Oração, penitência e trabalho: o Recolhimento de Santa Maria Madalena e São Gonçalo de Braga (1720-1834) | Maria Marta Lobo de Araújo

Recolhimento Santa Matalena Braga Trabalho
Recolhimento de Santa Maria Madalena, Braga | Foto: aspa35anos.blogspot.com

ARAUJO M Oracao Penitencia TrabalhoProfessora associada do Departamento de História da Universidade do Minho, há muitos anos Maria Marta Lobo de Araújo vem se dedicando ao estudo de diferentes tipos de instituições religiosas existentes na região noroeste de Portugal, durante a Época Moderna. As pesquisas da autora se inserem no âmbito de recentes tendências historiográficas que renovaram a História Social: o estudo das práticas e das crenças religiosas dos fiéis, o estudo da assistência à pobreza e à orfandade, o estudo da reclusão das mulheres e dos valores que a norteavam, entre outros temas de importância. O material empírico principal utilizado no livro é constituído pelo fundo do Recolhimento de Santa Maria Madalena, depositado no Arquivo Distrital de Braga. Paralelamente, outros fundos documentais pertencentes ao mesmo Arquivo foram também utilizados na pesquisa.

A obra abrange desde o período de fundação e entrada das primeiras recolhidas até 1834, quando o Recolhimento se revestiu de outras finalidades, em sintonia com os decretos liberais da época, que afetaram diretamente a existência de ordens religiosas masculinas e femininas em Portugal. O diálogo com a historiografia é profícuo, destacando-se os trabalhos dedicados a conventos e a recolhimentos femininos no Minho, mas sem descuidar da historiografia relativa aos referidos estabelecimentos que foi produzida em outras partes da Europa e nos antigos domínios portugueses. No esforço aqui empreendido para apresentar a obra aos leitores interessados, serão exploradas conexões com a literatura produzida a respeito do tema, particularmente aquela que tomou a América Portuguesa como pano de fundo.

No primeiro capítulo da obra, a autora analisa os perfis do fundador e das recolhidas. Fundado em 1720 pelo arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles (1704- 1728) na freguesia de São Vítor da cidade de Braga, o Recolhimento de Santa Maria Madalena ou das “convertidas” destinava-se precipuamente às mulheres que, tendo perdido a honra em vida, estavam decididas a recuperá-la. Ou, como o próprio prelado declarou, planejava-se uma casa para recolher “mulheres prostitutas e de maus costumes, onde pudessem aprender as virtudes e se tentassem emendar” (Araújo, 2017, p. 19). Curiosamente, as análises da autora revelam que, apenas em caráter excepcional, o Recolhimento amparou “mulheres públicas”: em vez disso, “eram todas meninas que deviam ter vivido até certa altura com recato” (ibid., p. 43). Tais mulheres constituíam as do “número”, e eram sustentadas com recursos da mitra diocesana. Para ter direito à assistência, as mulheres arrependidas enviavam petições ao arcebispo ou, na ausência deste, ao cabido da sé, declarando os nomes dos pais, os locais de moradia e as razões que as levavam a optarem pela vida em reclusão. Além da pobreza material, por vezes a inocência e a beleza constituíam fatores a decidir o ingresso de uma recolhida, conforme ocorreu em 1824 com a órfã Maria Teresa, que tinha na ocasião 12 anos de idade, sem passagens pela prostituição (ibid., p. 46).

Sede de um milenar arcebispado, tido como o “primaz das Espanhas”, a cidade de Braga contava, no início do século XVIII, com cerca de 14 mil habitantes (Bandeira, 1993, p. 200). No que diz respeito ao número de estabelecimentos de reclusão feminina, a cidade dispunha de cinco conventos e de sete recolhimentos (Araújo, 2018, p. 128). Ainda que fosse erigido com a finalidade principal de amparar as mulheres arrependidas de seus pecados mundanos, logo no início de funcionamento o Recolhimento de Santa Maria Madalena passou a abrigar outra categoria de mulheres, que pagavam pelo sustento na instituição. Denominadas de supranumerárias ou porcionistas, eram mantidas com recursos extraídos de dotes que entregavam à instituição, formalizando-se tal ato por meio de escrituras públicas. O perfil das porcionistas era muito variado. Abrangia solteiras, viúvas e casadas, cujos maridos se encontravam momentaneamente ausentes ou separados de forma mais permanente, por meio de processos de divórcio. A análise da autora revela que o índice da presença da segunda categoria de mulheres tendeu a crescer, ao longo do período escolhido para a análise.

