Os Cinquenta Anos do Golpe Civil Militar no Brasil | Outras Fronteiras | 2014
É com imensa satisfação que trazemos a público o primeiro número da Revista Outras Fronteiras, uma publicação discente do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. Este número da revista traz o dossiê temático intitulado “Os Cinquenta Anos do Golpe Civil Militar no Brasil”, o intuito ao propô-lo foi permitir o debate acerca do estado autoritário instalado no Brasil no pós 1964, resultante de um golpe que teve o apoio de amplas parcelas da população brasileira. O argumento utilizado pelos militares, diante da eminência de mudanças sociais conduzidas por João Goulart nos anos de 1960, era o de que o país estava sob os riscos de uma ameaça comunista, em um contexto de reformas de base propostas pelos economistas estruturalistas ou cepalinos, que dentre os argumentos para a defesa das transformações que tinham início naquele momento estava a criação de um programa de reforma agrária e de melhoria da distribuição de renda.
Foi em nome de uma suposta luta contra o comunismo, traduzido nas Reformas de Base de Jango que se criou o terror de Estado imposto pela ditadura instaurada no Brasil em 1964. Neste sentido, 2014 é um ano emblemático por marcar meio século de um episódio que inaugurou uma forma de governo ditatorial que perseguiu, sequestrou, torturou, matou, criou a figura do desaparecido político, em nome de um ideal de desenvolvimento altamente excludente.
Por 21 anos, o país sofreu as consequências de uma ditadura, cujas marcas ficaram no físico, sentido pelas perseguições no âmbito político e social, nas torturas, desaparecimentos e mortes. As marcas simbólicas também foram profundas e reforçam a percepção que os estudos presentes neste dossiê trazem para o debate, tradução de um processo de violência imposta pelo governo, com apoio de uma parcela significativa da sociedade civil, cuja marca maior foi a supressão de direitos fundamentais, censura, criação de zonas de silenciamento e apagamento da memória histórica deste período da história do Brasil.
Trazer ao debate este momento obscuro do passado brasileiro, por meio da pesquisa, do trabalho com jornais produzido sob aquele contexto, com a reflexão em torno da bibliografia já produzida e com os relatos de pessoas que viveram tais experiências, constitui-se em trabalho do historiador que pretende, em um processo de diálogo temporal evitar que as zonas de silêncio se traduzam em aceitação dos horrores cometidos em nome do Estado brasileiro.
Os artigos que compõem este dossiê temático, propõem reflexões acerca das resistências propostas pela população brasileira contra as arbitrariedades do regime, além de propor algo extremamente relevante, ou seja, trazer à tona este passado, mediado pelo debate acadêmico que prime pelo fim de um silenciamento que vem pairando pela história do Brasil, adentrar as zonas de esquecimento por meio da pesquisa histórica e propor espaços para a divulgação destes trabalhos visando contribuir para o fim de tais estratégias de esquecimento.
A possibilidade de abertura do debate, sobretudo quando se comemoram 50 anos do golpe – “comemoração” aqui pensada, no sentido de criar oportunidades para que “lembremos do que foi vivido” – é marcada, neste sentido, por algumas ações que têm sido empreendidas tais como a Mostra de Cinema Marcas da Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça que em um dos filmes exibidos na 2ª edição do Projeto Cinema pela Verdade no ano de 2013, exibiu o filme “Eu me Lembro” de Luiz Fernando Lobo, cujo tema são os cinco anos das Caravanas da Anistia. Para além das críticas feitas as ações da comissão de anistia, cabe ressaltar que o que tem se promovido é a abertura do diálogo, tão negado nos anos que comportam a temática do presente dossiê, cabe considerar que dentre o que foi trazido para o debate, outros fatos escapam e, de vez em quando reaparecem, invadindo muitos de nós. Por isso, falar deles é afirmar/fortalecer experiências ignoradas, desqualificadas e negadas, tal como já propunha Chico Buarque de Holanda, quando lançou “cálice”, em 1978,
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.1
A presente edição da Revista Outras Fronteiras, pretende ser um dentre um número cada vez maior de espaços dedicados à lembrança de um passado que não se quer esquecer, para que não seja revivido como novas tragédias. No primeiro artigo do dossiê, “A violência no campo no período da ditadura militar: um recorte na região da Prelazia de São Félix do Araguaia em 1970 a 1980”, Fernanda Queiroz de Menezes narra o confronto entre os empresários que acessam terras na região durante o período, no contexto da implantação de políticas de colonização contra índios e posseiros, tendo como foco a ação da Igreja Católica na mediação do conflito, bem como a atuação desta instituição ao lado das populações locais, o que lhe legou a perseguição de proprietários das empresas agropecuárias e a tornou alvo da repressão imposta pelos governos militares.
