Os caminhos (da escrita) da história e os descaminhos de seu ensino: a institucionalização do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia/ Ciências e Letras da Universidade de São Paulo | Diogo da Silva Roiz
A leitura desta obra leva à reflexão de que a História, enquanto área do conhecimento com o fito quase exclusivo de manipular a memória dos fenômenos passados, seguidora das regas do campo e “filha de seu tempo”, será em algum futuro transformada por Clio em um tipo de memória.
Roiz é um dos poucos pesquisadores que se aventuraram nos estudos sobre a “institucionalização do ensino universitário de história”. O autor debruçou-se pelos caminhos traçados durante as primeiras atividades dos professores da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo – FFCL/USP – e de outros agentes. Nessa Universidade foi criado o primeiro curso de História no Brasil, em 1934, surgindo anexo à área de Geografia, habilitando professores nessas duas formações para os ensinos primário e secundário até o desmembramento dos cursos na década de 1950.
O período recortado na obra, 1934-1968, remete à vigência do regime de cátedras na USP. O livro é composto por seis capítulos e dois anexos – o primeiro anexo complementa o primeiro capítulo; e o segundo, o terceiro capítulo, o que pode ser tomado como uma terceira parte da obra –, e conta também com prólogo, apresentação, prefácio, introdução e agradecimentos, epílogo, posfácio, fontes e referências bibliográficas. A estrutura, a divisão da obra mostram o esforço e o resultado do percurso intelectual do autor – em processo de construção, haja vista que a obra resulta essencialmente de sua dissertação de mestrado defendida na Unesp, Campus de Franca, sob orientação do professor Ivan A. Manoel – e o reconhecimento já alcançado por ele, como mostram o Prólogo, escrito pela professora Teresa Maria Malatian, a Apresentação, assinada por Marieta de Moraes Ferreira, e o Prefácio, elaborado pelo orientador de mestrado do autor.
O corpo do texto se divide em duas partes, cada uma com três capítulos. A primeira parte apresenta a estrutura e as mudanças ocorridas no curso de Geografia e História, e enfatiza os temas relacionados na área de História que, em 1956, se desmembra da área de Geografia. Analisa-se a estrutura curricular, o funcionamento do regime de cátedras – de inspiração francesa – e os produtos ou “mercadorias simbólicas” construídas pelos professores da USP do curso de Geografia e História na prática do ensino e da pesquisa. São abordadas, também, as transformações e as aberturas de cadeiras nas áreas de Geografia e História em particular. A segunda parte, chamada “Escrita da história, civilizações e atores sociais”, discute o autodidatismo e a profissionalização intelectual da área de História, debruça-se sobre as trajetórias de Alfredo Ellis Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Eduardo d’Oliveira França.
Logo no início do primeiro capítulo, Roiz mostra-se atento aos expressivos estudos de teóricos que analisaram a questão da construção do campo intelectual e seu espaço institucional. Destacam-se as interpretações de Pierre Bourdieu com as categorias habitus e campo, e as de Michael de Certeau com as contribuições sobre o entendimento da “escrita da história”, constituída por um lugar social definido, aos procedimentos de análise e à construção de um texto. Com relação ainda ao ângulo teórico, Roiz adota uma postura cautelosa, sem divergências destacáveis, restringindo-se a mostrar empiricamente as diferenças encontradas em sua pesquisa e as que alicerçaram análises mais consagradas; toma a teoria como uma lente que filtra o que é mais relevante do que é menos relevante nas informações encontradas nos documentos.
O autor examina a primeira gestação do homo academicus no Brasil, sob a égide de uma instituição estatal, criada por pressões políticas e, dessa forma, restrita aos aspectos da lei, embora com espaços autônomos se se pensar o campo histórico “num período em que as regras do ‘campo intelectual’ não estavam totalmente constituídas” (ROIZ, 2012, p. 37). Segundo Roiz, “institucionalização quer dizer dar caráter de instituição, ou mais precisamente, adotar meios técnicos e intelectuais básicos necessários ao funcionamento das estruturas agregadas aos setores organizacionais que mantém o funcionamento regular de toda instituição” (ROIZ, 2012, p. 37).
