Olhar sobre a história das Áfricas: religião, educação e sociedade | Thiago Henrique Sampaio e Patrícia Teixeira Santos

A obra Olhar sobre a História das Áfricas: religião, educação e sociedade aqui resenhada é resultado de reflexões desenvolvidas pelo grupo internacional de pesquisa Fontes e Pesquisas sobre as missões Cristãs na África, arquivos e acervos, cuja coordenação no Brasil se dá pelas Professoras Patrícia Teixeira Santos (UNIFESP) e Lucia Helena Oliveira Silva (UNESP) e na parte internacional, pela Professora Elvira Cunha Azevedo Mea (CITCEM Universidade do Porto).

A coletânea foi publicada em 2019 pela Editora Prismas e organizada por Thiago Henrique Sampaio (UNESP), Patrícia Teixeira Santos (UNIFESP) e Lucia Helena Oliveira Silva (UNESP), agregando 17 artigos agrupados em duas partes: a primeira intitulada Missões e missionários no continente africano, a qual trata da história das missões dentro do continente africano e a segunda Patrimônio, Acervos e Religiosidade: práticas e representações das missões, que aborda as possibilidades de pesquisas com acervos, documentos, patrimônios e instituições missionárias.

O objetivo da coletânea é suscitar contribuições para o desenvolvimento de novas pesquisas na área de Estudos Africanos tendo como base os arquivos missionários, além de trazer novas possibilidades de reflexão através dos usos da história oral, das imagens e fotografias. Os artigos têm como finalidade ampliar os horizontes de pesquisa e buscam a compreensão das diversas agências dos africanos e suas respectivas interações com os processos coloniais. Ademais, apontam as negociações e resistências que podem direcionar para um olhar mais dinâmico do processo conjuntural da inserção da África na ordem colonial no século XX.

Devido a esses fins, a contribuição dos escritos agrega informações e debates para o público acadêmico, já que aborda discussões que podem produzir novas narrativas. Os debates auxiliam na historiografia referente ao tema em questão, pois fortalecem as possibilidades na área histórica, além de alargar a história religiosa para vastas áreas de pesquisa e inúmeros tipos de acervos pelos quais se pode compreender o impacto das missões em África.

Os ensaios apresentam discussões a respeito das missões cristãs em África e o seu papel na história do continente, especialmente nos últimos dois séculos. As missões fazem parte estruturante das religiões e carregam consigo os papeis universalistas de cada cultura, ideologia e cotidiano. Ao adentarem em territórios africanos, elaboram áreas de contato entre os missionários e os povos que ali residem, o que acarretou transformações culturais, sociais e políticas de diferentes formas, traduzindo cenários de conflitos que constituem aspectos elementares da formação histórica das áfricas e dos africanos. A complexidade e diversidade do campo religioso e missionário exige numerosos estudos e pesquisas que, com seus respectivos métodos e acervos particulares, buscam entender os aspectos de construção e representação de África, além de preencher as lacunas existentes a esse respeito.

A partir desta noção, a presente coletânea traz textos que analisam pontos diversos da história das missões, assim como dos percursos dos missionários. Além disso, abarca os discursos que foram elaborados com base nas missões através de seus próprios agentes e as ideias e imagens que influenciaram na construção das representações da África. São ensaios que unidos traçam um sentido conjuntural de incorporar e compreender a complexidade das relações que constituem o campo religioso em territórios africanos e seus respectivos habitantes. Os artigos também tratam das complexas relações de hierarquias e de controle dos indivíduos e corpos, que afetam profundamente a reordenação dos estados africanos após o fim do controle colonial.

Partindo para as análises dos ensaios, as temáticas do contato e mediação foram bastante abordadas pelo fato de formarem um aglomerado de comunicações e relações sociais que geraram transformações e modificações nos dois mundos em interação. Para explorar tais questões, Raquel G. A. Gomes expõe uma problematização a respeito destas investigações. Para ela, a perspectiva de que o empreendimento da missão e de seus agentes devem ser apreendidos por uma leitura verticalizante, ou seja, de dominação e subjugação é errônea, pois abordar a história das missões e da África dessa forma conduz a deixar de lado toda a apreensão de mundo feita pelo colonizado a partir de sua experiência com o colonizador. A experiência missionária pode ser compreendida de uma maneira muito mais ampla se ressaltar a troca, mediação e negociação. Para Gomes, a experiência da mediação envolve o reconhecimento de conflitos, além de abarcar compreensões que ressignificam as interpretações em disputa.

