No final de 2012, a aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Lei 368 / 09 que regulamenta a profissão de historiador no Brasil produziu um curioso movimento. Por um lado, o reconhecimento e a regulamentação do trabalho que nós, historiadores, realizamos foram celebrados pela nossa categoria, que, vale lembrar, os reivindicava havia décadas; por outro, foram também alvo de críticas diversas, cujo tom geral era o da “preocupação” com as implicações do “monopólio” e do “controle” que supostamente passaremos a exercer sobre o passado a partir de agora.
Embora tais críticas, veiculadas mídia afora, não tenham ficado sem resposta, como sabemos (e decerto por isso diminuíram em volume e intensidade, o que não significa que os críticos estejam convencidos…), nós as retomamos aqui por nelas perceber algo de muito significativo para iluminar o presente dossiê. Centradas na atuação do historiador, deixaram em segundo plano, senão simplesmente ignoraram, aquilo que a antecede e lhe dá sentido: a formação do historiador, como se esta fosse inata, pautada apenas pelo “gosto pelo passado” ou, ainda, redutível ao “acúmulo de conhecimentos históricos”, como sugeriu na Folha de São Paulo o colunista Fernando Rodrigues, infelizmente sem explicitar o que isso significa.
A notação é significativa porque, se em outros tempos – nem tão distantes e de ecos ainda muito sensíveis – formação e atuação podiam configurar coisas distintas, com implicações e desdobramentos também distintos, o correr do século XX fez com que ambas as facetas se encontrassem para formar um par indissociável. E o fez, mais precisamente, graças à afirmação, ao enraizamento e à expansão de um lugar social muito particular, o qual não é outro senão o dos cursos de história. Ainda que não seja o único locus da produção e divulgação de discursos e interpretações acerca “do que um dia aconteceu”, é nele, por excelência, que o ofício se ensina, se pratica, se elabora e se redefine; é a partir dele que se estabelece e se legitima, não sem lutas, o quê e como é possível pensar, investigar, escrever sobre o passado; é em torno dele, enfim, que se delineiam as regras que presidem a fabricação, não o “acúmulo”, do conhecimento histórico. Pode-se dizer, assim, que os cursos de história assumiram papel central no processo de definição da identidade do historiador, além, é claro, no próprio processo de produção e desenvolvimento de uma historiografia que podemos chamar moderna.
Foi nessa centralidade que pensamos quando propusemos este dossiê, com vistas a problematizar a trajetória da institucionalização da historiografia, particularmente no caso brasileiro, e trazer à luz um tema ainda pouco estudado e conhecido por nós mesmos, historiadores (“casa de ferreiro, espeto de pau”, diz o adágio). O fato de ser publicado agora, num momento em que a nossa identidade é posta em questão não é mera coincidência, pois reforça, acreditamos, a importância do tema e a relevância de sua discussão. Entre a memória e a história, entre o pontual e o panorâmico, os artigos que se seguem realizam com muita precisão aquilo que pretendíamos: compor um painel significativo de lugares institucionais, projetos e experiências de ensino e pesquisa, trajetórias individuais e produções relevantes para pensar a história dos cursos de história; ao mesmo tempo, indicam o quanto há por ser explorado nesse campo e quantas possibilidades e articulações historiográficas permitem, deixando um convite implícito a novas incursões.
O dossiê é aberto por dois textos marcados pelo exercício da recordação e a preocupação em contextualizar a própria experiência. Seus autores são historiadores e testemunhas da história dos cursos de história sobre a qual escrevem. O primeiro, Francisco Falcon, oferece um misto de história e memória da construção do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), que ele próprio ajudou a construir. Trajetória ímpar de um profissional da área formado na década de 1950 e que atuou em vários cursos e programas de pós-graduação do estado do Rio de Janeiro.
O segundo texto, escrito por José Ribeiro Júnior, é notadamente autobiográfico, pois reconstitui sua trajetória: da formação na Universidade de São Paulo nos anos 1960 à vida profissional na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis. Por meio de ambas, revelam-se características peculiares do momento em que a historiografia acadêmica se consolida entre nós, apoiada justamente na expansão e qualificação dos cursos.
