Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620 | Charlotte de Castelnau-L’Estoile

Em maio de 1583 dois padres vindos de Lisboa” desembarcaram em Salvador da Bahia. Eram eles Cristóvão de Gouvêa, encarregado pelo Geral da Ordem Jesuíta, o italiano Claudio Acquaviva, de visitar a Província do Brasil, e o jovem Fernão Cardim, seu companheiro e secretário. Por essa época, encerrava-se a primeira fase da história da Companhia, o tempo heróico da fundação, e ingressavase na era da redefinição de sua administração, pois o generalato de Acquaviva (1581-1615) seria marcado pelo esforço central da Ordem por ‘regularizar’ e unificar “as práticas intelectuais, espirituais e administrativas das diferentes províncias, ou seja, a da ação missionária na periferia, em busca da afirmação de uma identidade jesuíta” (p. 20).

Na instrução dada ao Pe. Cristóvão de Gouvêa, datada de julho de 1582, o Geral da Companhia deixava claro que sua missão era promover a “consolação dos nossos que trabalham naquela vinha tão estéril, laboriosa e perigosa” (p. 17). Três anos depois, em 1585, ao retornar das primeiras viagens e visitas a várias instalações da Ordem no Brasil, Cardim [2], revelando um olhar fascinado pelo novo paraíso, pintava “o quadro idílico de uma nova humanidade [indígena] regenerada por sua evangelização...”, vivendo numa terra cuja natureza era esplêndida, exótica e abundante de alimentos (p. 45). Encantado com as festas com que os nativos haviam recebido a ele e ao Visitador, o jovem padre parece não ter dúvidas quanto à frutificação da missão jesuítica no Brasil.

Esses são os pontos de partida de Charlotte de Castelnau-L’Estoile [3] nesta obra, originalmente elaborada como sua tese de doutoramento, traduzida pela primeira vez em português, e que se tornará, sem sombra dúvidas, referência obrigatória para os pesquisadores interessados na história do período colonial no Brasil, especialmente no que se refere à organização e atuação dos missionários.

Balizando cronologicamente o trabalho entre os anos 1580 – período em que se instala o Generalato de Acquaviva, caracterizado pelo esforço centralizador a que já nos referimos e que resulta no envio do Visitador Cristóvão de Gouvêa à Província do Brasil, implicando em reformas na condução local da administração da missão – e os anos 1620 – quando Inácio de Loyola e Francisco Xavier são canonizados – a autora produz uma obra inovadora, assentada em uma base documental apreciável.

Debruçando-se sobre os esforços de reorganização da própria Companhia a partir da década de 1580 e sua repercussão na ação missionária na Província do Brasil, busca compreender o que significava para o jesuíta a obra da conversão. Como e por que agia nesse mundo? Como o lia e o significava depois de mais de três décadas de missão? Vinha estéril, novo paraíso? Haveria contradição nessas leituras aparentemente divergentes? Buscando compreender o projeto missionário jesuíta para o Brasil, e especialmente suas reformulações diante das dificuldades encontradas na ação de evangelização junto aos nativos, a autora volta seu olhar para aquilo que considera as ambigüidades da Companhia. O título da obra já indica a quais conclusões chegou. Os jesuítas, laboriosos operários dessa vinha estéril que era a Província do Brasil no período 1580-1620, foram obrigados a redefinir continuamente suas estratégias de ação, balizadas pelos documentos fundadores da Ordem, pelo esforço de controle por parte da sua administração central, pela dinâmica da própria sociedade colonial envolvida em conflitos múltiplos e permanentes e pelas dificuldades impostas pelo convívio com os povos indígenas, pecadores, inocentes, sedutores, inconstantes. Em meio a esses balizamentos e à necessidade da ação, se viam obrigados a se redefinir também continuamente como jesuítas, construindo e reconstruindo a si próprios enquanto tal.

Desnecessário reafirmar a importância e a centralidade da obra dos jesuítas na história do Brasil desde os primeiros tempos da conquista e do povoamento português de diferentes partes do território quando, em 1549, os seis primeiros missionários da Ordem, acompanhando o Governador Geral Tomé de Souza, foram enviados para dar início à conversão dos nativos. Este trabalho, afinal de contas, constituía uma das justificativas, se não a principal, da própria colonização. O rei de Portugal, detentor do direito do Padroado, os enviava e os financiava com esse objetivo. E não só para a América, mas para todas as regiões de seu império ultramarino. Do ponto de vista da monarquia a tarefa da cristianização significava também, além da “salvação das almas” dos gentios e dos próprios cristãos, a produção de súditos para o reino.