Sem promover especulações sobre o passado, Roiz organiza com rigor documental a institucionalização do campo histórico a partir da USP, mediante a exposição das legislações educacionais, fruto de projetos políticos e intelectuais. A “criação” da história acadêmica passa pela organização e distribuição das cadeiras dos professores catedráticos, e, pelas normas de ingresso na instituição a que professores e alunos se submetiam.
De início, o quadro docente do curso de Geografia e História foi composto mediante convites a professores que dispunham de influência política e reconhecimento profissional. Convivia um tipo de docente, o intelectual “autodidata”, sobretudo nas cadeiras de História da Civilização Brasileira. O outro tipo era composto por professores estrangeiros, notadamente os estadunidenses e os franceses, formados por universidades então influentes, como foi o caso de Fernand Braudel. Posteriormente, iniciam- -se os concursos para os cargos de professor catedrático. Para fazer parte do quadro docente do curso de Geografia e História,
não se exigia do recém-formado o título de doutor para ser professor no curso. Em geral, o início da carreira dependia mais de oportunidade, do que títulos, porque decorria de assistências a professores efetivos. Era por meio desse enquadramento profissional que começava a carreira docente. Ao desempenhar as funções de assistente, anos depois renomeada como auxiliar de ensino, que o recém-formado aprendia a elaborar e planejar as aulas e o conteúdo das disciplinas, que observava como era o funcionamento administrativo da cadeira, e iniciava as primeiras pesquisas acadêmicas. Essas pesquisas, em geral, que davam origem às teses de doutoramento dos assistentes (ou auxiliares de ensino) (ROIZ, 2012, p. 55).
Na segunda parte do livro, Roiz expõe uma sucinta “biografia intelectual” dos professores Alfredo Ellis Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Eduardo d’Oliveira França, focado nas experiências de vida que iria refletir na produção intelectual, como as concepções políticas desses intelectuais. Os resultados das investigações desses professores, na forma de textos, são lidos enquanto “prática social”. Roiz expõe evidências do lugar social ocupado por esses professores, atento às ponderações realizadas por Certeau (2002) sobre a operação historiográfica.
No título da obra vê-se muito acertadamente refletido o conteúdo privilegiado pelo autor, o aprofundar os caminhos da escrita da história e os descaminhos de seu ensino, ou seja, nota-se a permanência de questões obscuras sobre o ensino, e maior visibilidade das questões sobre a pesquisa. Evidentemente que as informações trazidas sobre como era o ensino universitário, são de extrema relevância. Com relação ao ensino, as fontes utilizadas foram as produzidas pela própria Faculdade e as entrevistas com ex-alunos, obtidas pelo autor mediante pesquisa bibliográfica. As falas dos egressos do curso de Geografia e História fazem, por exemplo, menção às dificuldades dos primeiros alunos com o domínio de conhecimento de línguas estrangeiras, posto que as aulas eram prelecionadas na língua materna dos professores, e com a dificuldade de entendimento e de interação com uma complexa cultura intelectual.
Os relatos dos alunos egressos não se limitavam à formação. Após a graduação, os egressos buscaram defender seu metier no mercado de trabalho, mediante recursos legais, pois também podiam concorrer às vagas no ensino primário e secundário professores com o diploma de magistério concedidos por escolas e faculdades tradicionais. Por outro lado, Roiz aponta que os egressos “não facilitavam a sua própria aceitação no ensino secundário” e, de acordo com o relato do professor Eduardo d’Oliveria França, os licenciados eram muito provocadores (ROIZ, 2012, p. 166).
Num outro momento, a demanda pelo curso foi ampliada com o ingresso de alunos que eram “professores comissionados”, ou seja, professores que possuíam o título de magistério e que se afastavam, com remuneração, das atividades das escolas, embora com prejuízos ao vencimento original. Roiz lembra que essa maioria de alunos era constituída por mulheres professoras das redes primária e secundária. Destaca-se, também, em relação ao ensino, a metodologia de seminário utilizada por Eduardo França, relatada por Fernando Novais, ex-aluno do professor França.