As zonas de contato são constituídas de conjunturas formadas por diversos elementos de transformações, alterações, mediações e conflitos que ajudam a pensar nas distintas experiências de interculturalidade que podem ocorrer dentro de um campo missionário em África. A esse respeito, as autoras Harley Abrantes Moreira, Fernanda Barbosa Lopes, Fátima Machado Chaves e Lucia Helena Oliveira Silva tratam especificamente destes processos em seus escritos, pois expõem que os movimentos que tentaram converter o outro, também trouxeram para dentro de si os aspectos culturais de determinado local, além de mostrarem a mediação entre as duas culturas e seus respectivos papéis na construção dos países africanos.

A experiência missionária em uma zona de contato africana pode provocar não apenas o surgimento de uma nova cultura religiosa em África, mas também alterar o cenário da cultura do próprio missionário: a partir do momento que os agentes religiosos são influenciados pelo contato com o outro, ocorre um processo mútuo de africanização da Igreja e, consequentemente, deles próprios. Aliado a isso, nota-se ressignificações da atividade missionária, que parte a favor do próprio povo da localidade em que estão situados em vez de servir a sua submissão destes, pois adquiriram traços da cultura de onde estão inseridos.

Ainda nesse sentido, um dos elementos fundamentais que se nota quando tratado da missionação são as ações de transformações locais, que acabam por influenciar na construção da cultura local e nas relações sociais, acarretando processos mútuos de alteração política ou social de ambas as partes. Os cristãos foram importantes agentes culturais do imperialismo e modificaram continuamente o cotidiano dos diferentes grupos étnicos. No entanto, o que se destaca são as dinâmicas derivadas desses contatos e mediações que culminaram no processo de independências de alguns países africanos. A ação de mudança de fé e adoção de um outro modo de vida aos africanos não contribuiu totalmente para o apagamento da cultura destes. A inserção do autóctone nesta cultura gerou novas interpretações do cristianismo sem apagar por completo sua essência local africana, e essas serviram de base e foram usadas no processo de luta para a descolonização. Assim, rompe-se a tradicional leitura que reserva ao missionário o papel de destruidor de culturas, restando as populações locais a posição de vítimas da história.

As zonas de contato também alteram o próprio conceito da cristologia. Quando observadas as diferentes sociedades africanas no século XX, nota-se os processos de apropriações e transformações envolvendo o cristianismo em África assim como a relação dos missionários cristãos estrangeiros com o surgimento do clero, dos religiosos, dos pastores, profetas e profetisas cristãos africanos. No processo de interiorização e do relacionamento com as estruturas sociais e das cosmogonias africanas, os conceitos de cristologia ocidental se africanizaram e se tornaram pontos fundamentais de fortalecimento dos diversos Cristianismos africanos que passaram a surgir e que, como dito, foram usados em processos de independência. As disputas e reinterpretações, embora tensas, ajudaram a consolidar formas próprias de ser cristão africano, como defendem Patrícia Teixeira Santos e Júlio Macuva Estendar.

As alterações nas dinâmicas sócio-políticas foram frutos das relações de envolvimento entre os dois mundos. No entanto, em um aspecto mais conjuntural, os temas das missões foram explorados através de fontes coloniais, como relatórios de governadores e boletins oficiais do governo português, com o objetivo de captar a dinâmica missionária dentro do espectro colonialista e como afetaram a conjuntura imaginária e política da qual envolve o território africano e seus respetivos habitantes. Além disso, a ação colonialista gerou representações de África e dos africanos que puderam ser capitadas através de análises envolvendo documentos produzidos pelas nações colonizadoras entre os séculos XIX e XX, sendo possível a compreensão de como eram tais imaginários. A exploração deste panorama político-religioso, com foco nos antecedentes históricos da independência e no comportamento das igrejas neste período, além das abordagens em territórios europeus, foi realizada por Emiliano Jamba António João, Elvira Azevedo Meal, Thiago Henrique Sampaio, Leandro Antonio Guirro, Lucas Schuab Vieira e Wellington Durães Dias.