Desde os primeiros tempos de sua presença, devido à tarefa que lhes foi atribuída, os religiosos da Ordem estiveram profundamente imersos no quadro das múltiplas disputas e conflitos que caracterizaram a sociedade colonial. Foram os responsáveis, desde essa época, pela maior parte do trabalho educacional desenvolvido na colônia, com a instalação e funcionamento de seus colégios e escolas de bê-á-bá, e, principalmente, constituíram o maior contingente de missionários junto aos gentios. Devido a esse papel foram, em alguns momentos, apoiados e, em outros, perseguidos pelas autoridades, interferiram diretamente na política e na legislação indigenistas, e angariaram o ódio de grande parte dos colonos interessados no controle e na administração da mão-de-obra indígena. Além disso, ao longo dos primeiros séculos da colonização, a Companhia de Jesus tornou-se um dos principais agentes econômicos da colônia, possuindo fazendas e engenhos de açúcar que operavam com a mão-de-obra escrava [4]. Ou seja, envolvia-se também no “negócio” e não apenas na “missão” o que contribuiu ainda mais para lhes arregimentar uma legião de desafetos. Essa trajetória, marcada por conflitos duradouros em todos os níveis e em todo o território colonial, acabou resultando, no contexto das reformas pombalinas em meados do século XVIII, na expulsão da Ordem de todo o Brasil.

A historiografia sobre as missões, e especialmente sobre as dos jesuítas, no Brasil, têm se debruçado prioritariamente sobre a evangelização e a conversão dos nativos, ou seja, sobre as estratégias e os resultados da ação pastoral da Companhia, ou para a forma como os índios foram transformados pelo contato com o cristianismo. Notadamente nas últimas três décadas, em virtude do florescimento dos estudos sobre a história dos povos indígenas apoiados especialmente em contribuições da antropologia, a questão da evangelização no contexto das relações interculturais tem ocupado um lugar central na preocupação dos historiadores brasileiros [5]. Nestas obras, fundamentadas em grande parte nos escritos dos religiosos das diferentes ordens envolvidas na missão, tende-se a ressaltar a dialeticidade do encontro entre indígenas e europeus e a discutir como as identidades são reformuladas a partir desse contato. Discute-se também como esses agentes constroem o sentido do outro.

O foco do trabalho de Charlotte dirige-se para outra cena. Interessa-lhe compreender a Companhia de Jesus “por dentro”, buscando identificar as categorias do pensamento dos jesuítas para reconstituir o sentido que davam à suas condutas. Perseguindo esse objetivo, a autora se esforça também por situar o tema em uma perspectiva mais ampla, tentando explicitar de que forma essa ação e esse pensamento dos religiosos da Companhia (em Roma e no Brasil) são influenciados e reagem às mudanças na conjuntura do período. Não estamos, assim, diante de uma obra que se feche sobre os textos jesuítas como se fossem auto-explicativos, mas de uma obra que os ilumina na medida em que os situa no seu tempo, refletindo suas conexões com os outros mundos que então se descortinavam e se construíam. Por outro lado este estudo, extrapolando a preocupação estrita com a Companhia de Jesus, contribui para a compreensão dos sistemas de idéias e dos valores vigentes no início dos tempos modernos.

