Objetos Inquietos | MODOS. Revista de História da Arte | 2018
Objetos e arte, arte e objeto… Estes termos-conceitos apareceram por muito tempo em situações de antítese, como se obras de arte não fossem objetos e como objetos fossem incapazes de serem artísticos. Dessa contingência, cristalizou-se a diferença entre objeto e obra, depreendendo-se que objetos eram para serem usados; pertenciam à ordem do material e eram produzidos por artífices; obras de arte estavam relacionadas ao espiritual; eram criadas por artistas e seriam próprias à visualidade, à distância, postura necessária à fruição estética. A historiografia da arte, na sua versão canônica, raramente procurou dissolver as distinções, mesmo que, desde o século XVIII, e principalmente no século XIX, algumas vozes procurassem estreitar as distâncias entre coisas realizadas por artistas e artífices (Diderot, Quatremère de Quincy, Ruskin, Morris). As histórias dos objetos acabaram por ficar a cargo de histórias das artes decorativas, do design, da cultura material, apartadas como apêndices ou corpos estranhos.
O termo objeto de arte (object d’art) insinuou uma aproximação. Contudo, pinturas e esculturas não são normalmente designadas como tal, mostrando o quanto a tentativa foi infrutífera. Basta percorremos sites de leilões e museus, buscar as categorias de objetos em oferta (expográfica ou de venda) para percebemos o quanto a categoria especifica uma certa tipologia de objetos, afeita a outras classificações como artes decorativas, artes utilitárias, artes mecânicas, artes industriais… Mesmo que o termo artefato, com aparição na língua inglesa em 1821, tenha ultrapassado a dicotomia objeto-obra, não foi suficientemente incorporado para os estudos da arte, permanecendo ainda a noção de objeto como o termo (termo-problema) mais disseminado nas discussões da história, teoria e crítica da arte.
A renovação da disciplina, sensibilizada por propostas advindas da arte contemporânea, a exemplo de Marcel Duchamp e seus ready-mades, e das aproximações com outros campos, como a antropologia e a cultura visual e material, permitiu outros olhares sobre os objetos e modos de abordá-los na história da arte. Tratar o objeto de forma alargada, como aquilo que é colocado à frente, faz com que qualquer objeto possa ser potencialmente artístico. Arte não se considera mais um dado, e sim dependente de uma série de fatores e contingências, passando a ser uma ideia em discussão. Produtores, consumidores, veiculadores, comerciantes, receptores, curadores, instituições, colecionadores passam a ser considerados, tanto quanto artistas e artífices, porque também são agentes na construção de sentidos dos objetos. Eles, os objetos, nesse sentido alargado, na medida que são de natureza errante e instável, raramente ficam parados no tempo e no espaço. Têm caráter dinâmico, transitam, migram, movem-se por muitos lugares e são dados a ver por meio de diversas situações.
As chaves de leitura tradicionais sobre os objetos (práticos, poéticos, cotidianos, artísticos, banais, excepcionais…) consideravam-nos na inércia, desenvolvendo-se poucas análises sobre seus movimentos, suas ações no espaço e no tempo, suas atuações no mundo, especialmente no campo da história da arte. Mas podemos pensar que a condição de imobilidade é uma situação temporária e o destino de muitos objetos é sua errância. Há inúmeros objetos inquietos, como há múltiplos modos de inquietude em objetos. Alguns, saindo da sua inércia, assumem uma lógica desordenada e imprevisível de atuação, assumindo uma identidade particular. Existem uns que, frente à sua potência poética em sobressalto, nos deixam atônitos, com a mente agitada, sem condições de nos manter passivos, fazendo-nos ver, ouvir, sentir de maneira incomum. Outros nos instigam a rever paradigmas, conhecimentos dados e visualidades datadas. Alguns fazem nos movimentar com eles ou pelo menos nos provocam mobilidade, ao circundá-los, penetrá-los, experimentá-los. Alguns nos incitam a nos movermos por destinos ainda não explorados, fazendo com que nossos corpos empreendam, necessariamente, novas posturas.
Certos objetos tiveram como destino várias paragens, reinventando-se a cada lugar ocupado e incidindo sobre a conformação do lugar, como se nunca conseguissem se acomodar em determinada situação. Isso também pode ocorrer nos enquadramentos classificatórios, quando os rótulos não conseguem dar conta da natureza múltipla e ambígua dos objetos inquietos. Sua inquietude também implica se manterem como enigmas, dificultando-nos decifrar aquilo que guardam e não dizem, que escapam às nossas indagações, ou se manterem como errantes ou metamórficos que, por sua propensão a mudanças constantes, de lugar e de aparência, atrapalham percebê-los em suas variantes.
