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olítica, Razão e Desrazão: dimensões políticas e históricas do polo mínero-químico industrial de Catalão/Ouvidor (1962-1992) | Maria Cristina Nunes Ferreira Neto

Numa proposta de História Política, que transcende as questões político partidárias, a professora Maria Cristina Nunes Ferreira Neto, em Política, Razão e Desrazão, dimensões políticas e históricas do polo mínero-químico de Catalão/Ouvidor (1962-1992), busca elucidar o contexto social, econômico, cultural e até mesmo religioso que marcou as eleições municipais em Catalão, Goiás, em 1992. Esta cidade é um perfeito microcosmos, onde vários elementos históricos se tensionam: a guerra fria, o medo do desemprego, sentimentos religiosos, a ciência, a emergente organização partidária da esquerda, os clânicos grupos políticos locais, o irracional medo de comunistas e o caldo fervente que envolve todos estes elementos: o prenúncio da privatização da empresa Goiasfértil que desperta sentimentos contraditórios na população local.

O livro Política, Razão e Desrazão, publicado em 2019, pela editora Brazil Publishing, é uma adaptação da dissertação de mestrado homônima da autora apresentada em 1998, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob a orientação da professora Izabel Andrade Marson. A História Política sempre esteve presente na carreira da professora Maria Cristina Nunes: como em sua tese de doutorado, Política e Negócios: A trajetória de Theophilo Ottoni; na coordenação de projetos de pesquisa na PUC Goiás como “Trajetórias, Itinerários e Tramas: histórias de vida e narrativas políticas” e “Estudos em História Política: Estado, Representações Políticas e Poder”; na coordenação do grupo Estado, Poder e Imaginário: história das representações e práticas políticas”, entre outas atividades.

A política manejada pela autora passa pelas questões partidárias, posto que naquele momento histórico era de crucial necessidade entender as estruturas partidárias existentes, e havia, ao contrário de nosso tempo presente, uma mínima correspondência entre o nome da agremiação política e o espectro ideológico da mesma. O PMDB ainda tinha relações com o antigo Movimento Democrático Brasileiro, o PT estava construindo uma relação com a classe trabalhadora de Catalão e tinha uma relação sindical com os funcionários da Goiasfertil. Ainda fazia sentido estudar os partidos políticos a partir de seus estatutos e esta é uma frente de investigação histórica incontornável para quem queira entender o contexto político de Catalão na década de 1990.

Mas a autora não encerra suas investigações por aí. Esta é apenas a espuma visível. Em seu texto, ela mergulha no mar subconsciente das questões históricas. As escolhas políticas dos eleitores naquela ocasião não são regidas tão somente pela razão. Há sempre temores irracionais, no sentido de vislumbrar eventos sem a mínima possibilidade de implementação, como a “instalação do comunismo” e o “fim da crença cristã”. Também há possibilidades mais concretas, como o desemprego. E não se pode diferenciar o medo do possível do o medo do impossível. O sentimento é real, seja qual for sua motivação. Os candidatos têm de alinhar um discurso que organiza bem estas ideias contraditórias. Vence o pleito aquele grupo que melhor maneja tais sentimentos.

A história é uma trama muito difícil de desvendar. Para este mister foi necessário utilizar-se de muitos documentos escritos, mas também de documentos não escritos. “A história, faz-se com documentos escritos […] quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se, sem documentos escritos, se os não houver” (FEBVRE, 1989, p. 249, grifos nosso). A fonte oral foi o meio disponível para autora entender como se entrelaçam a “razão e desrazão” nesta trama. Para isto a autora entrevistou 20 pessoas1, entre políticos, engenheiros, trabalhadores e habitantes locais, como a senhora Maria Ferreira Basílio, proprietária do Mara Hotel que abrigou os primeiros técnicos da Metago, que testemunhou as dificuldades destes em se adaptar ao município goiano, pois eram considerados “forasteiros” pela comunidade local. Estes sentimentos, estas tensões, estes conflitos latentes (e a miúde às vias de fato) não poderiam jamais ser captados nos textos escritos, em anais de reuniões agremiativas. Acreditar cegamente nas fontes escritas para este tipo de investigação seria deveras ingênuo e anacrônico. A pesquisa da professora Maria Cristina é a aplicação prática do conselho de Lucien Febvre dado em 1949.

