Nas últimas décadas, sobretudo após o desmembramento da URSS, muitos críticos do marxismo alçaram sucesso editorial. Não foram poucos os que, assim como Francis Fukuyama, declararam “o fim da História”. O que se seguiu foi uma recusa às abordagens e aos conceitos que adotavam uma interpretação a partir das estruturas socioeconômicas e da categoria de “classe”, para uma divisão das pautas sociais e temas que movimentos políticos, mais individualizados e fragmentados, apropriaram-se a partir de uma perspectiva liberal. Nessa conjuntura, certos clichês acadêmicos foram repetidos à exaustão, a ponto de perder sua base crítica. Reducionismos recorrentes acerca do marxismo defendiam que essa corrente de pensamento seria economicista, determinista, eurocêntrica e teleológica.
Novas pesquisas e trabalhos de divulgação buscam contribuir para o campo teórico do marxismo, que sempre se mostrou muito rico em argumentos socioeconômicos e em percepções histórico-conjunturais. É nesse sentido que o trabalho O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2018, do sociólogo e filósofo italiano Marcello Musto, é essencial para fortalecer os campos de pesquisa das humanidades, sobretudo a pesquisa histórica, com o propósito de superar os limites impostos pelos chavões já mencionados.
O italiano Marcello Musto é doutor em Filosofia e Política pela Universidade de Nápoles e em Filosofia pela Universidade de Nice. Este, pouco conhecido pela comunidade acadêmica brasileira, atua nos campos da filosofia, da sociologia e da história da internacional e do movimento operário. As suas obras estão publicadas em mais de vinte idiomas. Nas contracapas de dos livros de Musto, intelectuais de reconhecimento internacional, tais como Michael Löwy, Bertell Ollman, Toni Negri e Immanuel Wallerstein, deixam suas impressões e elogios. No Brasil, além da biografia O Velho Marx há, à disposição do público leitor, uma antologia política da I Internacional publicada pela Editora Boitempo.
A contribuição da obra de Musto é apontar possibilidades para os dilemas atuais a partir resultados de sua pesquisa de teor historiográfico e com fontes primárias a respeito do “último” Karl Marx ou de um Marx “maduro”, tal como destacam alguns de seus comentadores. No prefácio, o autor faz os apontamentos sobre a sua documentação a partir da edição histórico-crítica das obras completas de Marx e Friedrich Engels, a célebre Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA²), reiniciada em 1998. Ao longo dos quatro capítulos é reforçada a importância do autor de O Capital nos seus últimos anos de vida, a sua intimidade, sua saúde, suas cartas e suas leituras no começo da década de 1880. É uma obra curta, leve e de leitura agradável.
Aos leitores é apresentada a vida de um intelectual que se interessou por antropologia e literatura, que viajou para Argel e que se colocou contrário à dominação imperialista britânica na Índia. Além de retratar a posição crítica de Marx a respeito da fatalidade histórica e da teleologia determinista dos economistas liberais, é apresentada a crítica de Marx à ideia de “etapismo” como condição para a sociedade socialista ao se tratar das comunas rurais na Rússia. Nesse livro, Marcello Musto apresenta como Marx compreendeu a relação do capitalismo com a organização familiar patriarcal e monogâmica.
Conforme a biografia, nos três últimos anos de vida do Mouro (Marx), ele já se encontrava exausto pela velhice, com “terríveis furúnculos” e uma das pernas enrijecida pelo reumatismo. A sua esposa, Jenny Von Westphalen (1814-1881), encontrava-se em condições ainda piores devido a um câncer que se agravou, subitamente, entre 1880 e 1881. Mas, apesar das dificuldades familiares e de saúde, Marx ainda se mostraria muito produtivo e inovador.
Marcello Musto salienta que, por meio da análise dos manuscritos, cartas e fichamentos de seus estudos, é perceptível o interesse de Marx por temas diversos e multidisciplinares, o que mostra ser, portanto, contrário à velha caracterização de “economicista”. As pesquisas demonstram o interesse de Marx pelo campo da antropologia, sobretudo, a partir de seus Cadernos etnográficos e de vários outros “cadernos de apontamentos e sínteses de uma quantidade enorme de volumes de matemática, fisiologia, geologia, mineralogia, agronomia, química e física”.
O livro O Velho Marx é estruturado em quatro capítulos, sendo cada um deles subdividido em três partes. Além desses, a obra contém um prefácio, uma nota do autor, um prelúdio, um epílogo, um apêndice, uma breve cronologia (1881-1883), uma bibliografia e um índice onomástico. Trata-se de um livro relativamente pequeno, de 160 páginas, mas com um conteúdo rico em informações narradas de modo dialético e mediadas por um conteúdo denso e estilo agradável. Essa biografia, embora possa não surpreender os especialistas que, porventura, tenham se debruçado sobre a documentação original e os manuscritos oitocentistas, poderá impressionar aqueles críticos do marxismo que insistem nos estereótipos anticomunistas e no reducionismo dessa tradição do pensamento crítico, nas palavras de Musto, “ao mero desenvolvimento das forças produtivas”.
