O islandês Snorri Sturluson (c. 1178 – 1241), em sua obra Heimskringla – especificamente no primeiro capítulo, a Ynglinga Saga –, nos descreve que na Ásia, ao leste de Tanakvisl, havia uma região conhecida como Asaland ou Asaheim e cuja capital seria conhecida como Asgard. E lá se encontraria o senhor de tal reino, cercado por doze sacerdotes responsáveis pelos sacrifícios realizados na cidade e em auxiliar seu soberano a executar a justiça. Este poderoso líder era um grande guerreiro que havia viajado por diversas terras, sido tão vitorioso e conquistado tantos reinos, que acreditavam ser impossível derrotá-lo. Era versado em magia, podia se comunicar com os mortos, entre outros feitos sobrenaturais. Segundo Sturluson, o nome desse líder era Odin, e dele descenderiam muitas linhagens de casas régias e heróis do norte europeu.1
Odin é personagem central de diversas fontes da Europa setentrional do período medieval. E sua imagem está intrinsecamente ligada à cultura e sociedade de origem nórdica até os dias de hoje, contando com produções artísticas e outros meios midiáticos onde a figura da antiga divindade é apropriada e remodelada, atendendo anseios de públicos diversos.
No campo acadêmico, especialmente a partir do século XIX, nunca faltaram trabalhos voltados à temática histórico-literária na qual Odin é representado. Dentre uma gama vasta de livros e artigos, apenas para citar alguns poucos, podemos lembrar aqui obras como a de D. E. Martin Clarke, The Hávamál (1923)2 ; de Hjalmar Falk, Odensheite (1924)3 ; as consagradas obras de Hilda R. Ellis Davidson, The Road to Hel (1943) e Gods and Myths of the Northern Europe (1964)4 ; de E. O. G. TurvillePetre, Myth and Religion of the North (1964)5 ; de Georges Dumézil, Du Mythe au Roman (1970) 6 ; isso sem mencionar muitos outros, inclusive traduções das Eddas e sagas onde o deus se faz presente. E recentemente tivemos a publicação da obra de Neil Price – um dos principais nomes na atualidade dentro dos estudos sobre a Escandinávia medieval – Odin’s Whisper: Death and the Vikings (2014)7. Entretanto, ao que parece, uma obra passou despercebida pelos olhos de muitos estudiosos e pesquisadores. Fato que atribuímos essencialmente à barreira linguística, uma vez que ele se encontra em dinamarquês.
Como Neil Price, a pesquisadora Annette Lassen (Universidade de Copenhagem) vem se destacando como um dos grandes nomes dos estudos escandinavos neste início do século XXI. Em seu livro, publicado em 2011 na Dinamarca, Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie 8, Annette Lassen realiza um maravilhoso trabalho no campo da pesquisa histórica e literária tendo o antigo deus nórdico como a personagem principal.
Dificilmente uma resenha poderá dar uma ideia exata da profundidade da pesquisa e da riqueza do livro de Lassen. Ainda assim, pode-se dizer – sem receio de estar cometendo qualquer tipo de exagero – que Odin på kristent pergament é uma obra que se destaca no que diz respeito à sua proposta e formato no campo de pesquisa em que se insere. Como é claro pelo título do livro, a autora se propôs a realizar um estudo sobre a figura de Odin tendo por base essencialmente fontes escritas de cunho literário. E o resultado final, a nosso ver, foi extremamente satisfatório.
Ao invés de um estudo mais convencional, puramente voltado à mitologia e à religiosidade, Annette Lassen optou por algo incomum. Primeiramente, o fato de realizar um levantamento de todo o corpo documental disponível entre as fontes primárias sobre o tema. Não se restringindo a limites geográficos e exclusivamente à história da Escandinávia, mas buscando por documentos em outras regiões em torno do Mar do Norte. Incluindo textos que, não raro os casos, passam despercebidos pelo olhar de um pesquisador mais desatento ou inexperiente – Adam de Bremem, as homilias de Æfric de Eynsham e até mesmo Geoffrey de Monmouth – revelando não só a presença da divindade em questão, como a importância de se estabelecer diálogos entre essas obras.