O recorte geográfico e temporal do livro tem alguns aspectos de micro-história. Há várias possibilidades de combinações de escalas em micro-história, desde biografias de personagens específicas, que normalmente não seriam tratadas numa história tradicional do século XIX, a observações de pequenos agrupamentos humanos. A micro-história não tem uma definição rígida de seu campo de estudo e de sua referência teórica, a bem da verdade, pois “é essencialmente uma prática em que suas referências teóricas são variadas, e, em certo sentido, ecléticas” (LEVI, 2011, p. 135). Mas uma característica, presente no livro, e em todos os empreendimentos de micro-história, é “uma descrição mais realista do comportamento humano” (LEVI, 2011, p. 137). Os interesses dos agrupamentos humanos cedem um pouco de espaço a sentimentos irracionais em Catalão da década de 1990 (quando a década de 1960 ainda se faz presente). Somente uma observação densa, aos moldes de Geertz, podem captar este espectro irracional.

A pesquisa, feita ainda na década de 1990, estava nesta janela de possiblidade que consistiu em: captar os vestígios destes sentimentos, destas ideias contraditórias (elas ainda estavam presentes); entender densamente este microcosmo de uma aldeia, que está se transformando aos poucos em uma grande cidade. Hoje, esta janela está fechada. Não há mais como outro historiador repetir o feito.

No primeiro capítulo a autora traça o contexto internacional e brasileiro da exploração de recursos minerais e como se deu a tensão entre a iniciativa privada e a iniciativa estatal na exploração deste tipo de atividade. Ao mesmo tempo que se fazia necessária a participação estatal, pois os empreendimentos minerais são de grande vulto e arriscados, havia toda uma desconfiança ideológica muito grande na participação do Estado. Foi neste contexto que o governo estadual, na gestão de Mauro Borges Teixeira, em 1962, fundou a estatal Metago (Metais de Goiás). “Com o Golpe de 1964, a situação da Metago e seus profissionais se complicou” (FERREIRA NETO, 2019, p. 57) e as tensões entre as necessidades econômicas e sociais com a ideologia do governo militar toma novas dimensões.

Uma das aplicações da exploração de minérios é na produção de fertilizantes. O minério de fosfato é um dos mais importantes insumos na produção de fertilizantes. Desde o século XIX, sabia-se que a região de Catalão era rica em minerais, dentre eles o fosfato. Houve uma comissão, chefiada pelo astrônomo, Luiz Crulz, que, em 1892, pesquisou e constatou na região uma vasta riqueza mineral que teria um grande valor industrial e “esperava a época do advento do progresso futuro do Estado” (CRULZ apud FERREIRA NETO, 2019, p 53). Foram encontrados vestígios de ferro, granito, mármore, cristal de rocha, argila, pedra de afiar, cal, pedra de rebolo, salitre, grés duro, kaolino e amianto (FERREIRA NETO, 2019, p. 53). No entanto, como naquela ocasião só o ouro despertava a gana exploradora, somente com a criação da Metago, em 1968, este potencial foi explorado.

No capítulo II é tratada a montagem do polo mínero-químico-industrial em Catalão. Em 1974, no governo Geisel, fora concedido à estatal goiana Metago o direito de lavra de certos minerais nos municípios de Catalão e Ouvidor. Em 1975, a Metago iniciou operações de lavra e beneficiamento de minério de fosfato, em nível semi-industrial. Foi neste contexto que se instalou o Complexo Mineral de Catalão/Ouvidor, que já começara contar também com a participação de empresas privadas, como a Mineração Catalão de Goiás S.A. No entanto, segundo opinião de grande parte dos geólogos envolvidos na situação a iniciativa privada apareceu tão somente em um segundo momento, quando a Metago já estava operando.

Tivemos muitas dificuldades com a falta de mão de obra especializada. Mas mesmo assim a Metago implantou laboratórios, treinou muita gente, montou laboratório de análise de vermiculita, que era o único do país; formou pessoas. Hoje algumas delas estão trabalhando em outras minerações, fora do Estado de Goiás, e esta mão de obra foi treinada na Metago. Esta formação de mão de obra promovida pela Metago na usina semi-industrial foi tão importante que 90% do pessoal que foi para Fosfago, foi treinada na semi-industrial. A Fosfago (atual CMOC – Chinese Molibdenium Corporation) era particular, não fez treinamento em investimento de mão de obra, simplesmente começou a pagar mais [entrevista do geólogo Iranildo Rodrigues Valença à autora] (FERREIRA NETO, 2019, p. 69).

Foi neste contexto que foi criada a estatal federal Goiasfértil que foi fruto de uma negociação entre a estatal goiana Metago e o governo federal. Segundo a autora, o negócio prejudicou a Metago, pois “seus direitos minerários relativos às áreas do Complexo Ultramáfico-Alcalino Catalão I foram ‘gratuitamente’ transferidos à Goiasfértil” (p. 76). Em outras palavras, a estatal federal criada, em 1978, era legatária do esforço empreendedor da estatal goiana. Na verdade, o governo militar já naquela ocasião queria a participação da iniciativa privada. Como a Metago não logrou êxito em achar um parceiro privado, esta foi a solução encontrada entre os entes federativos.