A perspectiva da autora aproxima-se da leitura clássica a respeito dos estabelecimentos femininos de reclusão da América Portuguesa, que enfatizou a multiplicidade dos usos conferidos àquelas instituições, moldadas “em função das necessidades das populações locais” (Algranti, 1993, p. 79).

Estabelecimentos que possuíam o referido perfil podiam ser encontrados em diferentes partes dos domínios portugueses, como o Recolhimento de Santa Maria Madalena de Goa, fundado em princípios do século XVII por iniciativa do arcebispo D. Fr. Aleixo de Meneses (Coates, 1998, p. 237). Nas décadas de 1740 e 1750, por iniciativa do missionário jesuíta Gabriel Malagrida, foi ereto o Recolhimento das Convertidas de Igarassu, na Capitania de Pernambuco (Almeida, 2005, p. 242-259).

Um pouco depois, em 1755, na cidade de Salvador da Bahia, o vice-rei Conde dos Arcos apoiou a instalação do Recolhimento de São Raimundo, para abrigar “mulheres convertidas que querem largar o mundo e viver com honestidade” (Mott, 1993, p. 272). Em 1756, D. Fr. Antônio do Desterro Malheiros, bispo do Rio de Janeiro, solicitou ao soberano a autorização para fundar na cidade um recolhimento destinado a “mulheres depravadas” que, por causa da pobreza, não tinham meios para mudar de vida, e para mulheres casadas que “quisessem livrar-se dos maridos” (Mott, 1993, p. 276). Com efeito, no ano seguinte foi inaugurado o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto. Na capitania do Rio de Janeiro, na freguesia de São Sebastião de Itaipu, o vigário e o cônego provisor do bispado tiveram em 1764 a iniciativa de fundar um estabelecimento que, de acordo com as próprias recolhidas, destinava-se a “donzelas que por vocação quisessem ou escapar às ruínas do corrompido século […] ou receber uma educação regular para depois tomarem estado” (Martins, 2012, p.

56). Mais tarde, o Recolhimento de Santa Teresa de Itaipu também abrigou mulheres separadas dos maridos em função de litígios conjugais. Tendo em vista o panorama não exaustivo apresentado, a fundação do Recolhimento de Santa Maria Madalena de Braga faz parte de um conjunto de iniciativas semelhantes que, protagonizadas principalmente pelos bispos de Setecentos, com o apoio financeiro de fiéis seculares, materializavam o desejo de amparo de mulheres “decaídas” em diferentes territórios portugueses. Se, nos séculos XVI e XVII, Timothy Coates pôde visualizar uma lógica imperial presente na fundação de estabelecimentos religiosos femininos em Lisboa e Goa, no século XVIII pressões locais específicas parecem orientar a abertura das ditas instituições no Reino e em alguns domínios portugueses, conforme argumentou o próprio autor (Coates, 1998, p. 243). A análise dos locais de proveniência das recolhidas de Santa Maria Madalena confirma o peso dos fatores locais: cerca de 37,4% provinham do Conselho de Braga, havendo também expressivos ingressos de mulheres oriundas de outras localidades do Minho (Araújo, 2017, p. 37-39).

O primeiro capítulo da obra termina com a análise dos ritmos de entrada e de saída no Recolhimento de Santa Maria Madalena. A circulação de mulheres era grande, variando desde poucos meses de permanência até o caso em que passavam a viver perpetuamente na instituição, sendo nela sepultadas. De modo geral, as mulheres do número saíam quando conseguiam contratar casamentos, obtendo um dote do Recolhimento. A circulação das recolhidas pertencentes à categoria das suprenumerárias era maior, pois os motivos que as levavam à clausura eram, em alguns casos, circunstanciais, e não se esperava delas um programa de conversão, por serem já consideradas “honestas”. Não obstante, ainda que os estatutos de 1722 tenham sido redigidos levando-se em conta apenas as mulheres “arrependidas”, a autora considera que a aplicação dos mesmos se estendia também às supranumerárias porcionistas. Em 1739, os estatutos foram reformados, mas a autora não obteve acesso ao referido texto. Em 1790, o arcebispo D. Fr. Caetano Brandão escandalizou-se com o convívio, lado a lado, de prostitutas e de donzelas com menos de 18 anos (Araújo, 2017, p. 21). É possível que o prelado tenha então introduzido mudanças. Além dos estatutos, as recolhidas pautavam-se pela regra da Ordem Terceira de São Francisco, cujo pertencimento não implicava a obediência solene dos três votos da vida religiosa, mas somente de votos simples de castidade adequados ao estado das recolhidas. A partir de 1755, o arcebispo D. José de Bragança autorizou as recolhidas a observarem novas regras, pertencentes à congregação do Sagrado Coração de Jesus (ibid., p. 67). Em que pese a existência de regras, o Recolhimento de Santa Maria Madalena estava submetido à jurisdição do arcebispo de Braga.

