BATALHA, Claudio; MAC CORD, Marcelo (Orgs.). Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Editora Unicamp, 2015, 280p. Resenha de: VELASQUES, Muza Clara Chaves. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.2, mai./ago. 2016.
O livro Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) oferece ao leitor alguns dos estudos históricos mais recentes sobre o tema. Organizado por representantes de duas gerações de historiadores do trabalho, Claudio Batalha e Marcelo Mac Cord, a publicação dá continuidade à coleção Várias Histórias, criada pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desde a sua origem, o Cecult (1995) foi um dos principais espaços de renovação da história social, dinamizando as reflexões teóricas e da produção da história no uso das metodologias e fontes, com destaque para as investigações das experiências dos trabalhadores brasileiros nos estudos do século XIX e da primeira metade do século XX.
As formas de atuação dos trabalhadores nos seus locais de trabalho; o contato dos trabalhadores pobres com outros sujeitos históricos e as estratégias de resistência no embate entre as classes sociais; os espaços de sociabilidade, lazer e formas de expressão da vida cotidiana dos trabalhadores; e os laços de solidariedade, resistência e costumes são temas presentes nas dissertações e teses produzidas pelo Centro. Observa-se nestas produções a herança dos trabalhos que inauguraram, a partir de fins dos anos 1970, no Brasil um novo olhar da história social na interpretação dos temas da história da cultura e da história do trabalho, em um estreito diálogo com a produção do historiador inglês E. P. Thompson.1
Nos anos 1980, com o fim da ditadura civil-militar no país, assistimos à reestruturação das universidades públicas e, com elas, um novo fôlego na divulgação das pesquisas na área das ciências humanas. Nos núcleos acadêmicos de pesquisas históricas este movimento teve um importante papel através das revistas que ajudaram a impulsionar o diálogo entre os pesquisadores brasileiros e, consequentemente, fomentaram a produção historiográfica. No prolongamento deste movimento, como canal de divulgação das atuais pesquisas, a coleção Várias Histórias tem colaborado para a maior visibilidade do campo da história social, buscando divulgar uma produção que ajudou a desconstruir a hegemonia das explicações mais generalizantes e ortodoxas, principalmente nos estudos da escravidão, pós-abolição, trabalho escravo, trabalho livre e experiências operárias. O livro Organizar e proteger deve ser visto a partir deste contexto.
Com capítulos articulados com base nas análises de um objeto comum – as experiências associativas dos trabalhadores dos séculos XIX e XX –, o livro apresenta uma discussão pouco conhecida para o público que está fora dos círculos das pesquisas no campo da história. Batalha e Mac Cord, ao reunirem importantes estudos de especialistas da história social do trabalho na discussão das formas de organização de ajuda mútua dos trabalhadores ao longo do Império e primeiros anos da República brasileira, trouxeram questões essenciais a respeito da cultura associativa nas cidades do Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Maceió, Florianópolis, Campinas, além de algumas cidades do estado de Minas Gerais. Os autores dos nove capítulos da obra acabaram compondo um quadro que nos permite compreender a complexidade das associações mutualistas e das relações destas com os trabalhadores livres e escravos.
Partindo da proposição, explicitada na introdução do livro, de que as formas associativas que se multiplicaram na Europa, no decorrer do século XIX , são herdeiras das concepções iluministas do século XVIII, podemos observar nelas a defesa da vida pública e de ampliação da participação social, acompanhadas pelo sonho da meritocracia. Compreendem-se assim as bases do pensamento que conduziu a construção das diversas associações na Europa que reuniam “inteligências, virtudes e vontades” em seus grêmios literários e científicos, influenciando as experiências associativas nas colônias e ex-colônias europeias. A ideia de civilização e progresso somada aos valores e às práticas associativas terão grande peso na construção da sociedade liberal. Na sua origem europeia, o associativismo de início do século XIX refletia a fragmentação social vigente. As classes ‘subalternas’ não compunham os quadros de associados das organizações das elites letradas, e a burguesia proprietária não ficou de fora das experiências associativistas. Reuniam-se em entidades de classe que protegiam seus interesses econômicos e de atuação política. Trabalhadores também se organizaram em entidades de classe, pois entendiam que eram fundamentais para suas estratégias de sobrevivência.
Segundo os organizadores da obra, até o início dos anos 1980, os debates históricos, com raras exceções, trataram de ler o associativismo no Brasil como uma “espécie de pré-história da classe operária”. A partir de fins da mesma década, uma nova geração de historiadores debruçou-se nas pesquisas sobre o mutualismo no Brasil. Arquivos e fontes inéditos para o estudo das associações começaram a ser investigados, trazendo abordagens e interpretações renovadas sobre o associativismo, o que resultou em análises que puderam compreender as variadas formas que as práticas da ajuda mútua assumiram na nossa sociedade dos séculos XIX e XX.