Além disso, a metodologia aplicada por Lassen9 não se dedicou a um Odin “original”, pré-cristão, como um Urtext, para então buscar por fontes onde indícios disso se fizessem presentes, para se chegar à reconstrução dessa personagem primordial que teria sido, supostamente, deturpada ao longo do tempo. O eixo de sua pesquisa foi o inverso: pensar na pluralidade da personagem de Odin, em suas mais diversas representações, como o ponto de partida, e então fazer o levantamento e análise de fontes existentes disponíveis. Para só então tentar, talvez, reconstruir sua possível configuração pré-cristã. O livro, assim, não é um trabalho investigativo numa tentativa de resgate da divindade pagã através de migalhas encontradas nas fontes escritas, mas um livro a respeito de Odin e como ele é representado em diferentes fontes do período medieval norte-europeu. O que temos não é simplesmente um livro sobre fontes documentais que tratam de Odin, mas um livro sobre Odin e fontes documentais onde sua imagem se manifesta e de que maneira isso ocorre. Onde a busca por sua originalidade pré-cristã não é descartada, mas é colocada em segundo plano em prol de uma maior compreensão da personagem no cenário sociocultural da Escandinávia medieval e da Cristandade europeia como um todo.
Para ter uma compreensão mais clara disso, seria interessante uma rápida leitura dos títulos dos capítulos que compõem o livro. Sendo assim, a seguir, realizamos uma tradução livre para o português dos mesmos:
Como podemos ver, a abrangência documental é ampla. Contudo, ela não se torna vaga, apesar de que a autora poderia ter se aprofundado mais em sua argumentação em alguns capítulos da obra: como, por exemplo, no capítulo três, acerca da ideia de “mito” e sua relação com as fontes escandinavas. Lassen estabelece a conexão entre os conceitos de mito, história e fábula, remontando à etimologia grega das palavras e seu uso na Antiguidade, passando pelas interpretações de Isidoro de Sevilha e conectando-as com as sagas durante o medievo, estendendo-se à interpretação dos mesmos pelo debate historiográfico e literário moderno na Escandinávia10. Porém, o capítulo acaba se tornando um tanto descritivo. Ocorre um princípio de problematização do assunto, mas isso não é levado adiante pela autora, restringindo-se apenas a uma introdução ao debate, focando numa abordagem etimológica e historiográfica. Indubitavelmente, a discussão sobre a relação entre mito e história e a construção do discurso dentro de uma narrativa histórico-literária é extremamente importante – para não dizer essencial – à proposta do livro, ao se levar em consideração a natureza das fontes utilizadas pela pesquisadora. Contudo, isso não compromete o trabalho de Lassen. Apesar de o capítulo três não se aprofundar especificamente no assunto, a problematização ocorre, mas ao longo do livro, utilizando-se da própria documentação que está sendo analisada em cada um dos capítulos.
Por outro lado, outras partes do livro, como os capítulos dois e treze, fazem valer o empenho da leitura da obra e o valor do trabalho realizado por Lassen. O capítulo dois é como uma introdução expandida do livro. Seu mérito está em abordar de forma geral a gênese dos estudos das fontes que serão utilizadas no decorrer do livro. A autora trata das primeiras versões e traduções realizadas das mesmas e, a partir disso, apresenta-nos um levantamento historiográfico claro dos principais tópicos relevantes ao tema do livro. Cobre um arco de tempo de quatrocentos anos – séculos XVII ao XX – discutindo as especificidades teóricas e metodológicas das pesquisas desenvolvidas em cada um desses séculos até à atualidade e conclui com uma abordagem geral sobre a didática da pesquisa histórica e a metodologia de estudo das fontes sobre a figura de Odin11.
Já o capitulo treze é um dos grandes exemplos da qualidade do trabalho de Lassen. Lembrando o parágrafo inicial desta resenha, o capítulo treze trata de uma das mais importantes fontes do período escandinavo: a Ynglinga saga. Inicialmente, Lassen identifica os trechos em que Odin surge no texto, como um tipo de sinopse12, e a partir disso desenvolve a análise da saga. A autora realiza exatamente o tipo de problematização que mencionamos anteriormente – ausente no capítulo três – ao demonstrar como a personagem mítica é apropriada e modelada dentro do discurso da narrativa, de forma a corresponder às estruturas mentais e as sensibilidades do período. O resultado da análise da Ynglinga saga por Lassen é muito interessante, ao demonstrar o processo de composição do discurso atrelado de forma intrínseca à visão cristã e “folclórica” 13 de mundo que o autor estava inserido na Islândia dos séculos XII e XIII, cujo resultado é a identificação da representação multifacetada de Odin na Ynglinga saga. Esta possui o que poderíamos apontar como traços de xamanismo, como líder religioso, figura mística diabólica, feiticeiro e ao mesmo tempo a análise da elaboração do discurso evemerista envolvendo a personagem14. Demonstrando a complexidade da fonte textual, Odin não é o deus pagão tradicionalmente evocado no imaginário popular moderno, mas uma construção histórico-literária que atendia a propósitos sociais medievais no campo das mentalidades.