Estudar a instituição universitária, tanto para o pesquisador quanto para o leitor da obra “pronta”, traz à tona muitos elementos vivenciados e ocultos da instituição universitária, que cria para si habitus específicos e, nesse raciocínio, Paul Veyne argumenta que “a cada época, os contemporâneos estão, portanto, tão encerrados em discursos como em aquários falsamente transparentes, e ignoram que aquários são esses e até mesmo o fato de que há um” (VEYNE, 2011, p. 25). Com isso, o trabalho de Roiz cumpre talvez o clássico papel do conhecimento histórico, que é debruçar-se sobre um passado relativamente distanciado, para fornecer elementos, mesmo tímidos, que permitam lançar olhares reflexivos sobre a realidade presente.
Das fontes utilizadas, destacam-se os Anuários da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e os escritos de professores analisados pelo autor que contribuíram para configurar o perfil dos professores/pesquisadores tomados para estudo de caso nessa obra. Há de se ressaltar que a leitura da obra leva a dúvidas e a desejos de saber proporcionados pelo conhecimento nela apresentado como, por exemplo, o da questão do gênero feminino e a intelectualidade de Históriadores.
Nesse sentido, um tema empolgante para se refletir enquanto fenômeno, muito destacado por Roiz, é a figura feminina no curso de Geografia e História, no qual as mulheres encontravam dificuldades para assumirem os altos postos na Instituição, dificuldades abordadas como reflexos do machismo e do preconceito da sociedade e daqueles que possuíam o status quo na Faculdade, situação que paulatinamente teria sido superada. Aí está um problema de delicada análise, o estudo do porquê da existência da diferença entre os sexos, e o da de pessoas de um mesmo sexo. Eduardo Oliveira França, citado por Roiz, dizia haver um “machismo consciente”:
Chegam a certo ponto [as mulheres] e estacionam ou se dedicam à vida pessoal. Sou machista e na minha experiência, minha intuição não foi negada. Mulher pode ser tão inteligente quanto o homem, mas a partir de certo momento, as que não se casam tornam-se pessoas desagradáveis e ásperas e as outras casam ou são absorvidas pelos filhos, como é de direito. As assistentes mulheres que tive só confirmaram a regra (ROIZ, 2012, p. 170).
A constatação e a exposição dos preconceitos sofridos pelas mulheres são facilmente observados nas fontes que Roiz apresenta. No entanto, colocar esse fenômeno como “restrito à época” ou como superado, ou em vias de superação, além de sugerir uma restrição na análise, aponta para uma ideia “iluminista” que obriga a igualdade e a emancipação do gênero feminino e outras identidades valorizadas pela “pós-modernidade”.
Para concluir, na obra Os caminhos (da escrita) da história e os descaminhos de seu ensino são notórios o rigor dispensado pelo autor com relação ao tratamento documental – como se observa nas muitas tabelas nos anexos –, e à atenção acerca da importância da teoria para a escrita da história; contudo, a obra mostra-se tímida em propor teorizações ou inferências teóricas.
Verifica-se que o estudo sobre o homo academicus brasileiro retratado, foi realizado graças aos dispositivos institucionais que o autor teve em mãos, uma vez que ele é docente na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e contou com bolsas de iniciação científica para três orientandos que realizaram coletas de fontes, cujas informações vieram a desaguar na referida obra. Além do mais, estudar a história da História, a dinâmica da História com a memória contempla ao leitor elementos de reflexão sobre o presente e proporciona a percepção de uma certa estética sobre o passado, sem o qual dificilmente haveria atração à História, realizada também pela memória.
Referências
VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Trad. Marcelo Jacques Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
Resenhista
Tiago Alinor Hoissa Benfica – Mestre em História pela UFGD. Doutorando nessa mesma instituição.
Referências desta Resenha
ROIZ, Diogo da Silva. Os caminhos (da escrita) da história e os descaminhos de seu ensino: a institucionalização do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Curitiba: Appris, 2012. Resenha de: BENFICA, Tiago Alinor Hoissa. Fronteiras: Revista de História. Dourados, v.14, n.25, p.189-193, jan./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]