Ao tratar da “Colonização: uma estratégia utilizada pelo governo militar brasileiro para re-ocupar o território (1964-1985)”, Adriano Knippelberg Moraes, mostra, com base em análise do Estatuto da Terra (1964), de bibliografia referente ao período e dos Planos de Colonização e de documentos do Executivo Federal e Estadual, que houve destinação de recursos financeiros via Estado para o projeto de re-ocupação do território central do país. O autor alerta para o fato de que, pensar os projetos de interiorização do país, além de se constituir em estratégia de crescimento econômico, constituiu-se em estratégia militar de controle do espaço. Conclui-se do debate possibilitado pelo artigo que a atuação das empresas privadas na colonização do território mato-grossense, resultante de um modelo de re-ocupação conduzido pelos governos militares contribuiu para a concentração de terra e de renda na região.
“Narrando o Inenarrável: a literatura de testemunho de Bernardo Kucinski”, escrito por Izabel Priscila Pimentel da Silva, dialoga com a volta ao passado, que em última instância, cumpre a função de preservação da memória, em oposição a preocupação com o futuro e o ideário de progresso vigentes nas primeiras décadas do século XX. A autora destaca que, os questionamentos acerca da necessidade de narrar, vieram à tona no Brasil no contexto da redemocratização e da produção de material de cunho memorialístico, produzido por ex-militantes de esquerda. Neste sentido, a literatura, apresenta-se como uma possibilidade de “narrar o inenarrável”, os eixos norteadores do artigo são primeiro, a narrativa do trauma e o papel do testemunho em momentos de catástrofe e segundo, a literatura testemunhal com ênfase no livro “K” de Bernardo Kucinski que, recorrendo ao literário retrata a dor dos familiares e mortos políticos no Brasil. O campo de diálogo do artigo se dá em terreno de tensão entre “catástrofe e as possibilidades ou limites de sua representação”.
Importante contribuição para pensar a questão do acesso à terra na vigência do regime civil militar brasileira é dada por Paulo José Furtado no artigo “O Governo Militar e o Incentivo de Acesso a Terra na Amazônia Legal: controle e favorecimento do capital privado (1964-1980)”, que aborda a forma como os militares trataram a questão agrária, com ênfase no controle e na intervenção do Estado e no favorecimento do capital privado. O foco é o Estatuto da Terra por meio do qual o governo militar centralizou as decisões sobre a questão agrária, nas mãos do governo e dos órgãos por ele criados, sendo assim a legislação cumpriu a função de manter a estrutura agrária do país, “Apenas mudando os conflitos e situações de violência de lugar na geografia brasileira os militares produziram uma política de terras unilateral, de benefício claro as colonizadoras e aos grandes empresários agropecuários capitalizados”.
A construção de uma memória via instrumentos midiáticos foi tratada por Bianca Rihan Pinheiro Amorin, no artigo intitulado “O lado obscuro dos ‘jornalões’: a memória midiática sobre Ernesto Geisel e a possibilidade de redenção”, no qual apresenta a forma como os jornais contribuíram para construir uma imagem de Geisel como sendo o presidente da “abertura”, por meio da criação de estratégias de difusão de um discurso que ao mesmo tempo que alardeava a intenção da distensão democrática, criava o campo para a consolidação do regime político. A autora recorre à representação midiática do período para constatar que houve a naturalização da coerção oculta no discurso da ordem social.
Para finalizar as discussões do dossiê, o artigo “Uma nova socialização? A Ditadura Civil-Militar em Goiás”, escrito por Eduardo Gusmão Quadros e Alessandro de Assis Pinto Aguiar, traz uma discussão acerca da alteração nas escolas e no desenvolvimento das cidades, com foco no estado de Goiás, em um contexto de conjuntura de reestruturações e alterações sociais ocorrida no recorte temporal de 1964- 1974. Os autores se propõem pensar a educação posta dentro de uma rede de sociabilidade, neste sentido o artigo aborda algumas das múltiplas formas de construção da governamentabilidade, conceito criado por Michel Foucault para analisar genealogicamente como ocorreram os processos históricos, a recorrência a tal conceito cumpre a função de levar a compreender a história da educação nacional e do estado de Goiás.
É notória a diversidade com que o tema da Ditadura Civil Militar no Brasil foi tratado pelos diferentes autores, cada um a seu modo, do primeiro ao último artigo que compõe o dossiê, trazendo olhares diversos que intentam contribuir com o debate que circunda um período da História do Brasil acerca do qual é fundamental que se empreendam contínuos debates.
Rondonópolis, 13 de junho de 2014.
Nota
1HOLLANDA, Francisco Buarque; GIL, Gilberto. Cálice. In: LP Chico Buarque de 1978. HOLANDA, Francisco Buarque; NASCIMENTO, Milton. Cálice. São Paulo: Gravadora Universal, 1978.
Organizadora
Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa – Doutoranda em História pela UFMT. Professora da UFMT – Rondonópolis. E-mail: biafeitosa@ufmt.br
Referências desta apresentação
FEITOSA, Beatriz dos Santos de Oliveira. Apresentação. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 1, n. 1, p.1-5, jun. 2014. Acessar publicação original [DR]