A obra de Castelnau-L’Estoile destaca-se ainda pela elegância do estilo e também por sua objetividade. Sua prosa segura, sóbria e ao mesmo tempo envolvente nos garante mais de seiscentas páginas de leitura agradável. As inúmeras e diversas fontes que sustentam a tese revelam a pesquisa cuidadosa e extensa que foi realizada em acervos localizados em três países – Itália, Portugal e Brasil – em busca dos documentos produzidos pela Ordem ou a ela relacionados. Partindo dos textos fundadores da Companhia de Jesus, elaborados por Inácio de Loyola, as Constituições e os Exercícios Espirituais, a autora incorpora à sua análise outros tipos de textos sobre a missão, dentre eles a produção administrativa da Ordem, como a correspondência interna entre seus membros, especialmente entre o Geral e os Provinciais e Visitadores, além de regulamentos, relações, catálogos, relatórios dos Visitadores. Através deste tipo de documentação, procura perceber “de que maneira um ideal religioso se transforma em norma, em estratégia, em política de pessoal” (p. 32). Incorpora também textos jesuítas, caracterizados como “literatura de consolação”, que são destinados a um público mais amplo. Neles se evidencia, em geral, o esforço para valorizar a missão e a ação da Ordem; este é o caso daqueles atribuídos a Fernão Cardim, por exemplo, e também é o das primeiras biografias do Padre Anchieta escritas por seus irmãos jesuítas, Quirício Caxa e Pero Rodrigues. Ainda no que respeita às fontes utilizadas é importante destacar, como o faz a autora (p. 25-27), que várias delas diante da importância da Companhia na história do Brasil, já haviam sido publicadas por eruditos e historiadores locais, especialmente os vinculados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro desde o século XIX. No entanto, marco fundamental nesse sentido foi, entre 1938 e 1950, a publicação da monumental obra do Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, em dez volumes, que se tornou, a partir de então, leitura obrigatória e “uma verdadeira ‘mina’ para o historiador” (p. 27)[6].

Situando sua obra, por um lado, na confluência entre a história e a antropologia religiosa, visando compreender antropologicamente o projeto missionário, e, por outro lado, a história colonial da época moderna (p. 21), a autora divide o livro em 5 partes que totalizam 11 capítulos, além da Introdução, do Epílogo e das Considerações Finais.

A primeira parte, intitulada “Uma ‘Visita’ da Província do Brasil” (dividida em dois capítulos), tem como fio condutor os documentos produzidos durante a Visita de Cristóvão de Gouvêa, escritos pelas autoridades centrais em Roma, por ele próprio, e por seu secretário e companheiro de missão, o padre Fernão Cardim. Busca-se conhecer a Província do Brasil, depois de trinta anos de existência, ao mesmo tempo em que se apresentam os mecanismos e regras da Visita. O Visitador tem a obrigação de percorrer a Província por inteiro e de prestar conta daquilo que viu à hierarquia, o que revela a preocupação em diagnosticar suas dificuldades e, também em fiscalizar a forma como as determinações provenientes do centro estão sendo aplicadas (ou não) na periferia. Apoiada nestes documentos, a autora nos apresenta a Província, delineando seus traços característicos como o reduzido número de religiosos, a distinção entre eles e sua configuração como um corpo hierarquizado em que pouco menos da metade dos membros está de fato voltado para a missão (aqui compreendida como a evangelização dos nativos). Apresenta-nos, ainda, os tipos de estabelecimentos jesuíticos existentes: os colégios, as residências e as aldeias de evangelização, destacando a centralidade dos primeiros, embora na origem a Companhia de Jesus houvesse sido pensada como uma Ordem itinerante que nada possuía de próprio. Ainda com relação a este último aspecto, a autora aponta a preocupação dos jesuítas com sua relação com a sociedade colonial e com a estratégia que deveria ser usada para a sua manutenção material na colônia, e que acabaria por levá-los, nos anos seguintes, a se envolverem com os negócios do açúcar. Esta decisão se constituiria em ponto de discussão bastante séria em seu interior. A análise que a autora procede a partir da documentação sustenta-se na compreensão de que o funcionamento da Companhia a caracteriza como uma “burocracia missionária” [7], pois faz-se através da hierarquização, do intercâmbio entre a Província e o Governo Central, entre uma periferia e o seu centro. Para tanto, imprescindível era a existência de um poder regulado pela formulação de regras escritas (p. 66). Desta forma, a correspondência é entendida como a chave para a compreensão do sistema.