O estudo das fontes governamentais permitiu a abordagem do aspecto colonial e sua perspectiva em relação a como as missões eram vistas e entendidas pelos governadores coloniais portugueses. Estas eram consideradas como condutoras da civilização aos africanos e na inserção desses no processo civilizacional através da preparação dos africanos para o sistema de trabalho capitalista. A ideia existente na época de que os africanos eram inferiores em relação aos europeus e a África desprovida de civilidade foi construída por diversos fatores e influenciada por muitos outros, como, por exemplo, a Exposição Colonial Internacional de 1931 em Paris, onde havia exposições etnográficas popularmente conhecidas como zoológicos humanos, executadas regularmente desde 1877. Situações como essas acarretaram a construção de imagens das nações europeias como berços da civilização e dotadas de uma missão civilizadora, responsáveis em inserir os africanos em seus moldes.

O processo de missionação alargou-se em diversos setores, envolvendo instituições, governos, sociedades e políticas. A obra dedicou um espaço para tratar da Igreja Católica em específico e sua relação com os territórios africanos, envolvendo seus discursos, representações e interferências nesses locais e suas repercussões no ocidente. Havia discursos construídos pela Igreja em torno dos religiosos, tanto europeus como africanos. Em relação aos últimos, as falas da instituição religiosa estimularam um comportamento subalterno em seus devotos, mas, por outro, demonstrou o que se espera da formação religiosos negros em territórios africanos, como se quisesse expor a finalidade de regenerar a África pela África, utilizando-se de seus habitantes. Ainda nesse sentido, o acompanhamento dos editoriais internacionais do L’Osservatore Romano, periódico oficial da Santa Sé, possibilitou observar cronologicamente os discursos da Igreja Católica quanto ao tema da paz e notar a atenção que foi dada a África nesse quesito. Tais estudos foram elaborados por Andréia Kelly Marques e Juliana de Paula Bigatão.

Questões teóricas e discussões a respeito da metodologia histórica envolvendo arquivos foram abordados na coletânea com os artigos de Odair da Cruz Paiva e Delcides Marques. A abordagem teórica buscou exibir os aspectos culturais que rondam o processo evangelizador, tais como a antropologia, etnografia e moral. A análise da inserção do missionário em um quadro de discussão entre a missão e a antropologia, evidenciou sua relação entre o divino e a ciência. A cultura foi tomada pelos missionários como um conceito, e a etnografia como um instrumento evangelizador. Utilizava-se da etnografia e antropologia como métodos de se entender os povos.

A abordagem da coletânea abarcou os múltiplos aspectos que compreendem o processo de missionação em África, tratando de sua relação com a questão internacional envolvendo o colonialismo, a dinâmica deste em paralelo com a instrumentalização das missões e suas finalidades em territórios africanos e evidenciou as alterações sócio-políticas e culturais ocorridas com sua inserção no continente. A seriedade da coletânea se encontrou em paralelo a importância de suas respectivas temáticas ao promover a relevância das problematizações documentais e científicas das fontes produzidas pelas instituições missionárias cristãs que atuaram em África, já que estas são fundamentalmente responsáveis pela gestão e administração da vida pública dos estados coloniais. As análises destes documentos permitem notar, por um lado, as diferentes produções das múltiplas agências missionárias e, por outro, os variados protagonismos dos povos africanos que estavam sob administração colonial. Esses aspectos podem contribuir para as reflexões acerca da história da África colonial e do período pós-colonial.

Considerando, no entanto, que a obra foi dedicada a história das missões em África, alguns artigos não tiveram este objeto de estudo como base de orientação de suas discussões, delegando a maior parte do conteúdo de seus escritos a análises paralelas, o que colocou a problematização da temática principal em segundo plano. São aspectos notados, mas que no geral não afetaram o propósito da coletânea, já que esta conseguiu captar e agregar as inúmeras relações envolvendo os processos da missionação nas áreas sociais, políticas, econômicas e culturais em âmbitos locais, regionais e internacionais.

Leonardo de Oliveira Paes –  Mestrando em História – Programa de Pós-graduação em História – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Universidade Estadual Paulista, “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Assis. Assis, SP – Brasil. Bolsista FAPESP. E-mail: leopaes1@hotmail.com


SAMPAIO, Thiago Henrique; SANTOS, Patrícia Teixeira; SILVA, Lúcia Helena Oliveira (Org.). Olhar sobre a história das Áfricas: religião, educação e sociedade. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: PAES, Leonardo de Oliveira. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.9, n.17, p. 132-137, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

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