Neste sentido, essas três últimas décadas foram suficientes para promover um acúmulo de conhecimento histórico sobre as formas de associativismo dos trabalhadores brasileiros e, em especial, sobre o mutualismo, como explicam os organizadores. Entendendo que as práticas do mutualismo no Brasil não são uma mera transposição dos modelos da experiência europeia, Batalha e Mac Cord chamam a atenção para as primeiras décadas do século XIX, onde encontramos a forma ‘clássica’ do associativismo no Brasil. Esta pode ser vista tanto na constituição das lojas maçônicas anteriores à independência, nas formas organizativas das elites letradas e proprietárias do Império dos anos 1830, como nas sociedades de trabalhadores artífices do mesmo período, que promoviam o auxílio mútuo e o aperfeiçoamento profissional para os seus membros.
Em um mergulho nas páginas de Organizar e proteger, fica claro para o leitor que a opção dos autores por um modelo de pesquisa que privilegia o estudo de caso permite que se chegue à principal chave de leitura para a compreensão do mutualismo como fenômeno histórico da sociedade brasileira. A chave encontra-se no olhar para as especificidades do objeto pesquisado. Os recortes de tempo e espaço nas análises revelam a dinâmica caleidoscópica das associações de ajuda mútua nas diferentes cidades estudadas.
Os autores do livro aprofundam a crítica às ‘verdades’ históricas consolidadas pela produção historiográfica anteriormente produzida, unindo-se aos avanços das pesquisas atuais sobre o mutualismo. Para Batalha e Mac Cord, os novos estudos opuseram-se às leituras que naturalizaram uma evolução das corporações de ofício como se estas necessariamente desembocassem no mutualismo e, na sequência, na formação dos sindicatos. Insistiram também na crítica à afirmação de que a construção da consciência de classe dos trabalhadores só era possível apenas a partir das organizações sindicais e partidos operários. Como importante contribuição do processo histórico da formação da classe trabalhadora no Brasil, o livro traz em seus capítulos a ampliação desse debate. As variações das conjunturas politico-sociais que envolveram as experiências mutuais impedem qualquer leitura cristalizada em busca de uma forma única do mutualismo no Brasil.
É possível compreender na leitura dos capítulos que as associações mutualistas foram criadas por diferentes grupos sociais. Algumas mutuais possuíam em seus quadros de sócios membros com identidades muito próximas, mas podia existir também em seu interior um distanciamento social muito grande entre seus membros. Esta contradição construía uma dinâmica de disputas e hierarquias no interior das associações, que também não foram por todo o tempo uma exclusividade dos trabalhadores. Ao oferecer serviços e benefícios, acabavam abrigando outros membros de origens distintas. No processo de surgimento das sociedades mutualistas ao longo da segunda metade do século XIX, as diversas experiências associativas de trabalhadores criaram identidades mais precisas no processo de manutenção de suas solidariedades e solução de conflitos.
Nas associações coloniais traduzidas por meio das irmandades leigas, pode-se ver a religião como um importante elo de união entre os trabalhadores. Junto a elas, os sentidos da solidariedade, da confiança na proteção mútua, assim como a ajuda material, mantinham hierarquias e obrigações que influenciaram as ações mutualistas na continuidade do século XIX. As experiências religiosas das irmandades mantiveram-se ativas nas formas de inclusão e exclusão social e racial existentes nas associações durante o Império, demonstrando que não só as corporações de ofício tiveram esse poder.
Outra nova questão é entendermos que a lógica associativa nem sempre esteve ancorada pelo primado da necessidade. Trabalhadores pobres sempre recorreram às mutuais, cooperativas ou sindicatos, onde podiam contar com as formas de assistência oferecidas, porém as condições de vida e trabalho podiam ser secundarizadas ou combinadas à priorização de elos que lhes conferiam identidades sociais. Logo, o mutualismo não pode ser lido apenas como a busca pela assistência na sua função previdenciária. Valores, ações festivas, rituais e outras práticas de construção de vínculos ainda menos estudadas, promovidas pelas sociedades de ajuda mútua, estavam presentes neste universo investigado pelos historiadores do livro.
Outra questão de destaque apresentada em alguns capítulos é como a condição social e a cor definiam a manutenção dos vínculos e hierarquias numa conjuntura de escravidão e fim da escravidão. Ser negro, em muitos casos, era fator de exclusão das associações. Porém, na luta contra a exclusão, observamos entidades de auxílio mútuo constituídas exclusivamente por homens pretos. Neste sentido, é grande a contribuição das pesquisas para o entendimento do complexo momento de convivência do trabalho escravo e livre para a história do trabalho. Em muitos casos, as sociedades mutualistas eram também um espaço de afirmação de identidade étnica e, muitas vezes, um indicador de status de seus sócios.
A não admissão de escravos ou libertos como sócios às vezes possuía o significado de estabelecer uma prática que procurava garantir ocupação para os sócios no mercado de trabalho e acentuar a diferenciação em relação ao trabalho escravo.