O segundo capítulo da obra contém a análise dos estatutos de 1722 e da hierarquia interna da instituição delineada pelo texto. Em síntese, segundo a autora,

A alusão à vida de santos, ao exemplo das virtudes, o chamamento à oração, ao arrependimento, o respeito à regente, à porteira, ao capelão e às recolhidas mais velhas, a mortificação do corpo, a purificação do espírito, o trabalho, a caridade, o auto controlo, os sacramentos, o vestuário, as relações que as mulheres mantinham entre si, o silêncio, a clausura, e a compostura integravam o programa de arrependimento que levaria as mulheres a mudar de vida e a esquecerem o seu passado recente (Araújo, 2017, p. 65).

Os estatutos elaborados pelo arcebispo e fundador D. Rodrigo de Moura Teles estavam divididos em 13 capítulos. O capítulo primeiro tratava do número e da qualidade das mulheres ingressantes no Recolhimento. O segundo, da admissão da regente, da porteira e das demais recolhidas. O quinto, das qualidades requeridas da regente e das atribuições que esta tinha. O sexto, do que tocava ao ofício da porteira. O sétimo, do sacristão. O oitavo, da zeladora, cujo ofício consistia em avisar a regente sobre as faltas cometidas pelas recolhidas. O nono, da despenseira.

O décimo, das companheiras, que tinham a seu cargo o acompanhamento da entrada de capelães, médicos e cirurgiões ao interior do Recolhimento, para que não tivessem contatos irregulares com as recolhidas. O capítulo onze, da espertadora, responsável por tocar o sino que chamava as recolhidas para os ofícios litúrgicos e manuais. O doze, da campeira, responsável pelo cuidado da horta e pelo arranjo das flores nos altares. Por fim, o capítulo treze definia as atribuições das enfermeiras (Araújo, 2017, p. 251-265). À luz da descrição dos capítulos, cuja íntegra é apresentada pela autora em anexo à obra, torna-se visível a semelhança da hierarquia interna do Recolhimento com aquela encontrada nos conventos regulares. Tais similitudes não apagam o fato de que o empenho principal do Recolhimento de Santa Maria Madalena era propiciar um estado honrado às “arrependidas”, dotando-as para o casamento.

O capítulo quarto dos estatutos descrevia os exercícios do corpo e da alma a que se deviam entregar, dia e noite, as recolhidas. Tal como nas instituições de clausura perpétua, a rotina do Recolhimento estava marcada pela oração individual, mental e vocal; pelos diferentes atos litúrgicos realizados coletivamente no coro; pela prática da confissão; pelo trabalho manual; pelas refeições comunitárias realizadas no refeitório; pelo recolhimento de cada interna em celas individuais; pela celebração de cerimônias festivas de culto, ao longo do ano. Conforme assinala a autora, os estatutos ajustavam-se às propostas, desenvolvidas a partir do Concílio de Trento, de acrisolamento do espírito e de ascese do corpo. Por sua vez, o cuidado com o controle da portaria e das grades, os pontos de contato do Recolhimento com o mundo exterior, também estava afinado a resoluções aplicadas a partir do referido Concílio, no sentido de tornar mais rígida a clausura feminina (Laven, 2003, p. 31-83; King, 1994, p. 91-165). Não obstante a importância dos ideais de submissão e de autocontrole previstos nos estatutos, a rica documentação do estabelecimento permitiu à autora analisar a existência de conflitos internos, de expulsões, de fugas, de lutas pelo poder travadas entre grupos rivais, este último um elemento quase onipresente no cotidiano das ordens regulares. Em seu conjunto, a perspectiva da autora é mais complexa do que a justaposição entre o desejo de ordem encarnado nos estatutos e o cotidiano das recolhidas que dava margem à desordem:

Apesar dos constrangimentos, das normas, do controlo e até da violência psicológica que o recolhimento constituiria para algumas mulheres, estas acabavam por encontrar nele alguma autonomia e mesmo liberdade.

