Dei um pulo na cidade.
Iaiá, minha preta, se eu sei não iria.
Só vi sacanagem, só vi covardia.
Não sei como pode alguém lá viver.
Quando vi o salário Que o pobre operário Sustenta a família Fiquei assustado, Iaiá, minha filha, Montei no cavalo e voltei pra você.
Quando eu contar, Iaiá Serginho Meriti/Beto Sem Braço A prática docente e a de pesquisa acadêmica encontram, entre muitas proximidades, a comum dificuldade em agregar elementos, documentos e fontes que permitam oferecer uma leitura do passado capaz de estimular interpretações de experiências e expectativas de sujeitos geralmente esquecidos, silenciados na memória oficial e no relato historiográfico predominante. O objetivo de narrar uma “história de baixo para cima”, embora estimule o fazer historiográfico desde a primeira metade do século XX, ainda exige muito esforço, criatividade e perspicácia para que se identifique o eco de vozes então abafadas pelo discurso hegemônico. O esforço em captar a repercussão das palavras de grupos dissonantes em um contexto autoritário e comumente identificado como onipotente, o Estado Novo Varguista, é o que move o historiador Adalberto Paranhos nesta nova obra, produção cara a iniciados nos estudos do período e, por sua linguagem acessível, também a demais interessados.
Obra para ser lida e escutada, enriquece o material disponível para pesquisadores e docentes. Reprodução integral da tese de doutorado em História Social defendida na PUC-SP em 2005 – “praticamente sem tirar nem pôr”, confessa o historiador (p.21) –, a obra constitui um novo olhar sobre o contexto e tema que o autor pesquisou no mestrado em Ciências Políticas, trabalho publicado sob o título de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil pela Boitempo Editorial, em 1999.
Esse caminho de formação levou-o a analisar, no doutorado, discursos que não estavam afinados com a ideologia trabalhista propagada durante o primeiro governo Vargas – e, especialmente, na ditadura do Estado Novo – conforme expresso no título do livro. Para encontrar essas vozes dissonantes, abafadas na interpretação recorrente, Paranhos treinou seus ouvidos para identificar os indícios espalhados pelo rico universo dos fonogramas, evidenciando a atenção do historiador ao ensinamento do linguista Luiz Tatit, em seu O século da canção, de que “o canto sempre foi uma dimensão potencializada da fala” (Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p.41).
O uso da música popular como fonte e objeto da historiografia brasileira no estudo da Era Vargas, conforme pontua o autor já na introdução do livro, remete ao ano de 1980. Quando Paranhos defendeu sua tese, em 2005, portanto, o campo organizava-se havia 25 anos. No atual contexto de publicação do trabalho, sob a forma do livro em análise nesta resenha, podemos dizer que a atenção à canção já está longe de seus primeiros passos, encontrando certa maturidade interpretativa. Contudo, o historiador identificou nessa produção acadêmica a interpretação corriqueira de uma irrestrita adesão ao discurso trabalhista do regime após a imposição do Estado Novo, em 1937, por parte dos compositores populares – focada nos sambistas cariocas. A celebração da malandragem e do estilo de vida “vadio”, temas caros à tradição sambista que chegava aos rádios e lojas de discos de até então, estaria soterrada pelo onipotente poder do Estado. O samba se tornaria, assim, caixa de ressonância do discurso estatal, por força da real adesão ou do rolo compressor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
Desconfiado de todo discurso social homogeneizante, como de praxe entre profissionais da pesquisa histórica, Paranhos buscou no sugestivo acervo de canções registradas em disco a persistência da malandragem e da ojeriza ao trabalho no período de vigência do DIP, entre 1939 e 1945. A intenção do autor e sua premissa básica estão nítidas em toda a redação do livro. Podemos resgatar, como síntese de seu argumento, a última frase do capítulo final: “Nesse jogo de poderes e contrapoderes, nenhuma vontade se impôs de modo absoluto, e os próprios vencedores tiveram que fazer concessões e amargar algumas derrotas, aqui ou ali” (p.137). Ou seja, o Estado operava com força sedutora e repressiva, em sua política cultural, no entanto, os populares encontravam ou forçavam brechas de expressão.
Uma vista geral e panorâmica da obra identifica três capítulos bem demarcados. No primeiro, há um balanço crítico e teórico da historiografia sobre o Estado Novo e das correntes de interpretação sobre a ação do Estado, bem como da atuação popular, as quais o autor ora corrobora, ora contesta.
