Em 2010 completaram-se cem anos da morte do artista italiano Angelo Agostini, o caricaturista responsável por ilustrações em importantes periódicos que circularam no Brasil do século XIX, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na primeira cidade, seus desenhos foram veiculados em dois jornais, Diabo Coxo (1864-1865) e Cabrião (1865-1867).
Já na capital do Império, logo após sua chegada, em 1867, contribuiu em O Arlequim, transformado em A Vida Fluminense. Neste periódico se manteve até 1871, quando seus desenhos passaram a surgir em O Mosquito, do qual somente se retirou em 1875, para fundar, no ano seguinte, a Revista Illustrada considerada por muitos autores como o principal periódico ilustrado do Brasil no século XIX. Possivelmente até mesmo os pesquisadores que não têm interesse por jornais de ilustração já devem ter lido, em algum momento de suas pesquisas, a frase de Monteiro Lobato (1956, p.16) sobre a Revista: “Quadro típico de cor local era o do fazendeiro que chegava cansado da roça, apeava, entregava o cavalo a um negro, entrava, sentava-se na rede, pedia café à mulatinha e abria a Revista”.
Diante disto, nada mais justo que no ano de 2010 a memória e os periódicos nos quais Agostini atuou fossem revisitados. Isso aconteceu um ano antes, com a publicação da obra Poeta do Lápis. Sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888), de autoria de Marcelo Balaban. O livro resultou da tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas em 2005. Minha primeira leitura do trabalho de Balaban foi feita ainda na tese disponível na página da biblioteca digital da UNICAMP; agora tenho o prazer de ler novamente o seu trabalho em formato de livro.
Trata-se de uma biografia do artista nascido em 1843, que chegou ao Brasil em 1859 e acabou “estabelecendo-se por estas paragens pelo resto da vida” (BALABAN, 2009, p.27); no entanto, como destaca Balaban, ela foi realizada a partir da trajetória profissional de Agostini.
Em outras palavras, ele foi pesquisar nos periódicos que contaram com o lápis do artista as informações para a sua interpretação e construção da biografia. O autor explica que o personagem Angelo Agostini é enigmático, haja vista as informações esparsas a seu respeito. As páginas de ilustrações dos jornais elaboradas por Agostini apontaram o caminho definido por Balaban à feitura do seu trabalho. A tese, e agora o livro, não se resumem a esboçar a trajetória de Agostini, mas também analisam as relações entre a sátira e a crítica existentes nos desenhos com questões políticas, culturais e sociais do tempo. Nas palavras do autor: Sem querer buscar uma verdade a respeito de Angelo Agostini, o objetivo aqui é aprofundar o sentido do enigma que paira a seu redor e vasculhar um pouco das questões políticas, culturais e sociais do tempo em que viveu e atuou (BALABAN, 2009, p.25).
O autor aponta claramente seus objetivos e não foge a eles ao longo de seus capítulos. Exemplos disso são as escolhas dos temas tratados nos capítulos, como a Guerra do Paraguai e os escravos, tratado no capítulo 2 “Cenas Liberais”, ou a crítica do caricaturista à Questão Religiosa no capítulo 3 “Bandidos de roupeta”. Nesses capítulos a trajetória de Agostini é apresentada relacionada com os temas políticos que naquele momento estavam em plena efervescência. A análise de uma das ilustrações concebidas por Agostini, referente à Guerra do Paraguai, é primorosa e, concomitantemente, demonstra as escolhas metodológicas do autor. O desenho, intitulado “De volta do Paraguai”, trata do retorno de um escravo “voluntário” da Guerra do Paraguai, e foi publicado em A Vida Fluminense em 11 de julho de 18701. Após ter lutado em defesa da Pátria e da “libertação” do povo paraguaio das garras de um presidente tirano, é surpreendido com a visão de sua mãe sendo açoitada. As razões que podem justificar o porquê da elaboração desta ilustração por Agostini e quais suas intenções ao publicá-la foram discutidas por Balaban.
Novamente, nas suas palavras: Ao mostrar o retorno de um ex-escravo voluntário, Agostini monta uma cena inverossímil, definida por uma série de detalhes que evidenciam um herói de guerra sem pátria. O desenho, assim, aborda uma série de questões, entre as quais as alforrias feitas com o propósito de reforçar as tropas no Paraguai. O discurso nacionalista criado nos anos do combate, os problemas envolvendo a instituição da escravidão durante aqueles anos, o sentido e a importância da participação de negros na guerra e, em todos esses temas, o sentido da atuação do Estado durante os anos dos conflitos no sul são abordados nesta imagem (BALABAN, 2009, p. 108).