Em seguida, temos dois artigos voltados à análise de instituições centrais à história dos cursos de história no Brasil, que, cada um à sua maneira, iluminam temas também cruciais de modo muito original. Marieta de Moraes Ferreira analisa as relações do curso de história da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil (depois, Universidade Federal do Rio de Janeiro) – e, mais especificamente, de seus professores – com a ditadura militar, demonstrando que a história dos cursos universitários é um tema atravessado por questões da história política e social e, por isso mesmo, deve ser abordado em toda a sua complexidade.
Lidiane Soares Rodrigues, por sua vez, penetra nos meandros do curso de história da USP em seus anos iniciais, caracterizando o trabalho das missões francesas e dedicando especial atenção às atuações de Fernand Braudel e Eduardo d’Oliveira França, bem como, ao intercâmbio entre a recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e a tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, então também incorporada à nova universidade.
Saindo do eixo Rio de Janeiro – São Paulo, o artigo de Alessandra Soares Santos analisa o curso de história da Universidade Federal de Minas Gerais por um viés inusitado: os anos de formação do historiador Francisco Iglésias na instituição, na primeira metade dos anos 1940. Além de explorar os textos normativos que regularam a organização curricular e didática do curso, a autora também lança luz sobre um domínio difícil de explorar: o das práticas utilizadas na sala de aula. É o curso no seu cotidiano e as concepções que o orientam.
Já o artigo de Mara Cristina de Matos Rodrigues (re)constrói a trajetória do curso de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde sua implantação, em 1943, até a década de 1970. O foco recai sobre as transformações do currículo, a composição do corpo docente e suas formas de recrutamento, destacando-se as iniciativas destinadas à formação de professores e ao desenvolvimento da pesquisa histórica na instituição.
Após oferecer ao leitor a história de alguns dos mais importantes cursos do país, o dossiê dá lugar a um projeto fracassado: o da criação do Instituto de Pesquisa Histórica, idealizado por José Honório Rodrigues entre meados dos anos 1940 e início da década de 1950. André de Lemos Freixo procura situar o projeto de Honório Rodrigues em meio ao processo de constituição de uma historiografia profissional no Brasil, dando ênfase aos embates coetâneos e ao empenho do idealizador no sentido de inserir seu próprio projeto na história da historiografia brasileira como um marco decisivo para sua modernização.
Por fim, o dossiê abre espaço para a abordagem de um tema que escapa ao processo brasileiro, mas que, justamente por isso, mostra-se pertinente e relevante dentro da sua proposta: a reflexão do historiador lusitano João Couvaneiro sobre a constituição do Ensino Superior de História em Portugal, por meio do caso do Curso Superior de Letras, criado em 1858 e transformado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1911. O autor acompanha o processo de disciplinarização então ocorrido ali, observando que o mesmo obedece a questões de ordem acadêmica, mas também de ordem política, ideológica e cultural. Assim, por contraste, permite-nos pensar acerca da situação, das características e das práticas das instituições historiográficas no Brasil, tanto naquele período específico, em que predominavam os Institutos Históricos, quanto no momento do estabelecimento dos primeiros cursos universitários de história.
Essa pequena história dos cursos de história talvez fosse impossível se os historiadores e a historiografia produzida nos países aqui focalizados não tivessem alcançado um sólido grau de profissionalismo e especialidade, os quais acabaram por motivar sua própria historicização. Mas, se o interesse pela história dos cursos tende a crescer com o desenvolvimento dos mesmos, a crítica da memória que a acompanha torna-se também necessária, sobretudo se as continuidades e descontinuidades dessa história forem tidas como relevantes.