Ao resgatar as atas das reuniões e relatórios de atividades das mutuais, seus regimentos e jornais de época, as vozes dos trabalhadores puderam ser lidas e o entendimento sobre o processo de formação da classe operária ganhou profundidade. Se não existe uma simetria regional e temporal que defina esse processo uniformemente, as experiências reveladas pelas fontes apontam para relações cada vez mais ricas em suas complexidades. Fugindo dos esquemas deterministas vemos que as antigas irmandades religiosas, as sociedades mutualistas e os sindicatos operários compartilharam experiências. Não era raro no século XIX ver filiados que mantinham seus antigos laços com as irmandades religiosas e as associações de auxílio mútuo. E mais, alguns construíram elos com os sindicatos operários criados no século seguinte que incluíam vínculos com movimentos grevistas.
As investigações das experiências dos operários com as irmandades religiosas e profissionais de pretos no século XIX revelaram que o intercâmbio de práticas e ideias existiu entre eles em um nível que unia membros de diferentes cidades do país nos primeiros anos da República.
Batalha, que influenciou fortemente a geração de historiadores que compõem os capítulos do livro, afirma que não existe a possibilidade de compreensão de uma identidade da classe operária composta pelo trabalho regular e organizado sem entendermos as primeiras sociedades de artesãos que desenvolveram a ideia de valorização dos ofícios qualificados e da visão positiva de trabalho, que tratava de distinguir os trabalhadores dos pobres (sempre associados ao vício e ao ócio).
Tal discurso contribuía para um processo de construção de identidade de classe, reforçado pelas propostas dos cursos profissionalizantes desenvolvidos por algumas mutuais que herdaram esta prática das corporações de ofício para melhor qualificar os associados para o trabalho.
O papel do Estado também tem destaque nas discussões que os estudos apresentam no livro. As formas de controle que as autoridades públicas exerciam sobre as associações marcam não apenas o sentido da regulamentação do associativismo na questão da livre iniciativa, mas dizem respeito principalmente aos limites impostos pelo controle das formas de organização dos trabalhadores.
Ao colocar de lado a leitura da história política clássica, trazendo a ampliação da categoria ‘cultura’ como modo de vida (incluindo aí as experiências de sujeitos comuns nas relações cotidianas de vida e trabalho), a história do trabalho é capaz de ouvir os trabalhadores. Podemos afirmar que a leitura de Organizar e proteger oferece enorme contribuição para que isto ocorra. Mesmo partindo de concepções historiográficas nem sempre idênticas, os autores reforçam a necessidade de o pesquisador olhar para os sujeitos comuns da história. Essa atitude na pesquisa pode servir para os investigadores de diferentes áreas, principalmente para os estudiosos dos processos de trabalho da saúde.
Entender que as relações de trabalho atuais estão permeadas por preconceitos étnicos e que estes carregam formas históricas das experiências de organização dos trabalhadores, compreender que os laços de organização dos trabalhadores nem sempre são determinados pelo topo das esferas hierárquicas da administração ou da gestão do trabalho – ou ainda pela escala da formação educacional – nos aproximam da possibilidade de maior compreensão e construção do que é o trabalhador técnico da saúde na história e nos dias de hoje. Tais relações de trabalho e formas de organização dos trabalhadores transitam pelas demandas que atravessam costumes, tradições, valores, laços de solidariedade, trajetórias de vida e experiências coletivas. Não esquecendo que os trabalhadores, em suas lutas, a partir de suas necessidades e das identidades construídas, foram capazes de reinventar antigas formas de organização e autoproteção na luta por seus direitos.
Notas
1 The making of the English working, de E.P. Thompson, teve sua primeira edição em 1963 na Inglaterra, tornando-se a partir de então uma obra seminal para os estudos da história social do trabalho. A primeira edição no Brasil data de 1987 e foi lançada pela editora Paz e Terra em três volumes.
2Autores e seus respectivos capítulos: Mônica Martins (“A prática do auxílio mútuo nas corporações de ofícios no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX”); Aldrin A. S. Castellucci (“O associativismo mutualista na formação da classe operária em Salvador, 1832–1930”); David P. Lacerda (“Mutualismo, trabalho e política: a Seção Império do Conselho de Estado e a organização dos trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro, 1860–1882”); Ronaldo P. de Jesus (“Associativismo entre imigrantes portugueses no Rio de Janeiro Imperial”); Osvaldo Maciel (“Mutualismo e identidade caixeiral: o caso da Sociedade Instrução e Amparo de Maceió, 1882–1884”); Marcelo Mac Cord (“Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais: mutualismo, cidadania e a reforma eleitoral de 1881 no Recife”); Claudia Maria Ribeiro Viscardi (“O ethos mutualista: valores, costumes e festividades”); Rafaela Leuchtenberger (“A influência das associações voluntárias de socorros mútuos dos trabalhadores na sociedade de Florianópolis, 1886–1931”); Paula Christina Bin Nomelini (“O mutualismo e seus diversos significados para os trabalhadores campineiros nas primeiras décadas do século XX”).
Muza Clara Chaves Velasques – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mcvelasques@fiocruz.br
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