A análise dessa ilustração foi feita no capítulo II, sob o tópico “O regresso do voluntário”, e retomada ao seu final em “O escravo voluntário”. O autor revela, nesse instante, que o desenho é “definido por uma série de pequenos e significativos detalhes que dão origem a enigmas que tornam difícil a decifração da cena”, no entanto, o mesmo desenho permite levantar questionamentos sobre as razões de Agostini ao confeccioná-lo. Entre outras indagações, o autor interroga se o praça voltou “cheio de glórias”, como afiançava o caricaturista na legenda, ou foi apenas uma ironia do artista. Ainda, pergunta se tal escravo, um “novo cidadão”, se horrorizaria “diante de cena tão cotidiana na experiência do cativeiro”. Balaban, ao comentar esse espanto do escravo ao avistar sua mãe sendo castigada, analisa que o desenho assim concebido pelo artista foi uma ironia, um “recurso utilizado por Agostini para ressaltar o perigo potencial que o retorno de ‘voluntários’ negros representava”(BALABAN, 2009, p.210-214).
Essa ilustração é apenas uma entre várias outras que foram analisadas com eloquência pelo autor,porém, nesta resenha, ela serve para demonstrar que o trabalho realizado por ele seguiu uma escolha metodológica. Ao analisar o desenho interrogando-o, valorizando a legenda e os motivos de sua confecção pelo artista e considerando seus enigmas, ele não correu o risco de somente reproduzir o desenho para reafirmar ou ilustrar sua escrita – aliás, uma preocupação que é considerada importante pelo autor em sua introdução. Dessa forma, ele não republicou, de forma simples, a ilustração como realizada pelo caricaturista ao concebê-la no passado, uma vez que ocorreu uma problematização da temática tratada na imagem. Assim, a imagem também é definida como uma fonte possível de ser interpretada.
Caberia igualmente destacar o estudo realizado pelo autor no que se refere à construção da memória do caricaturista – memória elaborada conforme aquilo que se deseja lembrar,, portanto, marcar sua trajetória para o futuro, como a parte da vida do artista que deve ser esquecida.
Essa discussão foi realizada no primeiro capítulo do livro “A arte do poeta”, no qual o autor optou por iniciar a apresentação de seu biografado pela data de sua morte, o dia 23 de janeiro de 1910. Na sequência foi averiguado esse jogo entre memória e esquecimento a partir da imprensa, da historiografia, da família e da política do Estado Novo (em 1943 comemorava-se o centenário do nascimento de Angelo Agostini). Não aprofundo os comentários sobre essa relação nesta resenha, uma vez que prefiro deixá-la à apreciação de outros prováveis leitores do “Poeta do Lápis”.
O último capítulo do livro é dedicado à Revista Illustrada e à análise de alguns temas que figuraram em suas páginas, todos relacionados com a política do tempo. Ainda, é nesta parte do livro que o autor retoma um assunto importante da vida política do Império do Brasil, a questão da escravidão e a campanha abolicionista, discussão iniciada no capítulo I com a participação dos escravos “voluntários” na Guerra do Paraguai. Agostini colocou o seu lápis e a sua Revista a serviço da causa da libertação dos escravos, publicando ilustrações que abordavam de forma crítica essa temática. O autor destaca que a inclusão e a exclusão dos negros era uma questão que transcendia o debate a respeito da escravidão, o que organizou uma parte das discussões da vida política do Brasil no século XIX.
Marcelo Balaban, caminhando para sua conclusão, salienta que o tema da escravidão e os demais analisados ao longo de seu livro – as preocupações de Agostini com o recrutamento forçado durante a Guerra do Paraguai, os conflitos envolvendo regalistas e ultramontanos, clérigos e maçons e os conflitos de rua e no parlamento (tema igualmente abordado no capítulo IV) – demonstram que “a cidadania era um dos principais imbróglios trabalhados por nosso desenhista”(BALABAN, 2009, p.448). Esses pontos analisados pelo autor no seu livro são algumas dessas questões centrais que, como conclui, “darão o tom de grande parte dos desenhos políticos que Agostini produzirá no decorrer da década de 1880” (BALABAN, 2009, p.450).
Destarte, nada mais justo do que homenagear Angelo Agostini com a publicação do excelente estudo realizado por Marcelo Balaban.Assim, parabéns ao autor por, publicando seu trabalho, torná-lo disponível para um número ainda maior de leitores publicando-o.Parabéns igualmente ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura e à editora da UNICAMP, pela escolha em publicar a tese.
Notas
1. A ilustração de Angelo Agostini intitulada “De volta do Paraguai” foi publicada no periódico A Vida Fluminense . 11 jul. 1870.
Referências
LOBATO, Monteiro. A caricatura no Brasil. In: Idéias de Jeca Tatu. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.
Resenhista
Aristeu Elisandro Machado Lopes – Doutor em História. Professor da Universidade Federal de Pelotas/RS.
Referências desta resenha
BALABAN, Marcelo. Poeta do Lápis. Sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2009, 469p, Resenha de: LOPES, Aristeu Elisandro Machado. Diálogos, v. 14, n. 2, p. 431-435, 2010.
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