Ali, eram donas de si mesmas e podiam exercer cargos de poder, realidade impossível no século, onde estavam subjugadas aos pais, aos maridos, aos irmãos ou aos tutores (Araújo, 2017, p. 99).

O capítulo terceiro do livro está reservado ao exame dos espaços de penitência. Graças à preservação física do edifício, a autora reconstitui a materialidade do Recolhimento com o recurso farto de imagens inseridas no texto. Esta possibilidade analítica não foi viável em muitas obras dedicadas ao tema, devido à completa trans formação dos referidos estabelecimentos, ou mesmo à total ruína, como no caso do Recolhimento das órfãs da Misericórdia da Bahia (Russell-Wood, 1981, p. 253-265).

Além da análise das celas, da portaria e do coro, aparece com destaque o tronco, uma sala sem janelas situada ao rés-do-chão do Recolhimento, e que era utilizada como lugar de castigos. Nesta parte da obra, a autora poderia ter aprofundado o exame dos modelos de santidade constituídos pelas vidas de Cristo e de São Francisco, cujos símbolos, muito difundidos no contexto da Reforma católica, encontravam-se igualmente presentes em diversos espaços do estabelecimento.

O capítulo quarto analisa os recursos financeiros administrados pelo Recolhimento de Santa Maria Madalena de Braga. No que tange às instituições de reclusão feminina da América Portuguesa, ainda que os trabalhos de Susan Soeiro (1974 e 1978) sobre o Convento do Desterro da Bahia tenham trazido grandes contribuições à temática, esta ficou relativamente ausente dos estudos posteriores. Na atualidade, o tema do suporte financeiro daquelas instituições voltou a ganhar destaque, como na tese de Amanda Dias de Oliveira Costa (2020). No Recolhimento das “arrependidas” de Braga, a maior parte dos recursos provinha da mitra diocesana (31%), ficando em segundo lugar as quantias correspondentes aos dotes das porcionistas (27%) e em terceiro o rendimento dos juros de recursos emprestados pela instituição (21%). No que tange às despesas, a maior parte dos gastos destinava-se à alimentação e à cura das recolhidas (33%), em segundo lugar à realização de festas (26%) e em seguida à aquisição de alfaias litúrgicas (25%). Devido à fragmentação dos dados disponíveis, os percentuais descritos foram obtidos em intervalos muito curtos, não podendo ser vistos como representativos para todo o período da pesquisa. Ao lado de uma visão macro do esteio financeiro do Recolhimento, a autora chega também a detalhar a posse de riquezas individuais que algumas recolhidas levavam para a clausura.

As “joias”, conforme o próprio nome indica, eram constituídas por objetos de metal precioso, que podiam ser comodamente guardados no Recolhimento. Em caso de necessidade, podiam ser penhorados, para pagamento de dívidas contraídas pelas recolhidas.

O quinto capítulo examina as sociabilidades e os conflitos desenvolvidos no âmbito do Recolhimento. Para o exame do primeiro ponto, a autora se vale dos estatutos, mas aprofunda também outros aspectos, oferecendo, por exemplo, um estudo detalhado das práticas alimentares das recolhidas e do abastecimento da instituição. No que tange à análise das situações de conflito, a autora as divide em dois grupos, os litígios travados entre as próprias recolhidas e aqueles mantidos com os irmãos da confraria de São Gonçalo, cuja capela passou a ser, em 1723, o local de culto divino do Recolhimento. Focalizando aqui os conflitos em que se envolviam as recolhidas, a autora constata a continuidade dos mesmos ao longo de todo o período da análise, e propõe uma hipótese interessante para explicá-la:

Deixar uma vida livre, em alguns casos até de libertinagem, para passar a cumprir regras rígidas em regime de clausura deve ter constituído para algumas recolhidas um choque e até mesmo alguma violência psicológica. As pertencentes a grupos sociais mais baixos estavam habituadas a falar com todos, a trabalhar no campo ou nos ofícios na cidade, a lidar com outra qualidade de gente e a uma liberdade que o recolhimento não permitia. Por isso, seriam muitas as ocasiões em que rebentava o descontrolo e se agrediam com palavras e até fisicamente (Araújo, 2017, p. 184).