O capítulo III mostra a configuração política da região. Mesmo após os acontecimentos de 1964, a política local ainda se situava na polarização de duas famílias: a Netto e a Sampaio. Havia uma tensão muito grande entre uma administração racional da Metago e as famílias locais, tais como pressão para contratação de pessoal indicado na estatal. Como a Metago foi criada no governo Goulart, foi alimentada a noção que os técnicos da empresa seriam comunistas. A Goiasfértil, espécie de sucessora da Metago, também sofreu tais tensões. Há vários diálogos recuperados pela autora que demonstra bem esta tensão, como uma conversa que houvera entre o deputado federal Hélio Levi e o geólogo Iranildo Valença que chefiava a empresa no sentido de permitir a contratação de gente indicada pelos políticos locais. A partir do Governo Ari Valadão (1980-1983), mas se intensificando no governo Iris Rezende (1983-1986), o empreguismo se instalara com força (CARVALHO apud FEREIRA NETTO, 2011, p. 116), tanto na Metago como na Goiasfértil. Com efeito, a política local entra numa espécie de simbiose com as empresas.

Enfim, o epicentro do livro é o capítulo IV, que retrata o processo de privatização da empresa Goiasfértil, em 1992, quando todas estas condições históricas entram em efervescência. No governo Collor, foi anunciada a privatização da estatal, fato que despertou sentimentos contraditórios na população local. Em meio a esta tensão toda, ocorre também a eleição municipal, participando três coligações: uma do candidato João Sebba (PFL, PSDB, PL e PDC); a do Geraldo Martins (PDT, PSB, PC do B e PT); e do médico João Moreira (PMDB, PSC e PTR), o vencedor do pleito. É neste ambiente tenso que todas os elementos históricos tomam uma dimensão mais aparente. A cidade que crescera junto e com às estatais passava por um momento crucial. Os anos de 1962 a 1992 estavam condensados naquele momento.

A pesquisa da professora Maria Cristina Nunes, em 1997, captou tudo isto. O trabalho é uma grande oportunidade para quem quer entender o processo de criação de estatais na década de 1960 no Brasil, bem como o processo de privatização da década de 1990, quando o estado brasileiro assumiu os riscos de empreendimentos que não se sabia ao certo se lograriam êxito, para depois o capital privado investir com riscos quase nulos. É possível compreender como estruturas sociais sobrevivem aos mais variados contextos históricos, como as oligarquias familiares. E enfim também permite compreender como se formulam preconceitos, fobias e as tensões deles decorrentes. Razão e Desrazão: duas condições humanas inseparáveis.

Nota

1 Estas pessoas são: Antônio Miguel Chaud, Eci Vaz, Elias Cuba, Geraldo Martins, Haley Margon, Iranildo Valença, Jair de Melo, Jesus G. Melo, Joana Gomide Margon, João Carlos Aires, João Enéias Bretas Melo, Kalil Abraão, Maria Ferreira Basílio, Maurício Ferreira Basílio, Nain J. Elias, Osmar da Silva, Osmar P. Carreiro, Oswaldo Pereira Duarte, Wanderlino Teixeira de Carvalho, e Yusley Ferreira Neto.

Referências

FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Tradução de Leonor Santos e Gisela Moniz. Lisboa: Editoria Presença, 1989.

FERREIRA NETO, Maria Cristina Nunes. Política, Razão e Desrazão, dimensões políticas e históricas do polo mínero-químico industrial de Catalão/Ouvidor (1962-1992). Curitiba: Editora Brazil Publishing, 2019.

LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: A escrita da história, novas perspectivas (organização de Peter Burke). Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 2011.


Resenhista

Alexandre Prates de Campos Ribeiro – Graduado em História pela UEG. Mestre em História pela PUC Goiás. Doutorando em História pela UFG. E-mail: alexandre.ribeiro@goias.gov.br


Referências desta Resenha

FERREIRA NETO, Maria Cristina Nunes. Política, Razão e Desrazão: dimensões políticas e históricas do polo mínero-químico industrial de Catalão/Ouvidor (1962-1992). Curitiba: Editora Brazil Publishing, 2019. Resenha de: RIBEIRO, Alexandre Prates de Campos. Razão e irracionalidade no microcosmo político e econômico de Catalão (1962-1992). Revista Mosaico. Goiânia, v. 13, p. 232-235, 2020. DOI 10.18224/mos.v13i2.8447. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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