Como bem observou Jacques Revel, no texto “História e ciências sociais: os paradigmas dos Annales” (1978 / 1979), “é difícil o momento em que se atinge o êxito”, pois é preciso identificar e refletir sobre as possibilidades de renovação a partir do que se encontra instituído e, ao mesmo tempo, compreender as formas de relacionamento com os antepassados. Em outras palavras, enquanto os próprios cursos de história encontravam-se pouco desenvolvidos, justificavase o esforço para descrever seus percursos de desenvolvimento, muitas vezes heróicos. A nosso ver, a consolidação dos cursos de história exige novas preocupações, a começar pelo exame crítico da memória acerca dos lugares sociais de produção da historiografia, bem como, do sistema de relações sociais que esses mesmos lugares possibilitam e legitimam.
E, como os autores presentes neste dossiê bem sabem, as dificuldades que cercam o estudo da história dos cursos não são poucas, se considerarmos que o objeto em foco é fugidio, situado que está na fronteira da história da educação, da história intelectual e, também, da história política, quiçá podendo ser relacionado até à história da ciência. Não há, ainda, como desconsiderar o vínculo com a história da historiografia, que considera as condições de produção da história escrita, bem como as práticas (palavra, não por acaso, várias vezes repetida aqui), projetos e valores dos historiadores, suas instituições de ensino e pesquisa e as relações entre o mundo acadêmico e as demandas políticas e sociais de um período, entre tantas possibilidades que permitem compreender aquilo que, evocando Michel de Certeau, fabricamos quando “fazemos história”.
Além disso, as fontes que possibilitam o acesso à história dos cursos costumam ser dispersas, fragmentadas e escassas, sobretudo se o objetivo for focalizar seu quotidiano. A recorrência à legislação e ao testemunho dos próprios historiadores é frequente, o que não deixa de ser emblemático, visto que, no domínio dos cursos que formam professores e pesquisadores – ou ainda, leitores e escritores profissionais –, poucos registros são produzidos sobre a experiência formativa, as práticas, os costumes e as múltiplas relações sociais tecidas em seus espaços. É um mundo marcado pela oralidade, pelos silêncios e recalcamentos, quebrados de quando em quando pelas atas de reuniões, boletins e regimentos internos, memorandos, planos de ensino, avaliações, projetos e propostas curriculares.
Como foi dito no início, acreditamos que o conjunto de artigos aqui reunido apresenta uma contribuição para o crescente debate acerca da profissionalização do historiador no Brasil e, indo além, oferece subsídios importantes para a compreensão dos lugares sociais de formação e atuação dos profissionais da história na contemporaneidade. Lugares que autorizam, mas também proibem, como bem observou o já citado Michel de Certeau em seu “A operação historiográfica” (1974 / 1975), texto seminal cujas proposições serviram de mote para a chamada deste dossiê. Não custa lembrar que tal texto foi escrito no momento em que a historiografia, no auge de sua profissionalização, era reduzida a um artefato literário. Certeau ajudava a lembrar o vínculo entre um produto (a história escrita) e as práticas que o autorizam, relacionando-os a um lugar social de produção. Se hoje o evocamos aqui, não é tanto por temer a contestação das pretensões científicas da nossa disciplina ou para enfrentar um momento de dúvida epistemológica que a mesma atravessa há algumas décadas, mas para argumentar que é preciso ir além.
Compreendemos que investigar a história dos cursos de história corresponde a analisar o lugar social a partir do qual a história é escrita, reescrita ou não escrita, visto que esse mesmo lugar possibilita e interdita o que é possível pensar, investigar, escrever e divulgar, contribuindo para a formação do historiador, a produção do conhecimento e a definição das regras que o presidem. Nesse sentido, ir além do estudo do lugar significa, por exemplo, investigar as formas pelas quais nos relacionamos com aquilo que está instituído e com o legado daqueles que contribuíram para essa institucionalização.
Fábio Franzini – Professor adjunto Universidade Federal de São Paulo Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. E-mail: fabio.ff.franzini@gmail.com
Rebeca Gontijo – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Departamento de História e Relações Internacionais. E-mail: rebeca _gontijo@hotmail.com
FRANZINI, Fábio; GONTIJO, Rebeca. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.6, n.11, abr., 2013. Acessar publicação original [DR]
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