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Oliveira Lima e a longa História da Independência | André Heráclio do Rêgo, Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães

Lucia Maria Bastos P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães | Fotos: A Hora e CocFioCruz.br

Há uma intrigante expressão popular na língua inglesa que sempre desafia o sujeito na direção da curiosidade e da investigação. Cito-a aqui no original: “more than meet the eye”. Ao que tudo indica, trata-se de uma expressão idiomática cuja origem histórica é difícil de rastrear, mas que nos brinda com uma imagem deveras interessante e ilustrativa: a do olhar em movimento, que se desloca na direção de algo com a intenção de “encontrar” o que não lhe parece óbvio, o que pode ainda ser revelado, elaborado, e portanto compreendido.

Cai como uma luva, no meu humilde entender, para dialogarmos nesta breve resenha, acerca da imensa contribuição intelectual e historiográfica, que podemos despreocupadamente constatar em cada página da obra Oliveira Lima e a longa história da Independência, organizada por André Heráclito do Rêgo, Lucia Maria P. Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães.

A relação entre a expressão em inglês supracitada e a obra em questão pode ser comprovada sem maiores esforços: cada capítulo aparece diante de nós como um convite aos nossos olhos, para que estes busquem encontrar muito mais do que viam até o presente momento, sobre aquele que recebeu de seus contemporâneos o apelido de “Embaixador Intelectual do Brasil”.

Escrever sobre Oliveira Lima não é tarefa simples nem exercício para amadores. Requer leitura aprofundada e exígua pesquisa, seja no cotejamento documental e arquivístico, seja no debruçar-se sobre a história intelectual a partir de suas obras autorais (que a bem da verdade são de uma heterogeneidade de saltar os olhos, envolvendo temas que vão da história à filosofia, chegando inclusive ao teatro!) e levar igualmente em consideração aqueles que no passado recente já vinham dedicando- -se a uma certa hermenêutica deste grande pensador brasileiro. Trata-se portanto, de um trabalho que envolve no mínimo três caminhos metodológicos muito distintos, já que exigem o exercício braçal documental, a leitura e releitura atenta de toda a monumenta limiana, e o ouvido generoso para com a reflexão de comentaristas pregressos.

Soma-se a isso um último desafio. Por tratar-se de uma obra coletiva, há ainda o processo de reunião, por afinidade de temas e notório saber, daqueles que com seus textos darão concretude a este belo projeto editorial. Três organizadores de talento incontornável se dispuseram a tanto, e aí está o resultado: um livro que demonstra com cristalina clareza que em se tratando de Oliveira Lima, e dos estudos sobre o processo de Independência brasileira aos quais ele tanto se dedicou, há muito mais...

than meet the eye, ou seja, do que nossos olhos podem a princípio encontrar.

Igualmente difícil é a tarefa de resenhar um livro de tremendo alcance como este. A pletora de visões, as diferenças entre elas, as particularidades estilísticas de cada autor, tudo isso enriquece, ao mesmo tempo que torna excitante, embora penoso, a produção de uma breve resenha como esta. Este último adjetivo, deve-se ao fato de que a função de uma resenha precisa ser tão somente a de provocar no leitor a curiosidade necessária, para que este passe do resumo à própria obra resenhada, sem muitas delongas. Por isso escolher é necessário. Embora eu reitere que todos os autores deste livro foram impecáveis em suas mensagens e análises, peço ao mesmo tempo licença para abordar particularmente alguns deles, deixando ao leitor o deleite de descobrir, caso minha resenha atinja seu objetivo, outras peças preciosas deste formidável quebra-cabeças, cujo resultado final é um Oliveira Lima tão exitosamente revisitado.

A inserção dos diversos processos políticos ocorridos no Brasil joanino como rascunhos preparatórios da ruptura com Portugal, ocorrida a 1822, especialmente o movimento dos padres que desencadeou a Revolução Pernambucana de 1817, aparece como tema central da análise de André Heráclito do Rêgo, especialmente a partir do exame que faz o autor sobre correspondência trocada entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre em fevereiro de 1921.

Em capítulo de sua autoria, de nome “Oliveira Lima e a Revolução de 1817”, o autor nos garante que o interesse de Oliveira Lima pelos idos de 1817 era efetivamente precoce, já presente em uma obra do autor publicada em 1895, embora a carta a Freyre usada como ponto de partida do capítulo só tenha sido escrita 26 anos depois do lançamento de Pernambuco e seu desenvolvimento histórico. Há ainda uma interessante informação acerca da perspectiva de Oliveira Lima sobre a Pernambucana de 1817, o que demonstra a complexidade de um analista como ele: tudo indica, a partir da leitura do capítulo de André Rêgo, que ao mesmo tempo em que Lima valoriza, com efeito, o que ocorreu no Pernambuco joanino, faz ele igualmente uma certa crítica a seus limites no que se refere ao seu alcance nacional. Há de certo uma espécie de “ensaio democrático”, rumo a algo maior no futuro, porém aprisionado a um limite no que tange seu alcance, circunscrito a alguns “cérebros exaltados”, devotos zelosos de uma libertação americana ideal.

