Origens, Construções, Conversões: dos Castros da Ibéria à Floresta de Broceliande / Brathair / 2013

Nesta edição o Brathair faz a sua estreia como membro do CIEC – Centro Internacional de Estudios Celtas, que congrega instituições da Espanha, Portugal e Brasil. Este organismo procura fortalecer os estudos celtas nos países ibéricos, através de projetos conjuntos, de eventos e de uma rede de informações sobre as atividades desenvolvidas pelos seus membros.

A temática central do dossiê é Origens, Construções e Conversões: dos Castros da Ibéria à Floresta de Broceliande, tratando as origens celtas na Península Ibérica, a construção da identidade da região através de um processo de conversão ao cristianismo entre os suevos, visigodos e outros povos e a circulação de relatos relacionados à Matéria da Bretanha.

Representando o CIEC em Portugal, através do Museu Arqueológico de San Fiz e da Universidade do Porto, temos o artigo do Prof. Dr. Armando Coelho, tratando precisamente do passado céltico, depois celtibero, da Península Ibérica e, com ênfase mais detalhada, do atual território português. O leitor terá a oportunidade de ver esclarecida a contumaz confusão, presente mesmo na Historiografia, que vincula, sem fundamentos históricos e arqueológicos, os castros das regiões central e boreal da Ibéria e os vestígios proto-históricos da civilização megalítica ao sul da Península. Neste sentido, o artigo apresenta importante contribuição, mapeando a paisagem natural e cultural da região nos albores da revolução neolítica que lá sofreram, durante o primeiro milênio antes da Era Comum, diversas correntes indoeuropeias, e sua interação com a população autóctone. O texto traça um itinerário didaticamente ótimo para a compreensão das transmissões e apropriações culturais indoeuropeias que se pode detectar nas paisagens castrejas, ligadas às tribos célticas da região.

Juan Antonio López Férez (UNED) analisa, em continuidade não proposital, mas notável e instigante com relação ao artigo de Armando Coelho, as recorrências de termos, passagens e descrições – que hoje poderíamos caracterizar como «etnografias » – relativas às populações célticas que, em algum momento, interagem ou interpenetram-se com as civilizações mediterrânicas do Mundo Clássico. Enfocando citações e descrições de populações como os alobroges, brigos e brigues, presentes em escritos de mitógrafos gregos do período romano (século I antes da Era Comum), o texto pretende – e consegue, efetivamente – fornecer subsídios para a compreensão terminológica recorrente entre tais mitógrafos, não apenas de um ponto de visto histórico, mas também para propósitos filológicos. Desta forma, López Férez oferta aos leitores, nesta edição de Brathair, um convite erudito e sedutor a um conhecimento mais profundo das hetero-representações elaboradas na língua erudita do Mundo Clássico – o grego – que as civilizações escravistas do Mediterrâneo tecem e consagram como memória canônica a respeito das populações célticas para além do Limes imperial.

Arlete Motta (UFRJ) mostra o papel dos germanos no De Bello Gallico, quando o papel heroico de povos é ressaltado no intuito de valorizar as próprias características dos romanos. Trata-se aqui de uma refinada análise, sob o enfoque metodológico da Teoria Literária, da forma como o general romano Júlio César (100-44 a.C.) vislumbrou, compreendeu e representou as populações germânicas, com as quais travou contatos bélicos (Livro VI do De Bello Gallico, c. 50 a.C.). Encetando sua exegese a partir da noção de foco narrativo e de como se apresenta, na gramática textual, a persona narrativa do conquistador Júlio César, enquanto heroi, Arlete Motta traz um interessante ensaio sobre a produção reversa da memória de conquistas, grandiloquência e virtudes dos romanos – o conquistador, o vencedor – a partir de uma operação mitográfica muito sutil. Não se trata, para César, de desvaler o adversário germânico como automática e imediatamente inferior, incivilizado ou “bárbaro” (o não-falante de latim), mas, ao inverso, de realçar seus predicados guerreiros, físicos e morais, para demonstrar, retoricamente, a superioridade romana, que consegue sobrepor-se inclusive a povos tão bravos e valorosos como os germanos. Como pano de fundo, a pressuposto, reafirmado a todo instante, do proselitismo civilizatório do Populus Romanus.