Na Parte 2, “A Negociação de uma Norma Missionária”, também dividida em dois capítulos, a discussão centra-se no diálogo, compreendido como uma negociação, entre os religiosos da Província e seus superiores hierárquicos em Roma, acerca de como continuar a realizar a obra missionária no Brasil, tendo em vista a experiência anterior de trinta anos e as especificidades da Província. Através da Visita o Centro procura perceber como, nesta periferia, se aplica o que está normatizado nas Constituições e nos demais documentos da Ordem. Trata-se de analisar, em primeiro lugar, este trabalho normativo do Visitador Gouvêa que tinha a tarefa de conciliar o ideal missionário da Companhia com a realidade do Brasil, respeitando o “princípio da adaptabilidade” que caracteriza a própria formação/ organização/ doutrina da Ordem. O principal desafio desta normatização era justamente estabelecer um regimento jesuíta da aldeia, apontada por CastelnauL’Estoile como locus típico da província do Brasil para a evangelização dos índios, uma vez que estava centrada na idéia da sedentarização, da fixação dos religiosos e dos nativos em um espaço determinado (enquanto a idéia de missão pressupunha o deslocamento constante dos missionários). É importante relativizar esta afirmação da autora para dizer que, embora as primeiras experiências neste sentido tenham ocorrido no Brasil, a fixação das populações para a evangelização também ocorreu em outros lugares e em outros períodos na América, quando os missionários se defrontaram com dificuldades semelhantes para o encaminhamento de sua obra. A aldeia era considerada pela hierarquia superior da Ordem como um dos principais problemas desta vinha tão estéril, uma vez que expunha os religiosos a um convívio permanente com os índios, seus hábitos e sua lógica, o que em muitas ocasiões poderia colocar em perigo sua própria identidade como jesuíta (em especial no que respeitava à questão da castidade). Não apenas estéril, a vinha também era caracterizada como laboriosa e perigosa. Outra discussão importante nesta parte do livro diz respeito aos problemas relacionados com a política de aprendizado da “língua brasílica”, considerado no final do século XVI como indispensável para levar a bom termo a missão.

Na terceira parte, intitulada “O Lugar dos Missionários na Província” (dois capítulos), com base nos catálogos do pessoal da Companhia, que eram listas de todos os jesuítas da Província enviadas pelos superiores a Roma contendo informações sobre cada um deles, tais como sua origem, sua idade, sua condição de irmão ou padre, o tipo de estabelecimento a que estavam vinculados, cargos ocupados, domínio da língua brasílica, aptidões intelectuais, entre outros, a autora analisa o perfil dos religiosos, discutindo com mais detalhe o daqueles que são dedicados especificamente à atividade da evangelização dos índios [8] . A produção dos catálogos é lida por Castelnau-L’Estoile como mais uma evidência de que a Ordem funciona como uma “burocracia missionária” na medida em que se preocupa em estabelecer uma “política de pessoal”, que se pretende racional e eficiente. Tal ação sustenta-se numa “política de talentos”, a partir da qual se procederia a “repartição dos operários na vinha do Senhor” (p. 187) para atingir os objetivos religiosos propostos. Da análise destes elementos Charlotte conclui pela existência de um paradoxo no que concerne à política de pessoal da Província do Brasil, na medida em que os missionários assumem, ao mesmo tempo, um papel essencial (por dominarem a língua brasílica e serem aptos à comunicação direta com os nativos e por terem vocação e vigor físico para a tarefa) e marginal (na medida em que não têm, em geral, outros talentos, a não ser o domínio da língua, nem a formação intelectual prescrita pelas regras da Ordem, o que os leva a ocupar posições de subordinação na hierarquia da Província). Este constituiria um outro aspecto a revelar a ambigüidade da política missionária da Companhia de Jesus na periferia.