André aprofunda este argumento ao longo de boa parte do capítulo, ao apontar para a ausência de um idealismo absoluto nos diversos atores que compunham o drama revolucionário pernambucano. O êxito da tomada do poder pelos revolucionários – e aqui o autor dá voz direta a Oliveira Lima – foi possível em grande parte graças ao imobilismo do poder central na região, na pessoa do governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, e não ao arremate ideológico e estratégico propriamente dito dos sublevados.

Isto se torna ainda mais claro com o prosseguimento da leitura do capítulo, especialmente no momento em que nos deparamos com um argumento – no meu ver essencial para a produção de um outro olhar, menos romântico e mais realista sobre 1817 – trazido pelas mãos de Oliveira Lima/André Rêgo, qual seja, o de que havia no ambiente político revolucionário pernambucano um certo descompromisso de ação, ladeado por um quê de “doutrinarismo e desinteresse”. Mesmo assim saberemos com o decorrer da leitura, que Oliveira Lima retomará o tema de 1817 inúmeras vezes, especialmente com a obra-prima D. João VI no Brasil, publicada em terras brasileiras no ano de 1908. A imagem da Revolução Pernambucana como uma combinação de impulsos, amparados por uma percepção “jactanciosa” do hemisfério ocidental é talvez uma das pérolas trazidas pelo capítulo em questão.

O contraponto a esse esboço de uma certa percepção limiana, se dá mais adiante, quando André Rêgo, vitaminando o debate e o contraste, nos apresenta a visão de Gonçalo de Barros Carvalho de Mello Mourão, diplomata e historiador cearense, que compreende 1817 como um efetivo esboço de nossa libertação nacional. O que o movimento tinha de local em termos de disposições objetivas, tinha de “nacional” em termos de agenda política e projeto revolucionário. Almejava o Brasil, Portugal e o Algarve. Mesmo assim, o autor do capítulo nos alerta para defensores e detratores desse posicionamento sobre a Pernambucana, nos enriquecendo ainda mais ao longo de todo o seu texto, aos nos expor inclusive a análises mais contemporâneas sobre o tema, nunca deixando de privilegiar a perspectiva de Oliveira Lima (ou de sempre retornar a ela), e a maneira pela qual a mesma despertou paixões e reflexões.

Em meio a tantos autores excepcionais ao logo de todo o livro, deparamo- nos com o capítulo escrito por Lucia Maria P. Neves, de título “Oliveira Lima e o Império do Brasil: uma nova narrativa”. Com efeito, apenas o título já nos sugere uma certa reflexão acerca da riqueza ad in finitum dos objetos históricos. Embora haja reconhecidamente uma vasta historiografia sobre o Brasil Império (tanto de época quanto hodierna), ainda é possível recorrer a Oliveira Lima e extrair de sua obra novos recursos de análise e pesquisa sobre um momento já tão visitado por vários de nossos historiadores.

O próprio Oliveira Lima apresentado a nós pela autora do capítulo em questão, apontava para a necessidade de se preencher certas lacunas sobre a história da formação brasileira. Lucia Neves nos brinda com um artigo de Lima, publicado em 1909, onde essa necessidade é apontada com firmeza pelo pensador brasileiro, quando ainda atuava como diplomata na Bélgica. Antes mesmo da Revolução dos Annales, que definitivamente proclamará a necessidade imperiosa do diálogo entre a História e outros saberes, Oliveira Lima, neste documento das primeiras décadas do século XX que nos é apresentado, fala na necessidade de uma relação ainda mais íntima entre a História e a Geografia para a compreensão de um país da complexidade do Brasil. Estudos de demografia e de história social também aparecem neste mosaico metodológico apresentado por Oliveira Lima e revelado aos leitores no livro que ora tenho o prazer de resenhar.

No que se refere ao processo de Independência brasileiro, Lucia Neves recupera e reaquece a questão que nos traz Oliveira Lima sobre a natureza per se de nossa separação de Portugal. E é aqui que encontramos a crítica que faz o pensador e diplomata brasileiro sobre o problema do prejuízo romântico, causado pela noção de que nossa emancipação se deu a partir de um “desquite amigável”. Pode ter havido desquite; mas amigável? Embora não use as mesmas palavras, “há muito mais do que encontram os olhos”, poderíamos aferir, a partir do questionamento que faz o pensador sobre a fundação mesma do Império brasileiro.

