O Vestir e o Despir na História | Veredas da História | 2020
Em 2020, o contexto pandêmico transformou radicalmente nossa forma de relacionamento com os outros e nos condicionou a utilizar cotidianamente acessórios corporais antes usados de modo esporádico, tais como luvas, máscaras faciais, álcool em gel, face shield, entre outros. O uso destes objetos, ainda que instituídos de forma obrigatória para acessar determinados locais, dada a conjuntura sanitária, nos fez (re)pensar sua função social no espaço global. É interessante indicar que há um século, por volta de 1918 a 1920, a gripe espanhola também condicionou grande parte da população mundial às novas formas de se relacionar com os demais, bem como impôs acessórios com a finalidade de proteção contra a doença que foram absorvidos pelos movimentos da Moda, tornando-se tendências momentâneas.
Para além destes objetos pandêmicos e de suas apropriações, também podemos refletir os movimentos da Moda neste e em outros séculos, e os usos de certas indumentárias e acessórios por parte de indivíduos que, em micro ou macro escala, provocaram manifestações das mais diversas.
O caso dos vestidos utilizados no ensaio fotográfico feito pelo cantor Harry Styles para a revista americana Vogue, na última edição de 2020, ou o estilo de se vestir despojado da primeira vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, podem ser citados para analisar os movimentos da moda e os processos de (re/des)construções política, econômica e cultural ao longo da História. Os trajes usados na posse presidencial estadunidense deixam muito explícita essa forma de pensar a importância da cultura das aparências. As vestes parecem ter sido pensadas para expressar uma ruptura em relação ao conservadorismo do líder anterior, Donald Trump. Kamala Harris usou um conjunto roxo de um jovem estilista negro em ascensão, Christopher John Rogers, o qual já vestiu também Michelle Obama. O colar de pérolas que acompanhou o look é do designer porto-riqueno Wilfredo Rosado. Por sua vez, a primeira-dama Jill Biden optou por um conjunto azul da americana Alexandra O’Neill, a qual incentiva o consumo sustentável na moda e a redução do desperdício. Michelle Obama, na mesma cerimônia, optou por um conjunto sofisticado em tom de roxo do criador Sergio Hudson, também negro. Ambas fizeram uma clara referência ao lilás, o qual inspirado na nobreza inglesa era uma das cores do movimento das sufragistas no final do século XIX e início do século XX. O presidente Joe Biden e o marido de Harris, Doug Emhoff, optaram por ternos Ralph Lauren, um dos ícones da moda do final do século XX, que desde a década de 1990 passou a ver a diversidade e a inclusão como elementos essenciais para a imagem da marca. A cantora Lady Gaga (Stefani Joanne Angelina Germanotta), convidada para cantar o hino estadunidense, trajou um vestido azul marinho e vermelho da Maison Schiaparelli, aliado a um broche dourado simbolizando a paz, afirmando que deseja a união para um país polarizado. Já a cantora JLo (Jennifer Lynn Lopez) optou por peças brancas da Chanel remontando de igual modo à luta feminina nos anos 1920. Portanto, a escolha das roupas foi arbitrária e buscou respaldo em importantes pautas sociais. Para alguns, uma expressão dos objetivos do novo governo. Para outros, apenas uma jogada de marketing. Independentemente da análise escolhida, os trajes do evento podem e devem gerar múltiplas análises sobre esse momento histórico.
As reflexões sobre o papel da Moda enquanto veículo de expressão dos mais diversos discursos culturais, políticos e econômicos tem sido objeto de pesquisas em diversos campos de produção acadêmica no Brasil ao longo das últimas décadas. Se por um lado as vestes podem ser vistas como uma maneira de padronizar os indivíduos em práticas e discursos homogeneizadores que escondem a natureza do próprio corpo e dos desejos individuais, por outro podem ser enxergadas como veículo de expressão do self, de questionamento dos padrões excludentes ditados pela sociedade e de resistência em diferentes situações de opressão.
Sendo assim, trazemos ao público leitor os artigos que compõem o dossiê temático O Vestir e o Despir na História. Nossa proposta foi a de agrupar pesquisas que dialoguem, analisem e reflitam sobre os diversos códigos visuais e simbólicos a respeito das representações de gênero, do corpo, das roupas e de suas imagens projetadas no tempo e no espaço histórico como forma de ampliarmos e divulgarmos o conhecimento científico-social. A tônica que conduz a compilação é o caráter interdisciplinar e a pluralidade de objetos. Temas como a indumentária medieval, as cortesãs venezianas no século XVI, a construção da imagem pública de Maria Antonieta, o uso subversivo de indumentárias “masculinas” por mulheres no século XIX, a interseções entre gênero e raça no vestuário das negras de ganho nos oitocentos, os estudos de trajes italianos de Victor Meirelles, as imagens da moda, os poderes biopolíticos impostos ao corpo, os usos e desusos de artefatos vestimentares, as masculinidades e feminilidades e suas performances e representações foram os assuntos que, reunidos nesse dossiê, lançam novos olhares sobre os movimentos da Moda e suas relações presente-passado em dinâmicas sociais diversas. Pesquisadores que vêm da História, do Design de Moda, da Comunicação, entre outras áreas, nos apresentam múltiplas possibilidades de se pensar a relevância da cultura das aparências enquanto um dos caminhos privilegiados para se pensar a história das sociedades.
Seja vestida(o) ou despida(o), desejamos uma boa leitura!
Organizadores
Everton Vieira Barbosa – Doutorando em História pelo PPGH-UFF com estágio de pesquisa na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Bolsista CAPES. Autor do livro Páginas de sociabilidade feminina: sensibilidade musical no Rio de Janeiro Oitocentista.
Paulo Debom – Doutor em História Política pelo PPGH-UERJ. Docente da Escola de Artes do Centro Universitário Celso Lisboa. Organizador e coautor do livro A História na Moda, a Moda na História.
Referências desta apresentação
BARBOSA, Everton Vieira; DEBOM Paulo. Apresentação. Veredas da História, v. 13, n.2, p. 5-7, dez. 2020. Acessar publicação original [DR]