A provocação do dossiê OBJETOS INQUIETOS foi a de invocar objetos que contassem histórias da arte diversas, a partir de suas biografias (ou autobiografias), seus percursos e performances, narrando suas inquietudes. Pequenos objetos dedicados ao amor, outros com penas, aves e insetos, objetos para colocar na cabeça, vestir, sentar, guardar, dividir, grandes e tridimensionais, pequenos e quase planares… Várias são as biografias aqui apresentadas e que protagonizam certos artefatos, que foram dados a ler de diferentes modos, convocando suas materialidades, simbologias e/ou transculturalidades. Suas histórias particulares também podem ser percebidas em revistas, na literatura, em telas, acervos, autorias, coleções, mercados de ate. No presente dossiê, poderão ser encontrados objetos que circularam nos seus desassossegos por diferentes territórios como Japão, Argentina, Etiópia, India, Itália, França, Espanha, Portugal e Brasil, entrecruzando-se e afetando olhares e sentidos sobre eles, na medida em que lidaram com diferentes temporalidades, realidades culturais, sociais e políticas. Mais do que as proveniências, foram as locomoções dos artefatos que aqui se fizeram destacadas, movimentações não só entre lugares, mas de saberes, sensibilidades, crenças, ideologias.
Objetos do período Nambam são explorados por Johannis Tsoumas, avaliando como as trocas culturais entre comerciantes e missionários cristãos portugueses com artistas e artesãos japoneses desenvolveram certa tipologia peculiar de peças, observando seus destinos e usos conforme os sujeitos envolvidos. Assimilação do outro, criatividade local, demanda comercial, acomodações formais e operacionais em técnicas tradicionais e ressignificações são questões levantadas ao acessar esses objetos produzidos no Japão, revendo os encontros e desencontros entre o que se convencionou chamar de Oriente e Ocidente. O trânsito de portugueses em outros mundos também é abordado no artigo de Helder Carita, ao atribuir à autoria de alguns desenhos e pinturas sobre cidades e costumes a José Maria Gonsalves, artista que vem sendo retomado em exposições recentes na Europa, que circulou entre Índia e Afeganistão nas primeiras décadas do século XIX, contribuindo para maior compreensão da arte indo-portuguesa. Hibridações artísticas se fazem notar por representações diferenciadas na figura humana, em detalhes e perspectiva, por reunião de gêneros de pintura (documental, costumes, paisagem), por práticas do ofício conforme demandas enfrentadas pelo artista na sua mobilidade entre diferentes realidades, afetando seus objetos de criação.
A alteridade se faz presente, quando diante do imperialismo colonial certos objetos são apoderados como trofeus de domínio. O chapéu de gala de Menlik e o trono de Hailé Selassié, trazidos da Etiópia para a Itália, são os bens culturais tratados por Monica Palmeri, interessada nas suas apropriações, em como foram veiculados nas revistas do período fascista e nas mudanças de narrativa conforme modos de apresentação e representação. O outro-exótico, que convoca um olhar que interroga visões locais, também diz da manipulação nas formas de tratar o objeto estrangeiro e dos meios ideológicos de sua significação conforme meios de exibição. Contudo, aquilo que se desloca de uma realidade cultural para outra pode fazer seu retorno ao lugar de origem, assumindo outras leituras. Com outra abordagem e temporalidade, Flavia Galli Tatsch discorre sobre os cofres de amor em marfim, enfatizando a trágica lenda de Píramo e Tisbe, a qual, partindo de Metamorfoses de Ovídio, sofreu variadas interpretações desde a Antiguidade até a Idade Média. Seu foco está na discussão do imbricamento das tradições orais, escritas e visuais para desenvolver as diferentes narrativas visuais que se apropriaram do mito no período medieval por artesãos franceses e italianos e como se comportaram para materializar as imagens de cofres de amor, confrontando questões próprias à iconografia, técnica e apropriação.