A fim de que encontremos ainda mais de perto este Oliveira Lima, o capítulo em questão flui na direção de nos apresentar debatedores do quilate de Evaldo Cabral de Mello, prefaciador de uma obra essencial (como se todas as outras não o fossem igualmente) de Oliveira Lima O Movimento da Independência (1821-1822), em nova edição de 1997.

Ali, Lucia Neves faz uso da voz de Cabral de Mello para sustentar ainda melhor o argumento em torno de um Oliveira Lima que nos apresentou novos olhares sobre a nossa formação nacional.

Em “Manuel de Oliveira Lima: o epílogo da história comum de Brasil e Portugal”, capítulo escrito por Lucia Maria Paschoal Guimarães, encontramos o mesmo espírito de surpresa e fascínio diante de um Oliveira Lima tão atual quanto necessário.

Aqui, é a obra Dom Miguel no Trono (1828-1833) que chama a atenção dos nossos olhares. Editada em Portugal, graças aos esforços da esposa do pensador, D. Flora de Oliveira Lima, a obra é ainda hoje pouco circulada entre o grande público aficionado pela história do Império do Brasil, e por suas relações bilaterais com a antiga Metrópole. Encontramos no capítulo em questão a curiosa informação sobre a defesa dos direitos de D. Miguel, feita por Oliveira Lima em duas obras que se dedicaram ao tema, uma já citada em linhas acima, a qual vem somar-se D. Pedro e D. Miguel: a querela da sucessão em Portugal (1826-1828), lançada três anos antes do falecimento do intelectual brasileiro.

Embora Lúcia Guimarães afirme que essas obras ocupem um lugar relativamente secundário no conjunto grandioso da obra limiana, (inclusive com a observação de que nem Rubens Borba nem José Honório Rodrigues citam suas existências em algumas de suas publicações), não podemos deixar de reconhecer aqui mais uma peça surpreendente sobre a originalidade das reflexões históricas de Oliveira Lima. Outro ponto que nos chama atenção no capítulo: ambos os livros sobre o desconcerto entre os dois Príncipes faziam parte de um plano de sequenciamento à obra D.

João VI no Brasil, considerada por muitos, tal como já dito linhas acima, a obra prima do letrado.

O litígio dos Bragança, segue Lucia Guimarães, é investigado por Oliveira Lima a partir de uma perspectiva mais ampla, e me arrisco a dizer, muito cara hoje em dia a gêneros historiográficos mais contempo râneos como a nova história política, a história diplomática, a história das relações internacionais, e até mesmo a disciplinas periféricas à História, mais teóricas e mais próximas dos internacionalistas, como a análise de política externa (API). Explico-me: a autora do capítulo ressalta a singularidade da análise de Lima para além do problema entre os dos dois atores coroados, buscando compreender as repercussões do “embrolho familiar num cenário mais amplo.” A performance das potências do atlântico naquele período, a dinâmica da diplomacia europeia e o aparecimento de novos players no jogo político do momento, como os Estados Unidos de Andrew Jackson, tudo parece fazer parte de uma análise complexa, multifacetada e transconflitual.

O diplomata e cientista social brasileiro Paulo Roberto de Almeida nos presenteia com o capítulo “Um ‘imenso Portugal’? A hipótese de um império luso-brasileiro no contexto internacional do início do século XIX”. Uma grande questão orienta toda a análise ao longo das páginas do capítulo: a possibilidade de o Brasil ter assumido um lugar central na formação de um Império Luso-Brasileiro, tema precioso e contemplado não apenas por policy makers da diplomacia pombalina, como também por gênios do pensamento ibérico como o Padre Antônio Vieira.

O embaixador apresenta ao leitor um dado material interessante na tentativa de responder esta questão, qual seja, a primazia brasileira na provisão de recursos ao Tesouro real, para onde afluíam a extração de bens de natureza estratégica para a balança comercial portuguesa, como ouro e diamantes. Dentre outros fatores levantados pelo autor do capítulo, esse dado das nossas relações econômicas mercantis-coloniais poderia ter sido a base fundamental de um Império multicontinental, passando inclusive pela Pérsia, Arábia e Índia, e tendo o Brasil como seu centro maior de poder.