A Parte 4 se intitula “A Administração da Conversão” e também é composta por dois capítulos. Nela Castelnau-L’Estoile retoma a discussão travada na Parte 2 acerca da norma missionária na Província, especialmente no que respeitava à questão das aldeias. Como ela própria afirma na Introdução, busca aqui “o diálogo administrativo entre Roma e a Província sobre a conversão dos índios”, observando como “a lógica da instituição jesuíta de fidelidade ao espírito da Companhia se opõe à lógica da inserção na sociedade colonial e de certa autonomização da província” (p. 34). Todo o capítulo 7 é dedicado a expor tais controvérsias a respeito das aldeias, que remetem à questão do lugar que os jesuítas deveriam ocupar na sociedade colonial. Analisando as leis indígenas de 1595 (que atribuem aos jesuítas a administração temporal das aldeias) e de 1596 (que lhes retira essa faculdade), a autora apresenta não apenas o conflito, sempre presente, entre a visão dos colonos e a dos padres acerca dos povos indígenas e o tratamento que lhes devia ser dispensado, mas também o conflito entre a posição romana de condenação não apenas ao envolvimento da Ordem na administração temporal das aldeias, mas inclusive à existência delas enquanto locus privilegiado da evangelização, e a posição dos missionários da Província, sustentada no “princípio da adaptabilidade”, em sua defesa, o que, em outras palavras, significava também a defesa do princípio de certa autonomização da sua ação. O debate entre os superiores de Ordem e os padres do Brasil acerca do caráter da missão aflora na elaboração e na argumentação dos documentos analisados pela autora no capítulo 8. Na perspectiva local, a vinha não é caracterizada pela esterilidade, ao contrário, se tem dela a visão de “uma província em expansão, política e militarmente útil à colônia, de uma província plenamente missionária, onde os missionários se salvam ao salvar as almas dos índios (…). O projeto missionário é plenamente integrado numa lógica colonial” (p. 341). Nessa perspectiva, portanto, apesar de seus problemas, as aldeias ocupam lugar central na estratégia jesuíta. Uma palavra precisa ser dita acerca da pouca atenção que Castelnau-L’Estoile dá ao fato de que, mais do que a fixação dos nativos e dos evangelizadores num território específico, a aldeia jesuíta no Brasil tinha uma outra característica essencial nessa época: o fato de funcionar como reguladora da oferta de mão-de-obra indígena para a sociedade colonial. É por este motivo que a questão da administração temporal das aldeias se torna um dos principais focos de conflito entre os colonos e os padres.

Por fim, na última parte, a quinta, “Escrevendo a Missão”, a obra se debruça sobre textos jesuítas de caráter “literário” (que apresentam uma preocupação apurada com o trabalho da escrita), destinados a um público mais amplo. São assim analisadas no capítulo 9 as descrições do Brasil feitas por ou atribuídas a Fernão Cardim (1585) e Jácome Monteiro (1610), umas entendidas como “literatura de consolação” voltada para a edificação do espírito e, outras como textos destinados a saciar a “boa curiosidade” vigente no seio das camadas dirigentes e círculos letrados europeus acerca da colônia. No capítulo seguinte analisa três relatos de expedições missionárias feitas ao interior do Brasil: a de Francisco Pinto entre os Potiguar (1598), a de Jerônimo Rodrigues junto aos Carijó (1605) e, por fim, a de Luís Figueira em busca dos “Tapuia” do Maranhão (1609). Por fim, no décimo primeiro e último capítulo discute-se a gesta de uma historiografia missionária a partir da análise das biografias do Padre José de Anchieta escritas por Quirício Caxa e Pero Rodrigues na colônia, e por P. Beretarri (1617) em Roma. Essa é, sem dúvida, a parte em que a análise da autora se revela mais enriquecedora, mais cativante. Aquela em que atinge plenamente seu objetivo de demonstrar que “A escrita é para os jesuítas uma outra forma de ação; ela deve operar para aquilo que é o programa da Companhia, a maior glória de Deus. É nesse sentido que ela é inteiramente voltada para a edificação, essa construção espiritual que educa as almas” (p. 376). Também no que se refere a esses textos literários, Castelnau-L’Estoile ressalta o permanente intercâmbio entre o centro e a periferia, uma vez que aqueles elaborados na Província seguem para a Europa e lá são reelaborados, reescritos e difundidos sob a chancela da Ordem. Constituem, portanto, um todo que só pode ser compreendido levando-se em conta também os documentos administrativos. Essa observação é fundamental para os pesquisadores que com eles lidam como fontes isoladas. Nesse sentido, os últimos capítulos do livro revelam-se importantíssimos por indicarem percursos metodológicos mais adequados para se trabalhar com a documentação jesuíta. Por outro lado, ao penetrar nesses documentos, a análise de Castelnau-L’Estoile revela as categorias a partir das quais os jesuítas viam não apenas a missão e o seu papel nelas, mas também a si próprios. Para a maior glória de Deus é necessária a salvação das almas dos nativos, mas também e fundamentalmente a dos próprios religiosos. Esse é o papel da missão.

