Os Dois Lados da Guerra Civil: análise histórica e filosófica do maior conflito entre super-heróis | Bruno Andreotti

Este texto visa resenhar o livro Os dois lados da Guerra Civil: análise histórica e filosófica do maior conflito entre super-heróis, lançado em março de 2016 pela editora paulista Criativo. Escrito pelos “Quadrinheiros”, grupo formado por Adriano Marangoni, Bruno Andreotti, Iberê Moreno e Maurício Zanolini, o livro aborda a saga quadrinística da Guerra Civil, lançada pela editora Marvel entre os anos de 2006 e 2007, e trazendo, como o próprio título sugere, uma discussão historiográfica em torno das conexões culturais, políticas e sociais trazidas pela saga, cuja temática envolve um conflito entre super-heróis americanos decorrente de uma medida governamental exigindo o registro compulsório dos mesmos junto ao governo, que dividiu os heróis.

O livro, em suas 207 páginas, está dividido em seis capítulos principais, uma introdução e uma conclusão, e em alguns chamados “extras”, incluindo um glossário e uma interessante análise estética do traço dos desenhistas da saga. Um prefácio do professor Antonio Pedro Tota (PUC/SP) introduz a obra, apresentando os autores e os temas que serão abordados no livro.

O prefácio é seguido por uma introdução escrita por Maurício Zanolini, onde ele, como o título sugere (Dissecando a Guerra Civil), apresenta ao leitor a saga, dissecando-a às minúcias do que foi considerado o maior fenômeno editorial da editora. Resume a narrativa do evento, contextualizando-o dentro do mercado editorial dos quadrinhos (que se encontrava reformulando seus paradigmas da década 90) e das consequências do atentado terrorista do 11 de setembro de 2001, e aborda todo o processo de formulação da saga, com a chegada de Brian Michael Bendis à Marvel e a ascensão de Mark Millar na editora, até a publicação de fato da saga e seus desdobramentos mais visíveis.

O primeiro capítulo, A Guerra Civil e o 11 de setembro: Liberdade e Segurança, escrito por Bruno Andreotti, vai retomar a questão apresentada na introdução entre a Guerra Civil e o 11 de setembro, relacionando intimamente os dois eventos, considerando o segundo como uma consequência direta dos desdobramentos do primeiro na sociedade americana e do acirramento das medidas de segurança estabelecidas pelo Estado americano (USA PATRIOT Act), associando o “Ato Patriota” americano com “Ato de Registro de Super-Humanos” dos quadrinhos, aprofundando a discussão em torno da existência de uma dicotomia entre os conceitos de “segurança” e “liberdade” na sociedade americana, intensificada pelo atentado que destruiu o World Trade Center.

O segundo capítulo (Guerras Civis e ideologia) foi escrito por Iberê Moreno e trata de uma interessante analogia entre a Guerra Civil dos quadrinhos e o conflito homônimo da história americana, problematizando as questões de conflitos dicotômicos maniqueístas (Norte-Sul, Leste-Oeste, Monarquia-República) no imaginário identitário norte-americano. Vai traçando paralelos ideológicos entre os dois conflitos, desde as primeiras divergências até o rompimento entre os dois latos e a deflagração de um conflito aberto entre eles, discutindo sobre a relevância desses elementos na constituição da própria identidade do americano.

Segue um breve capítulo, escrito por Adriano Marangoni, Bruno Andreotti, onde é tratado, de forma um tanto rudimentar, as relações entre o chamado “espírito das leis” e a contemporaneidade, problematizando as questões relacionadas ao excesso de leis, a vontade geral e o papel do super-herói em determinada sociedade, conjecturando desdobramentos possíveis para essas questões. Após isso, temos outro capítulo escrito por Iberê Moreno, onde o autor questiona qual o papel dos super-heróis diante do Estado ou, como ele próprio intitula, Para Quem Trabalham os Super-Heróis? Nesse capítulo, Iberê Moreno desdobra a reflexão iniciada no segundo capítulo sobre referenciais identitários do imaginário americano presentes em Guerra Civil. Aqui ele aborda a figura do herói propriamente dito e seu aspecto mítico. Considera o Capitão América como representante do arquétipo do “cowboy”, figura heroica central no processo de expansão dos Estados Unidos ao oeste. Um personagem ao mesmo tempo comprometido com os ideais americanos, mas não institucionalizado, agindo muitas vezes à margem da lei, em prol da expansão desses ideais. Da mesma forma, essa leitura permite ler as ações do Capitão América em sintonia com o ideal americano, compreendendo assim as ações, em romper com o governo americano, dele como reflexos desse ideal, enquanto o Homem de Ferro, alinhado com o governo, seria a representação do empresário, mais pragmático e institucionalizado.