Os vultos de Hipólito da Costa e José Bonifácio de Andrada e Silva simbolizam no capítulo, o conjunto de estadistas devotados paradoxalmente a causa de uma Independência em movimento (e aqui a obra quase homônima de Oliveira Lima aparece pela letra de Paulo Roberto de Almeida) mas também a da criação, mesmo que apenas idealizada, de uma “unidade político-econômica, de escala mundial”, objetivada na concretude de um Império luso-brasileiro sediado no Rio de Janeiro. Com o objetivo de aprofundar a sua análise sobre o tema, o autor do capítulo prossegue nos oferecendo um conjunto de informações de fôlego sobre o que audaciosamente poderíamos chamar de uma breve história dos impérios, buscando compreender o projeto luso-brasileiro em questão, inserido em um contexto necessariamente conectado a dinâmica de outros projetos de poder, de natureza imperial e de alcance transcontinental.

Há conclusivamente um conjunto de argumentos muito interessantes apresentados por Paulo Roberto de Almeida na sessão do capítulo intitulada “A hipótese de uma união imperial no período joanino e na independência”. Aqui, o elemento de longa duração que encerra o projeto imperial luso-brasileiro é reforçado, recuando-se inclusive ao século XVI. A ideia de uma fragilidade potencial de Portugal no ambiente europeu surge em seguida como um elemento agregador e justificador de um ideal, presente por séculos na percepção estratégica atlântica portuguesa, e que de alguma forma fortalecerá o processo de interiorização da metrópole, ocorrido entre os anos de 1808 e 1821. O diálogo do embaixador que escreve o capítulo em questão com as obras D. João VI no Brasil e O Movimento da Independência, de Oliveira Lima, aparece aqui de maneira particular.

O encerramento desta resenha se propõe a mais um breve comentário: trata-se do capítulo “Oliveira Lima interpreta o Brasil (a propósito de um legado intelectual)”, escrito por Arno Wehling, e que precede o rico caderno de imagens que finaliza o volume. Neste capítulo, estrategicamente localizado no arremate do livro, Wehling discute especialmente a recepção da obra de Oliveira Lima a partir de diversos aspectos, mas especialmente no que se refere a sua diversidade. Para tanto, o autor do capítulo nos oferece dois caminhos: a diferença que nos traz a perspectiva de Oliveira Lima para compreensão do nosso passado, e a incorporação das conclusões do intelectual brasileiro em um corpo explicativo de natureza mais geral.

Na sessão de nome “Oliveira lima e a historiografia anterior – semelhança heurística, diferença hermenêutica” essas duas possibilidades são aprofundadas e discutidas detalhadamente, especialmente na descrição da dedicação de Oliveira Lima ao estudo aprofundado dos documentos históricos, e não a sua mera coleção: o diálogo entre heurística e hermenêutica como constituintes do conjunto da obra do intelectual brasileiro é aqui fortalecido e demonstrado nas páginas adiante, com o caso da biografia de D. João VI e os escritos sobre D. Pedro I e D. Miguel, trazidos a luz por Lima.

Há ainda um outro aspecto do capítulo em questão que o torna ainda mais essencial aos leitores: a “percepção sociológica” e a sensibilidade de Oliveira Lima no exame dos processos sociais, o que segundo Wehling pode ser verificado em quatro traços essenciais que marcaram a obra do intelectual brasileiro que dá título ao presente livro: “a história regional, a biografia, o comparatismo e a síntese histórica.” A carreira diplomática do autor é aqui evocada como um elemento capacitador desse olhar comparativo e abrangente sobre os processos domésticos brasileiros e sua relação concêntrica com esferas mais amplas, especialmente no ambiente das três Américas.

Naturalmente os cinco autores tão modestamente comentados por mim nesta resenha abreviada em nada esgotam a análise diversificada e inegavelmente sofisticada de todos os outros autores de Oliveira Lima e a longa história da Independência, obra que será despretensiosamente considerada um marco historiográfico em muito pouco tempo. A reunião de tantos devotos do saber e examinadores do legado de Oliveira Lima só poderá, portanto, ser o sinal mais evidente de sua relevância como intérprete de nossa nacionalidade, como gênio dos trópicos, como um dos maiores pensadores brasileiros de todos os tempos.


Resenhista

André Sena Doutor em História Política – UERJ. Email: andresena.marduk@gmail.com.


Referências desta resenha

RÊGO, André Heráclio do; NEVES, Lucia Maria Bastos P.; GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal (org.) 2021. Oliveira Lima e a longa História da Independência. São Paulo: Alameda, 390p. Resenha de: SENA, André. Muito mais que podem encontrar nossos olhos: novas e desafiadoras perspectivas sobre o legado de Oliveira Lima. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a.182 n.486, p.417-425, mai./ago. 2021. Acessar publicação originalv. [IF]

Itamar Freitas

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