de um Banco Central “independente”- é uma “pretensão absurda, mas uma estratégia brilhante para aqueles a cujo interesse ela servia” (p.109), como escreve bem Stiglitz. Aqui, destaca ele, não há novidades fantásticas, mas apenas as mesmas conseqüencias nefastas já conhecidas se há a desregulamentação, a diminuição da fiscalização pelo Estado etc., de um sistema em si irracional. O cenário é o mesmo: ascensão e queda, se ás forças do capital for concedida liberdade de vazão, como mostrou tão bem o setor de telecomunicações.
“…o consumo, guiado pelos preços mais altos dos ativos, mantinha seu crescimento robusto. E baixos salários, alto crescimento e produtividade crescente, significavam uma coisa: lucros maiores. E lucros maiores, combinados com taxas de juros baixas, levaram ao boom do mercado de ações. A economia estava verdadeiramente robusta. Porém, não era inevitável que essa economia sadia se transformasse em uma economia de bolha. Se havia um momento para não propor uma desregulamentação, ou para administrá-la particularmente com cautela, este momento eram os exuberantes anos 90”. (p.112).
Outro aspecto crucial da obra é a ferrenha crítica da “contabilidade criativa” das empresas norte-americanas- basicamente criar trâmites contábeis que inflem os lucros das empresas, como por exemplo a emissão de ações sem que as se compute como despesas- e do modo pelo qual os altos executivos se aproveitavam desses trâmites para enriquecer às custas dos outros acionistas. “Eles encontravam maneiras de elevar seus ganhos- por meio de falsas transações que lhes permitiam registrar receitas mesmo se não as tivessem, ou retirar as despesas de seus registros, ou ainda usar baixas contábeis de ativos (repetidamente) para tentar dar aparência de lucros normais robustos” (p.146). As ações se valorizavam, suas remunerações eram elevadas radicalmente, e seus “pés-de-meia” garantidos “antes que o mundo descobrisse a verdade” sobre a falsa valorização das ações das empresas que eles manipulavam. Os altos executivos, estrategicamente posicionados, os conhecedores e manipuladores de todos trâmites, não podiam deixar de descarregar a verdade dos fatos nos acionistas anônimos, que eram a maioria.
Tais críticas dizem muito a respeito do ”espírito do capitalismo” financeirizado contemporâneo: Stiglitz mostra como ele não conduz à “melhor alocação de recursos”, sempre mostrando, como keynesiano, que o Estado tem um papel essencial a cumprir se se trata de tentar fazer com a que uma economia capitalista tenha um desempenho sem muitas flutuações bruscas. Assim, ele mostra como o debate regulação/liberalização, sempre o mesmo, ocorreu também com os bancos, tendo a desregulamentação e a concessão de mais “liberdade” de atuação também a eles feito com que a bolha se inflasse mais, propiciando um estouro mais estrondoso posteriormente. “A Lei GlassSteagall foi uma das reformas colocadas em prática pelo governo de Franklin Roosevelt em resposta à onda de falências que se seguir à Grande Crise de 1929. […] Mas para os bancos americanos, a Glass-Steagall reduzia reduzia suas oportunidades de obter lucros” (p.179). Tratou-se então, nos roaring 90’s, de revogá-la.
O interessante da análise de Stiglitz é que o problema econômico é sempre político, de disputa de interesses conflitantes. A economia é sempre economia política, e serve, para um keynesiano como ele, para algo: no caso, o bem-estar geral, ou a preponderância do coletivo sobre o particular. Não lhe interessam problemas abstratos ou teóricos, mas sim propor soluções para questões sociais práticas, claras e palpáveis, como desemprego, desigualdade, enriquecimento ilícito, empobrecimento dos países periféricos, relações assimétricas destes com as potências etc., como fica claro com sua descrição absolutamente crítica das conseqüencias da globalização para os países periféricos, e do modo pelo qual os Estados Unidos se aproveitaram dela, com um discurso hipócrita de pregar externamente o que dificilmente praticava internamente, como privatização da previdência social e liberalização comercial.
Mas é claro, nem tudo são elogios. Soa estranho como um autor com uma visão tão realista da economia e da história possa soltar vez por outra chavões deploráveis. Comece-se com um suposto papel benéfico que os EUA deveriam ter na globalização- desconsiderando as próprias forças políticas no poder responsáveis pelas consequências nefastas da globalização- acreditando que o posicionamento que os norte-americanos poderiam assumir em relação aos outros países poderia ser de o cooperação, prática para a qual ele tantas vezes insiste.
Fala também de um suposto papel benéfico que a economia de mercado possa ainda trazer; classifica os extintos sistemas socialistas de “patologias, perversões” (p.322). Dá muita importância ao palavreado vazio que fala em uma suposta “nova economia da informação”, que estaria sucedendo a industrial, o que do ponto de vista da objetividade da economia, da materialidade do mundo, não faz sentido algum, pois informações não se comem nem produzem objeto algum. De fato, Stiglitz se esquece de compreender a história e o modo como ela se rege; esbarra amiúde numa inocência ou otimismo muito exagerados para páginas tão recheadas de críticas. São lapsos.
Deste modo, ele não comenta as vantagens que os Estados Unidos tiveram com o fim da Guerra Fria- a unipolaridade e a ocupação inconteste do Iraque e Afeganistão- assim como, na página 282, diz que os efeitos de demanda efetiva vindos dos gastos que o governo faz para sustentar as guerras atuais que fazem os Estados Unidos são mais que compensados pelos efeitos depressivos da “incerteza” que elas provocam. Não se posiciona sobre os efeitos destrutivos que a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) traria para a América Latina, e não consegue observar que, nas relações internacionais, dos países com a “globalização”, não se tratam bem da relação entre “países”, mas da relação de classes dominantes locais com os interesses internacionais forâneos, que vêem aqueles como meros administradores periféricos.
Porém, apesar destas tergiversações, do tom melodramático, cheio de esperanças e senso-comum sobre “novas visões e valores” e outros rumos a dar para a “globalização” no final do livro- uma versão bem mais pobre inspirada no espírito do ˙último capítulo da Teoria Geral– o livro é ótimo, inteligente, e honesto intelectualmente.
Uma ˙última ressalva, quanto à tradução de “roaring nineties”, o título em inglês: talvez “estrondosos anos noventa” fosse uma opção mais realista ao espírito do livro do que “exuberantes anos noventa”, já que “exuberante” pode lembrar uma certa idéia de beleza excessiva, com cores fortes, de entusiasmo por algo mais ou menos bom, e não a sucesso de crises que o livro destaca, e que “estrondosos”- ou um sinônimo mais ou menos similar- poderia sugerir, com mais fidelidade ao estudo.
Resenhista
Vitor Eduardo Schincariol – Mestrando em História Econômica FFLCH – USP.
Referências desta Resenha
STIGLITZ, Joseph E. Os exuberantes anos 90. São Paulo: Companhia das Letras. 2003. Resenha de: SCHINCARIOL, Vitor Eduardo. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 02, n. 04, p.101-106, dezembro, 2005. Acessar publicação original [DR]