E esse é o ponto chave do livro de Annette Lassen. Demonstrar essa complexidade nas fontes que o assunto envolve. Especialmente ao se entrar no debate a respeito daquilo que poderíamos chamar de pré-cristão e o que seria uma possível adaptação ou uma interpolação cristã do mito “original” da personagem de Odin.
A princípio, isso pode soar como uma não novidade para esse tipo de pesquisa. Realmente, desde os primeiros trabalhos voltados a textos como as Eddas ou – para citarmos um exemplo fora da Escandinávia – o poema anglo-saxônico Beowulf, que essa preocupação em identificar, diferenciar e separar o que seria “genuinamente” pagão e cristão faz parte dessa tradição de estudos histórico-literários. Entretanto, é a artificialidade e superficialidade dessa dicotomia, construída ao longo de décadas, que Lassen colabora em desconstruir com sua obra.
Segundo a autora, de forma alguma podemos ignorar ou subestimar os elementos cristãos presentes nas fontes, por serem características e indícios importantíssimos do período e do ambiente no qual essas obras surgiram, o que torna qualquer tentativa de se reconstruir a suposta “originalidade” da personagem de Odin extremamente complexa. E, baseado nas metodologias mais tradicionais – exploradas em maiores detalhes ao longo dos primeiros capítulos do livro (como, por exemplo, o segundo capítulo mencionado anteriormente) – essa tarefa é árdua. Em outras palavras, parece-nos que para Lassen as formas de análise e o tratamento dado a tais fontes, para a compreensão da figura de Odin, até então empregados, estão equivocados ou ao menos ultrapassados. Em função da variedade de textos existentes e as particularidades internas de cada narrativa ao representarem a personagem: ora como poeta, ora como líder e patrono de guerreiros, ora como um ser trapaceiro e maligno, ora como sábio, ora como o “Pai de Todos”, entre outros.
O que Annette Lassen demonstra é que uma das razões para tal pluralidade das representações de Odin está associada diretamente aos modelos interpretativos da época utilizados pelos autores, que por sua vez estão atrelados à tradição cristã medieval. Modelos que vão interpretar esse passado pré-cristão e suas personagens através de três enfoques principais e conhecidos: a) os deuses como heróis do passado erroneamente interpretados como divindades pelos povos pagãos; b) os deuses interpretados como demônios disfarçados, ludibriando os pagãos para que os venerassem; e c) a crença pagã como uma interpretação equivocada dos ensinamentos do deus cristão ou até mesmo o esquecimento desses ensinamentos, o que levou às superstições do paganismo.
A partir desses três modelos básicos podemos começar a compreender a construção da imagem de Odin nas fontes. Lassen, desta forma, chama nossa atenção para que tenhamos prudência com o assunto. Para a autora, ainda que existam discordâncias entre os pesquisadores, é essencial que haja o conhecimento e a análise dos elementos cristãos das fontes, antes de enveredarmos pela busca de evidências que indiquem o Odin pré-cristão “original”.
O pressuposto de que metodologias e abordagens mais tradicionais sobre o tema estariam ultrapassadas, ocorre pelo fato de elas realizarem o caminho inverso. Partirem de uma hipótese, de uma idealização do Odin da Era Viking (c. séculos VIII – XI) e anterior, e a partir disso – suprimindo o que seria cristão de maneira simplista e muitas vezes arbitrária – tentar identificá-lo (ou “encaixá-lo”) nos modelos das fontes que só surgiriam em séculos posteriores.