Biagio D’Angelo e Ana María Fernández García optam pelo papel como suporte para discutirem seus objetos. O primeiro faz uso da obra literária Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, a segunda apresenta publicações periódicas espanholas à época do franquismo. A emblemática narrativa proustiana instigou D’Angelo a repensar a representação dos objetos na obra, e com isso também na arte e na literatura, especialmente referente à estética do acúmulo, e sua potência de vir a ser sujeito-personagem, desvencilhando-se de seu tradicional papel acessório. Igualmente reflete sobre a relação entre acúmulo de objetos e discursos de memória, bem como os limites entre objetos e escrita, sugerindo, assim, encarar as páginas impressas da poética proustiana como uma imensa “natureza-morta literária”. Fernández García já dá preferência a outra narratividade dos objetos em situação, optando pela decoração de interiores veiculada em revistas e considera os diferentes discursos ideológicos envolvidos nos vários regimes fascistas na Espanha e como se reverberaram na divulgação de móveis e espaços de moradias. Nos periódicos especializados, diante de seus títulos, seções, conteúdo e público-alvo, pode-se notar ora a tendência a opções nacionalistas, ora a abertura para o mercado internacional, revelando como escolha e tratamentos dos objetos no espaço estão em estreito diálogo com contingências políticas, além de gostos e estéticas próprios.
Ainda diante do universo doméstico e familiar, é a vez de encontrarmos com os bichos de estimação. Entre afetos e memórias, os objetos materializam repositórios de lembranças e Patricia Telles nos traz um objeto da camada do privado: o retrato em miniatura de um gato – Micetto. Pintura diminuta sobre marfim, envolta em moldura de pedra semi-preciosa e embutidos em prata, cujo dono, literato e diplomata brasileiro residente em Roma, mandou-a executar em 1917, mesmo que a prática das miniaturas já tivesse caído em desuso. O resgate de um gatinho é mote para refletir sobre a prática das miniaturas, as oportunidades da vida diplomática com realidades distintas e as escolhas por certas modernidades para imortalizar afetos a animais. Diferente de representar bichos, preservando estimas, Maria Cristina Volpi nos apresenta outro caráter do uso de animais: a prática de transformá-los em objetos para fins decorativos e vestimentares, tão em voga no século XIX, com produção significativa no Brasil. No caso da arte plumária, partiu-se de uma prática indígena para se transmutar em outros objetos, com adaptações técnicas, simbólicas e formais, de modo a saciar as demandas europeias por produtos exóticos civilizados. Bichos mortos ou parte deles se configuravam como objetos de outra natureza-morta, morta de fato. Também tratando do universo dos mercados, Vera Mariz aborda o mercado de arte português e brasileiro nas duas últimas décadas do século XIX e como os objetos se faziam circular entre vendas e compras, satisfazendo colecionadores, a partir da análise do agente de mercado José dos Santos Libório e sua atuação em Lisboa e Rio de Janeiro.
A Vitoria de Samotracia, por meio de duas cópias em gesso provenientes do Louvre, ganha biografia particular em texto de Milena Galipolli, que discute a inserção das esculturas em espaços institucionais distintos (Escola Superior de Belas Artes e Museu de Belas Artes), em Buenos Aires, Argentina, e que lhe conferiram diferentes significados de mediação com o passado: seja como consolidação de um arte contemporânea de qualidade, seja como instrução sobre uma arte longínqua no tempo e no espaço. Outra escultura emblemática é tratada por Diego Souza de Paiva, cujo artigo aborda a trajetória de uma cópia do David de Michelangelo, que veio a se integrar ao acervo do Instituto Ricardo Brennand, situado em Recife, Pernambuco. Encomendada em um ateliê italiano para decorar o jardim de um restaurante em Curitiba, a peça foi alvo de diversas críticas até ser leiloada e adquirida pelo colecionador pernambucano, passando por uma verdadeira metamorfose e construindo para si outros sentidos. Consideradas em suas biografias e a partir das questões que mobilizaram, as cópias tratadas por Galipolli e Paiva permitiram discutir outras narrativas da história da arte, observando o quanto seus sentidos estiveram interligados com suas trajetórias, localizações e usos. Objetos nada quietos.
Diante de todas essas narrativas, podemos concluir que objetos são bem mais do que objetos de uso, são inquietudes materializadas em coisas, sejam por suas formas, por suas iconografias, por seus materiais, por suas recepções, promoções, seus trajetos, suas representações e potências ideológicas, mas especialmente pela maneira com que são tratados, pensados, historicizados – com inquietudes. Objetos inquietos envolvem olhares agitados que, por sua vez, demandam compreensões sacudidas e esperam narrativas em desassossego. Assim, esperamos que os textos selecionados possam deixar os leitores também inquietos e permitam revisões no modo como olham e consideram os objetos.
Organizadores
Maria João Neto
Marize Malta
Referências desta apresentação
JOÃO NETO, Maria; MALTA, Marize. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 2, n.2, p.137-141, maio/ago. 2018. Acessar publicação original [DR]