O tema da conversão ao cristianismo é abordado em dois artigos. Sérgio Feldman (UFES) analisa o papel do clero na cristianização dos judeus no reino visigótico, através do posicionamento do bispo Isidoro de Sevilha. Segundo o autor a proximidade do hispalense com o rei Sisebuto auxiliou o processo de conversão forçada daqueles. No entanto, para Feldman o bispo apresenta no seu pensamento uma posição contraditória, apesar de ser favorável à conversão.

Já Leila Rodrigues da Silva (PEM-UFRJ) e Nathalia Agostinho Xavier apresentam o pensamento de Martinho de Braga, buscando discutir os interesses eclesiásticos contidos no sermão De Correctione Rusticorum, cujo objetivo seria ao criticar as práticas pagãs (como o politeísmo, as adivinhações, entre outras) voltar-se para a instrução dos camponeses, fazendo com que desistissem de seus “erros” e adotassem o cristianismo. Porém, as articulistas concluem que ao elaborar o sermão, Martinho buscava na verdade realizar estratégias que garantissem não somente a cristianização dos suevos, mas também a passividade dos fieis para sua submissão aos clérigos no contexto da Galiza do século VI.

Dentre os temas ligados à Floresta de Broceliande, Ramón Sainero, grande especialista espanhol dos estudos celtas, docente da UNED e membro do CIEC apresenta o papel do triângulo amoroso em obras arturianas. O autor inicialmente discute a preservação de relatos míticos celtas no medievo através da ação dos monges irlandeses, os quais colocaram as narrativas por escrito, tanto em gaélico quanto em latim. O tema central do texto é o triângulo amoroso em relatos da Matéria da Bretanha utilizando várias fontes, envolvendo Artur-Guinevere e um terceiro personagem, como Mordred, nos primeiros relatos arturianos (ex: na Historia Regum Britanniae) e depois a figura de Lancelot do Lago que se enamora da rainha Guinevere. Outro famoso triângulo analisado tem por centro as relações entre Tristão, Isolda e o rei Marcus, inspiradas numa narrativa de origem celta mais antiga, sobre os amores de Deirdre e Naoise. Sainero trata de outros triângulos amorosos, como o que envolve Gawain, o Cavaleiro Verde e a esposa deste último. O artigo é interesante na temática e por apontar diversas fontes utilizadas, desde as da Matéria da Bretanha, produzidas nos séculos XII-XIV até narrativas celtas mais antigas, inspiradas no ciclo do Ulster, no Mabionogion, entre outros relatos, que por sua vez, poderiam ter pontos de contato, segundo o autor, com narrativas indo-europeias da Anatólia e do Mar Negro.

Rita de Cássia Mendes Pereira (UESB) e Kamilla Matias, também trabalhando com a temática da Floresta de Broceliande, analisam o papel de Merlin nas narrativas míticas arturianas, oferecendo-nos, com notável erudição, uma oportunidade de dissecar a formação e as transformações pelas quais transita um dos mitemas arturianos, a um só tempo, mais arcanos e funcionalmente mais relevantes, em termos da sintaxe e evolução episódica das narrativas arturianas, o Mago Merlin. Este erudito artigo apresenta não apenas a hibridação de narremas anteriores responsáveis pela construção mítica de Merlin, tais como o Merlin Caledônio e o Merlin Ambrosius, ambos da lavra do cronista inglês Geoffrey of Monmouth, mas suscita uma discussão teórica adicional. Ao caracterizarem o aludido compilador como principal cronista da monarquia britânica, as autoras nos convidam a repensar a questão das memórias oficiais, das narrativas identitárias e das mitologias de origem que as casas reinantes e nobiliárquicas da Idade Média nunca deixaram de engendrar. Neste lastro, está presente uma reflexão sobre a faculdade mitopoética de Merlin e das historiografias canônicas a serviço das monarquias feudais.