Entretanto, a autora não é a única a trabalhar com essa abordagem metodológica como nova proposta de pesquisa. Coincidentemente, no mesmo ano de 2011, o pesquisador norte-americano Stephen A. Mitchell publicou seu livro Witchcraft and Magic in the Nordic Middle Ages15. Ao analisar a presença e a representação de práticas mágicas na literatura, especificamente nas sagas islandesas, o autor segue uma linha de raciocínio semelhante à de Lassen. Ao invés de entrar no tradicional jogo argumentativo de como ou até que ponto tais fontes seriam válidas ou não para demonstrar evidências de práticas pré-cristãs, ele se concentra em demonstrar como as sagas, na realidade, mostram o que seus autores do século XIII desejavam que o público viesse a pensar sobre seu passado. Os indícios de práticas ligadas à bruxaria e similares estariam ligados a um passado “caricato”, fantasioso, como uma forma de representar o “outro” – o pagão, aquele que desconhece ou interpreta erroneamente o cristianismo – oposto ao presente e à sociedade da qual o autor fazia parte16.
No caso do livro de Annette Lassen, podemos dizer que a proposta de Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie é demonstrar como elementos oriundos da tradição cristã influenciaram a moldar nossa visão não apenas sobre Odin, mas nossa visão sobre a Escandinávia pré-cristã. Isso não significa que a ideia de um Odin pagão mitológico deva ser obliterada. De maneira alguma. Mas pensarmos que, tendo consciência do contexto histórico cultural do período de composição das fontes, ainda que a personagem tenha suas raízes na antiguidade pagã germânica, a partir da documentação literária, o que temos é um Odin fruto da tradição cristã e da cultura folclórica escandinava medieval, que pode ou não corresponder ao Odin “original”.
Notas
1 STURLUSON, Snorri. Heimskringla or The Lives of the Norse Kings, Nova York: Dover, 1990, p. 1 – 35. Ver também STURLUSON, Snorri. Edda, Londres: Everyman, 1987, p. 1 – 5.
2 CLARKE, D. R. Martin (trad. org.). The Hávamál. Cambridge: Cambridge University Press, 1923.
3 FALK, Hjalmar. Odensheite. Kristiania: Jacob Dybwad, 1924.
4 DAVIDSON, H. R. Ellis. The Road to Hel, Cambridge: Cambridge University Press, 1943; DAVIDSON, H. R. Ellis. Gods and Myths of the Northern Europe. Londres: Penguin, 1964.
5 TURVILLE-PETRE, E. O. G. Myth and Religion of the North. Londres: Weindenfeld & Nicolson, 1964.
6 DUMÉZIL, George. Du Mythe au Roman, Paris: Presses Universitaires de France, 1970.
7 PRICE, Neil. Odin’s Whisper: Death and the Vikings, Londres: Reaktion books, 2014.
8 “Odin no pergaminho cristão: Um estudo de texto histórico” (tradução livre de nossa autoria); o livro ainda, infelizmente, não possui tradução para outros idiomas.
9 LASSEN, Annette. Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanums Forlag, 2011, p. 17 – 21, 75 – 82.
10 LASSEN, Annette. Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanums Forlag, 2011, p. 83 – 88.
11 O que, em certa medida, nos leva a questionar a existência do capítulo três, sendo que ele poderia ter sido incorporado ao segundo capítulo sem grandes problemas.
12 LASSEN, Annette. Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanums Forlag, 2011, p. 240 – 244.
13 Ao usarmos a ideia de uma visão ou mentalidade “folclórica”, evocamos aqui em especial o conceito como apresentado por Jacques LeGoff em seu texto “Cultura Clerical e Tradições Folclóricas na Civilização Merovíngia” in LEGOFF, Jacques. Para um Novo Conceito de Idade Média, Lisboa: Estampa, 1980.
14 LASSEN, Annette. Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanums Forlag, 2011, p. 249 – 263.
15 MITCHELL, Stephen A. Witchcraft and Magic in the Nordic Middle Ages, Filadélfia: University of Philadelphia Press, 2011.
16 O que não se aplica às práticas mágicas e curativas populares, aceitas ou toleradas pelo pensamento cristão da época.
Resenhista
Elton Oliveira Souza de Medeiros – University of Winchester.
Referências desta Resenha
LASSEN, Annette. Odin på kristent pergament: En teksthistorisk studie. Copenhagen: Museum Tusculanums Forlag, 2011. Resenha de: MEDEIROS, Elton Oliveira Souza de. Signum- Revista da ABREM, v. 15, n. 2, p.187-194, 2014. Acessar publicação original [DR]
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