O capítulo seguinte, Intolerância e preconceito na Guerra Civil, escrito por Maurício Zanolini, aborda a noção de intolerância envolvendo os heróis relacionados ao conflito. A partir de duas análises de caso, de Robert Baldwin (a.k.a. Speedball/Penitência) e da conspiração atlante, o autor trabalha como se constitui a intolerância e a própria repressão diante dessa situação excepcional que foi o momento da Guerra Civil para os super-heróis americanos.

O sexto capítulo, Mídia e opinião pública na Guerra Civil, de Bruno Andreotti, que se concentra na ideia de que a opinião pública ser o real ponto central e o objetivo da Guerra Civil. Andreotti discute conceitos como objetividade do trabalho jornalístico, censura e a própria disputa pela opinião pública como elementos vitais para a compreensão do desfecho da mesma, especialmente levando em conta as edições paralelas, onde o trabalho jornalístico é bem mais retratado.

E, por fim, concluindo o que é possível chamar de “livro principal”, o livro apresenta um epílogo, escrito por Adriano Marangoni, com o título de Para além da Guerra Civil, onde o autor pondera sobre a construção de uma historicidade pelos quadrinhos, retomando as questões apresentadas no decorrer do livro, ligando as discussões e pensa a respeito dos desdobramentos da saga no cinema.

Segue a discussão, como apontado anteriormente, alguns extras. Um glossário explicando os conceitos principais, personagens e grupos presentes no conflito, bem como quadrinistas, roteiristas e desenhistas relevantes para a discussão do livro.

Também, entre os extras, há um capítulo notável de autoria de Franco de Rosa, quadrinista, jornalista e desenhista, intitulado Força dos desenhos da saga da Guerra Civil e suas edições paralelas, onde trabalha a estética dos quadrinhos da saga com primor. Apresenta os desenhistas da Marvel responsáveis por sua produção, suas preferências estéticas e características de seu traço, problematizando alguns aspectos da construção narrativa a partir desses desenhistas.

Estruturalmente, o livro está muito bem organizado. A diagramação está ótima, tornando a leitura agradável. A arte está bem dosada, indo do minimalismo na capa e do índice a artes muito bem escolhidas para a apresentação dos capítulos; O desenvolvimento dos capítulos também encontra bem suprido de ilustrações, como referências pertinentes aos quadrinhos abordados e outras ilustrações auxiliares (mapas, fotografias, organogramas) que auxiliam a compreensão das reflexões feitas no decorrer do livro.

A linguagem está bem acessível, mas sem perder a formalidade esperada de um trabalho acadêmico. Com algumas poucas exceções, as discussões são exploradas de forma bastante compreensível e didática, o que é elementar considerando a transversalidade dos assuntos abordados, sempre preocupados com a compreensão dos temas pelo leitor.

No entanto, alguns detalhes no desenvolvimento do livro devem ser apontados. O primeiro é uma descontinuidade nos capítulos. Embora em alguns momentos é possível ver por parte dos autores a tentativa de entrelaçá-los, em boa parte do livro as discussões se encontram desconectadas entre si. Apesar de isso ser muito comum em obras que, como essa, são organizadas a partir da união de capítulos de autores diferentes, aqui isso acaba parecendo uma perda. Não o é em absoluto, é claro. Todavia, pelo objeto analisado e pela proposta apresentada, uma conexão um pouco maior entre os capítulos seria altamente positiva.

Outro problema se deu na introdução. Um capítulo muito bem desenvolvido, apresentando com excelência o desenvolvimento do mundo editorial da Marvel entre os anos 90 e o lançamento da Guerra Civil em 2006, bem como um resumo muito bem feito sobre o desenvolvimento do conflito. Porém, apesar da qualidade do capítulo, ele consiste em uma introdução ao evento, mas não exatamente ao livro, deixando a sensação de uma lacuna.

Mas, apesar desses detalhes, o livro é uma publicação muito importante. Muitas discussões apresentadas nele são de grande relevância para o estudo dos quadrinhos americanos. E, pela sensibilidade dos autores ao discutir alguns dos temas, o livro certamente será uma referência de peso, ainda mais considerando que o mercado editorial brasileiro ainda carece de publicações mais recentes sobre a temática. Mesmo o capítulo de Franco de Rosa, apesar de não ser acadêmico, apresenta uma discussão de grande qualidade, acrescentando muito ao conteúdo do livro.

Os autores, Adriano Marangoni, Bruno Andreotti, Iberê Moreno e Maurício Zanolini, têm formações acadêmicas distintas dentro da área de Humanidades. São membros do grupo conhecido como Quadrinheiros (do site homônimo), surgido por volta de 2009 e especializado em quadrinhos, sendo esse a primeira publicação propriamente acadêmica do grupo.


Resenhista

Lucas Suzigan Nachtigall – Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP/Assis.


Referências desta Resenha

ANDREOTTI, Bruno et al. Os Dois Lados da Guerra Civil: análise histórica e filosófica do maior conflito entre super-heróis. São Paulo: Criativo, 2016. Resenha de: NACHTIGALL, Lucas Suzigan. Fronteira: Revista de História. Dourados, v.20, n.35, p.228-231, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

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