Ainda sobre o espaço das Ilhas Britânicas, Ricardo Boone Wotckoski (Claretiano – Centro Universitário de Batatais) apresenta a tradução da Visão de Thurkill, narrativa do início do século XIII que trata de uma viagem ao Além-túmulo realizada em Essex, no bispado de Londres, cujo protagonista é um camponês. Thurkill é conduzido por São Juliano por dois dias para conhecer os lugares do Purgatório, Inferno e Paraíso e depois retorna ao seu corpo. O relato faz parte de uma ampla produção de viagens imaginárias produzidas nos séculos XII-XIII, de autoria anônima e compostas por eclesiásticos, inicialmente em latim e depois traduzidas para o vernáculo, tendo por base o relato de um leigo, com o objetivo da conversão dos fieis. Um elemento interessante que mostra a ligação entre este mundo e o Além é que Turkill é punido durante a viagem imaginária com fumaça, devido ao fato de não ter pago corretamente o dízimo e neste momento o seu corpo tosse no mundo terreno.

A narrativa proporciona a compreensão de elementos do imaginário medieval sobre a vida depois da morte, e tem uma importância fundamental por ter como seu personagem central um membro do campesinato na Inglaterra. Isso mostra que todos poderiam ter pecados a purgar depois da morte, tanto os ricos, como os pobres, motivo pelo qual quando volta do Além, Thurkill se torna um excelente cristão.

Na parte referente às resenhas, Gabriela Cavalheiro apresenta, ao mesmo tempo uma leitura atenta, um comentário crítico e, de certa maneira, um pequeno ensaio próprio em que demonstra o processo centro-medieval de superação da diglossia medieval. Resenhando a obra recente das teóricas inglesas da Literatura Kimberly Bell e Julie Couch, a bela leitura de Cavalheiro permite entrever os processos de transformação social que se deram durante os séculos XI a XIII (Idade Média Central). Dentre eles, a constituição, por legado episcopal de William Laud à Bodleian Library da Universidade de Oxford, de um manuscrito complexo, composto por narrativas diversas, salientando-se a mais antiga versão do The South English Legendary, uma referenciada coletânea de hagiografias de santos insulares e continentais, e duas das primeiras versões dos romances King Horn e Havelok the Dane, os mais antigos romances em inglês médio, além de outras obras religiosas e laicas. Ainda mais relevante, ocorre a pontuação de uma tensão latente entre dois vernáculos, o Middle English, vetor das expressões orais na Inglaterra entre os séculos XII e XV, e o Anglo-Normando, vernáculo cortesão ao tempo do reinado de Henrique III (1216-1272). De forma patente, portanto, vê-se a disputa entre vernáculos para aceder à condição de língua escrita – língua apta para a tessitura de memórias canônicas da sociedade inglesa centromedieval. De modo mais latente, pode-se entrever o declínio do latim, mesmo entre preeminentes membros do clero como Laud, e a consoante ascensão de outros atores sociais e linguísticos disputando hegemonia sobre os registros da memória escrita.

Nazareth Accioli Lobato preparou para os leitores desta edição de Brathair uma apresentação crítica do livro Da Ilha dos Bem-Aventurados à Busca pelo Santo Graal. Como adequadamente resenhou Lobato, este trabalho consiste em uma coletânea plural e denotativa de um percurso intelectual, uma carreira dedicada ao maravilhoso medieval. A resenha introduz aos leitores alguns tópicos do trabalho de Adriana Zierer, tais como a Ilha Paradisíaca e sua vinculação ao mitema celta de Avalon, a Ilha das Maçãs, a concepção espiral do tempo do mundo, bem como sua inserção tensa na História da Salvação cristã, por exemplo, no Conto de Amaro. O texto de Lobato cumpre à excelência sua função de convidar e instigar nossos colegas medievalistas e todos os amantes da Idade Média à leitura da obra. Ao final, o leitor terá aprendido muito, sem dúvida, além de sentir mais denso seu fascínio pelos tempos medievais.

É nesta perspectiva que apresentamos a nossos leitores, sejam os contumazes amantes do Medievo, sejam os diletantes motivados pelo encanto das narrativas maravilhosas, ou ainda colegas historiadores que desejem analisar os conflitos e processos sociais subjacentes à gesta do Ocidente, uma ampla gama de escritos, cuidadosamente selecionados para cada um desses leitores.

Adriana Zierer – UEMA. École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. E-mail: medievalzierer@terra.com.br

Marcus Baccega – UFMA. Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. E-mail: marcusbaccega@uol.com.br


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.13, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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