Um dos mais importantes distúrbios ocorreu em sequência à reforma dos estatutos do Recolhimento. Efetuada em 1739, e referendando práticas adotadas desde 1737, a reforma determinava que os ofícios estratégicos da superiora e da porteira seriam eleitos, alterando o capítulo segundo dos antigos estatutos, que dispunham que as ocupantes daqueles cargos eram escolhidas pelo arcebispo.

É interessante assinalar que a reforma foi realizada durante o período de vacância da sé, ocasião em que era administrada pelo cabido diocesano. Desde 1737, o cabido diocesano tinha expulsado a regente Isabel do Sacramento, que exercia o posto desde a fundação do Recolhimento, e a irmã de sangue da mesma, que se ocupava da portaria. Em 1743, no episódio de espancamento de uma recolhida, que oferecia comida aos pobres na portaria sem autorização superiora, a autora mostra como o grupo alijado do poder utilizou o episódio para enfraquecer a nova regente, Joana de São Francisco. Determinando uma devassa para apurar as culpas, o arcebispo D. José de Bragança (1741-1755) puniu as agressoras com reclusão no tronco. Por outro lado, demitiu Joana de São Francisco e a porteira dos seus ofícios, readmitindo àqueles postos Isabel do Sacramento e a irmã. O arcebispo restaurou os antigos estatutos, recuperando o poder que possuía quanto à seleção da regente e da porteira. Quanto a Isabel do Sacramento, continuou a reger o Recolhimento até 1761.

No sexto e último capítulo, denominado “No viver e no morrer”, a autora analisa as questões do abastecimento da água, do tratamento das doenças e das práticas piedosas por ocasião da morte no âmbito do Recolhimento. No que diz respeito ao segundo aspecto mencionado, a autora constata que, em alguns casos, os cuidados dispensados às recolhidas se realizavam no interior da própria instituição, que para isso contava com uma enfermeira, garantindo-se Nos casos mais graves, como nas doenças contagiosas, a cura era obtida fora dos muros do Recolhimento, utilizando- se por vezes o Hospital de São Marcos da cidade de Braga. No que tange às práticas piedosas de preparação para a morte, a autora observa que alguns rituais assumiam um perfil mais uniforme, como a escolha predominante do hábito da Ordem Terceira de São Francisco como mortalha, a utilização da capela de São Gonçalo como local de inumação e a celebração de dez missas em sufrágio pela alma de cada recolhida, com recursos do Recolhimento. Por outro lado, havia medidas individuais de preparação para a morte, cuja complexidade dependia das quantias deixadas pelas recolhidas. Assim, a presença de sacerdotes nos acompanhamentos fúnebres poderia ascender ao número de 52. Nos funerais mais opulentos, podiam participar dos séquitos as irmandades, que eram obrigadas ao acompanhamento dos respectivos membros.

Paralelamente, além das missas ditas pelo Recolhimento e pelas associações religiosas a que tinham se filiado em vida, algumas recolhidas mandavam dizer com recursos próprios missas e ofícios em sufrágio da própria alma e da dos parentes. Não obstante, a autora revela que a maior parte das recolhidas morria pobre e com dívidas, o que lhes garantia apenas as dez missas previstas nos estatutos.

Vindo a preencher uma importante lacuna no campo dos estudos dedicados a instituições de reclusão que pretendiam regenerar e casar mulheres desonradas, a obra de Maria Marta Lobo de Araújo tem o potencial de inspirar novas pesquisas no mundo ibérico e domínios ultramarinos na Época Moderna, territórios onde proliferaram aqueles estabelecimentos.

Referências

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Resenhista

William de Souza Martins  – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de História. Programa de Pós-graduação em História Social. Largo de São Francisco de Paula, nº 1, sala 201, 20051-070, Centro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. williamsmartins@uol.com.br


Referências desta resenha

ARAÚJO, M. M. L. de. Oração, penitência e trabalho: o Recolhimento de Santa Maria Madalena e São Gonçalo de Braga (1720-1834). Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2017. 290p. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Em busca de reclusão para mulheres desonradas em Braga. História Unisinos. São Leopoldo, v.25, n.2, p.368-372, maio/ago.2021. Acessar publicação original [IF].

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