Conforme sua interpretação, permitindo um caminhar mais atento pela estrada que explicita “o cerco do silêncio” imposto por um Estado autoritário, é possível encontrar nas margens, nas esquinas, “vozes do coro” que destoam da partitura. Opondo-se à concepção da possibilidade real de um estado totalitário, Paranhos enfatiza a existência de conflitos e contradições, inserindo um debate introdutório na temática sobre hegemonia e dominação ideológica. Se a sua orientação teórica demonstra que nenhuma dominação ou hegemonia é total, a leitura dos cânones da historiografia sobre o período de atuação do DIP apresenta um Estado onipotente e uma voz operária a ele consonante ou por ele eclipsada. Essa discussão teórica, como é amplamente perceptível, embora breve, fornece estímulos úteis a leitores interessados na relação entre sociedade e Estado para outros contextos autoritários.
Orientados pela exposição do estado da arte, somos apresentados, no segundo capítulo, ao cenário que possibilitou a afirmação social do samba como símbolo nacional brasileiro, em meio à reelaboração da identidade nacional no contexto político pós-1930. Partindo dos debates estéticos entre as vertentes de samba em disputa nos primórdios da indústria fonográfica carioca e sua configuração como veículo de brasilidade, embrenhamo-nos nas relações do samba com o Estado, entre cooptação e resistência. O argumento é simples – e não menos importante por isso: a oposição à malandragem, ou, ao menos, a incerteza quanto a ela, presente em alguns sambas, não é criação do Estado Novo, sendo identificada desde os anos 1920. Algo que qualquer ouvinte das gravações do período, se minimamente atento, sabe muito bem, mas, por vezes, algumas obras sobre o período esquecem-se de mencionar.
Traçado esse caminho, no terceiro e último capítulo do livro/tese é que enfim encontramos o desenvolvimento da argumentação prometida, expondo ou juntando nos fragmentos disponíveis, indícios da persistência da malandragem e a oposição ao trabalho regular, pelo “eco de antigas palavras” veiculadas em canções. A ausência de documentação oficial do DIP, disponível para consulta, foi compensada pelo autor na ênfase sobre o documento canção registrado no fonograma, em metodologia de análise que concedia igual importância à leitura da letra e à escuta do registro; ou seja, a performance registrada em disco por vezes indiciava uma mensagem diferente, ou mesmo oposta, em canção que, à primeira vista, vangloriava o trabalho. A consolidada orientação disciplinar de fazer novas perguntas a um documento anteriormente trabalhado é aplicada às canções.
A obra de Paranhos demonstra uma oposição à retórica da ideologia trabalhista varguista não por uma natureza de concepção política stricto sensu, de indivíduos contrapostos ao modelo de Estado vigente e inseridos em uma disputa por uma concepção alternativa. Não é o “poder de Estado” que está em questão, mas os meandros do universo cotidiano. A contraposição entre malandragem e trabalho regular era própria ao universo malandro e não apenas pela ação repressiva das forças policiais e do Estado, mas principalmente pelas relações amorosas. O que as canções documentam são diversos personagens, homens e mulheres, que transitam entre a “orgia” e o “batente” por amores ou desamores, antes e depois da ascensão de Vargas e do golpe político do Estado Novo.
Além das promessas do amor e das incertezas quanto ao futuro na malandragem – a (pouca) renda obtida pela trapaça, jogos de azar etc. – a direcionar o candidato a ex-malandro rumo à regeneração, a sofrida realidade do trabalhador formal o espantava rumo à orgia. Más condições de trabalho, longas pouco dinheiro também, mas de forma menos desgastante – “ganha-se pouco, mas é divertido”, diriam Wilson Baptista e Cyro de Souza, em 1941 –, o ritmo de vida do trabalhador o tornasse um otário. Como dito, não era explicitamente de política que as canções falavam, mas de experiência vivida, o sofrido cotidiano de uma ampla parcela da população, expressa em cena pública na fala dos sambistas.
O curto livro aqui resenhado – os três capítulos contabilizam 113 páginas – serve como uma porta de entrada, um convite a um novo olhar sobre o período, atento ao cotidiano e às margens de manobra da população pobre carioca.
Na vigência do Estado Novo e, particularmente, do DIP, a apologia à malandragem e a contestação aos princípios ideológicos oficiais, na forma escancarada expressa até então, eram soterrados. Porém, ainda aparecem por outras maneiras, à espera de serem descortinadas pelo faro apurado do historiador.
Bruno Vinícius Leite de Morais – Graduado e mestre em História e Culturas Políticas pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. bruno_ viniciusdemorais@hotmail.com.
PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. Prefácio de Maria Izilda S. Matos São Paulo: Intermeios; CNPq; Fapemig, 2015. 202p. Resenha de: MORAIS, Bruno Vinícios Leite de. Nobres vagabundos: a malandragem entre a adesão e a resistência ao trabalhismo durante o Estado Novo. Revista História Hoje, v. 6, nº 11, p. 315-319 – 2017.
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