No epílogo, retomando as imagens iniciais das festas indígenas de recepção ao Visitador Cristóvão de Gouvêa a que Cardim se referia com vibração em 1585, a autora traça um painel impressionante das celebrações realizadas quarenta anos depois, em Salvador da Bahia (1622) por ocasião da canonização de Inácio de Loyola e de Francisco Xavier, os primeiros santos da Companhia de Jesus. Tudo na festa realça o triunfo da missão, a arte e a estética do espetáculo barroco fundado na abundância e na redundância, a propaganda que a Ordem faz de si mesma, o princípio da adaptabilidade presente na síntese vertiginosa que brota da narrativa da autora. Síntese colonial, mistura “dos gêneros profanos e religiosos, populares e eruditos” (p. 524), tudo está presente nessa cerimônia de celebração dos santos jesuítas, que é a celebração de preeminência jesuíta na sociedade colonial.

Como já colocamos anteriormente, Operários de uma vinha estéril deve tornar-se leitura obrigatória para os estudiosos do período colonial no Brasil. O leque de questões que levanta, a qualidade das análises realizadas, e a abordagem original que faz do projeto missionário jesuítico na Província do Brasil justificam plenamente essa leitura. Livro fértil, destinado a frutificar, tal como a vinha que nos apresentou. E, nesse sentido, no mundo em que vivemos, em que muito da influência da Companhia de Jesus ainda está presente, talvez a escolha do título não tenha sido a mais feliz. Que Acquaviva assim se referisse à Província do Brasil nos anos 1580 é plenamente compreensível, mas já em 1622 a celebração de Santo Inácio de Loyola e de São Francisco Xavier indicava a potência da cristianização, a força da missão. Já havia frutos a colher. Embora laboriosa e perigosa, a vinha não era tão estéril assim.

Notas

2. Ver CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

3. Charlotte de Castelnau-L’Estoile é, atualmente, professora da Université Paris-X Nanterre, desenvolvendo pesquisas relacionadas ao mundo ibérico e à América Colonial. Operários de uma Vinha Estéril foi defendido junto ao Doutorado em História e Civilizações da École des Hautes Études em Sciences Sociales (1999), sob orientação de Bernard Vincent. Esta edição brasileira foi traduzida da francesa Les Ouvriers d’une Vigne Stérile: les Jésuites et la conversion des Indiens au Brésil (1580-1620). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2000, 557 p.

4. Sobre esse tema consultar: FERLINI, Vera Lúcia Amaral. O Engenho Sergipe do Conde: contar, constatar e questionar. São Paulo: FFLCH-USP, 1980 (Dissertação de Mestrado em História). A obra analisa um dos principais engenhos mantidos pela Companhia de Jesus no início do século XVII no Recôncavo Baiano. De leitura obrigatória é também: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial – 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

5. São os casos, entre vários outros, dos trabalhos inovadores de: VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; MEDEIROS, Ricardo Pinto de. O descobrimento dos outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial. Recife: IFCH-UFPE, 2000 (Tese de Doutorado em História); ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2003.

6. Em 2004 a Editora Loyola (Rio de Janeiro), com o apoio da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura do governo brasileiro, e em parceria com a Petrobrás, reeditou a obra do padre Serafim Leite, em 4 volumes, ilustrados com fotografias de monumentos jesuítas ainda existentes no Brasil, acompanhados de um CD-ROM com as imagens da primeira edição.

7. Ressalta a compreensão da Companhia como uma instituição burocrática no sentido weberiano, como um “sistema em que o exercício do poder e o funcionamento geral da instituição repousam sobre uma produção ordenada, sistemática de documentos” (p. 65).

8. Sob a forma de tabelas, a autora disponibiliza, nos anexos do livro, as informações constantes no Catálogo de 1598 (p. 585-628) que podem ser de enorme interesse para outros pesquisadores.


Resenhista

Regina Célia Gonçalves – Doutora em História pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: reginacg@terra.com.br


Referências desta Resenha

CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Trad. Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 2006. Resenha de: GONÇALVES, Regina Célia. Ação missionária e identidade jesuíta na província do Brasil. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 15, p.189-196, jul./dez. 2006. Acessar publicação original [DR]

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