No primeiro capítulo, O Fardo da Existência e os Novos Horizontes de Pesquisa, o autor apresenta ao leitor o cotidiano de Marx, bem como as diversas impressões e representações de pessoas que frequentavam a casa da família de Marx. Os trechos mais notáveis são os destaques de outros interesses intelectuais do Mouro, tais como a antropologia, a matemática, a literatura, a língua estrangeira e a política internacional. A respeito desse último ponto, Marx se definia como “um cidadão do mundo” e, enquanto tal, refletiu acerca das transformações sociais ocorridas nos Estados Unidos; da opressão colonial na Índia; do seu apoio a causa feniana na Irlanda; além das análises econômicas e políticas sobre questões vividas em Inglaterra e França.
Marcello Musto destaca que Marx se mostrou um leitor crítico de autores da antropologia, como Lewis H. Morgan, James Money, John Phear e Henry Maine. A partir dessa literatura, o Mouro escreveu um compêndio de anotações chamado de Cadernos Etnológicos. Nesses manuscritos está demonstrado o interesse de Marx por assuntos como “a pré-história, o desenvolvimento dos vínculos familiares, as condições das mulheres, a origem das relações de propriedade, as práticas comunitárias existentes nas sociedades pré-capitalistas, a formação e a natureza do poder estatal, o papel do indivíduo”. Assim como, são evidentes as percepções racistas daqueles antropólogos e historiadores acima mencionados, o que foi chamado de “os efeitos do colonialismo”. A respeito de Maine, Marx critica o anacronismo do antropólogo liberal, que teria transferido o modelo da família privada inglesa e a “’patriarcal’ romana para a origem da história”.
Nos Cadernos etnológicos há uma crítica ao Estado por subjugar e empecilhar a emancipação do indivíduo, destacando o caráter parasitário e transitório da organização estatal. A individualidade sob o domínio do Estado é uma individualidade de classe, já que, para Marx, os interesses do Estado se assentam em pressupostos econômicos e classistas. A exemplo da atualidade dessa formulação, não é difícil encontrar discursos do século XX e início do XXI que transmitem essa ideia, tal como a célebre frase de Margareth Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre os anos 1979 a 1990, “there is no such thing as society”, ou ainda as posições tomadas pelos atuais membros e apoiadores Governo Federal brasileiro, que justificam medidas de maior flexibilização de direitos trabalhistas e previdenciários com o intuito de permitir maior “liberdade individual” para as negociações entre empregados e patrões.
Os estudos mais detalhados e qualitativos dos Cadernos etnológicos e da correspondência de Marx mostram que esse autor também era um crítico do determinismo econômico. Assim, ele salientava com frequência as especificidades das condições históricas nas múltiplas possibilidades da intervenção humana para atuar e transformar a realidade que a cerca.
No que se refere à teleologia, Marx considerava tolice os debates que buscavam uma fórmula geral para possíveis medidas legislativas, políticas e econômicas que deveriam ser tomadas por um futuro governo revolucionário. Quaisquer medidas de um suposto governo revolucionário dependeriam de suas próprias condições históricas reais, não poderiam reduzir a questão à simples tomada do poder. Ele via esse tipo de tema como “um falso problema” e sugere que seria impossível, por exemplo, que um francês do século XVIII tivesse a priori alguma ideia das consequências da implementação das reivindicações burguesas.
O segundo capítulo, intitulado A Controvérsia Sobre o Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, é certamente o mais interessante, porque contribui para desconstruir as representações estáticas da teoria de Marx. O ponto de partida é a troca de cartas entre o Mouro e Vera Zasulitch, militante da organização russa Repartição Negra. Vera solicitou uma posição de Marx acerca da comuna rural na Rússia, pois, alguns dos que se declaravam “marxistas” russos eram contrários à possibilidade do desenvolvimento da comuna rural pela via socialista e diziam que o movimento deveria focar em fazer propaganda somente com os trabalhadores urbanos. A justificava para isso era que a comuna estava fadada ao fracasso, já que a defesa da comuna atrasaria em “dezenas de anos” a passagem da Rússia para o capitalismo e, por sua vez, ao socialismo.
Apesar de afirmar que a expansão do capital e a tendência da criação de um mercado mundial levariam a circunstâncias mais favoráveis ao comunismo, Marx considerava que era possível que a comuna rural se apropriasse das condições tecnológicas criadas pelo modo de produção capitalista já existente. Por isso, ele declarou que a Rússia não precisava e nem poderia percorrer as mesmas situações pelas quais passou a Inglaterra. Ele explica que o processo de acumulação primitiva tratada em O Capital dizia respeito, especificamente, aos países da Europa Ocidental e não ao conjunto do globo, e que não haveria um modelo esquemático e universal de sociedade socialista.
Então, Marcello Musto apresenta ao leitor uma série de argumentos utilizados por Marx que apontam as considerações que esse autor elaborou acerca de outras vias para a transição ao socialismo. É preciso notar que, Karl Marx se interessava pelo tema do desenvolvimento russo desde a década de 1850. Paul Lafargue relatou que o interesse do seu sogro por esse país foi motivo até mesmo de um “conflito jocoso” com Engels, o qual teria dito: “Queimarei com prazer as publicações sobre a situação da agricultura na Rússia, que há anos te impedem de completar O capital”.
No terceiro capítulo, Os Tormentos do “Velho Nick”, o autor apresenta as repercussões de O Capital elaboradas pelos aliados e críticos de Marx, entre 1870 e 1881. Musto narra, com uma riqueza de dados biográficos e de maneira sensível, as precárias condições de saúde do casal Karl e Jenny e suas tentativas de melhoras, além da situação de extrema depressão da caçula da família, Eleanor. Mesmo com todos os esforços, Jenny von Westphalen, acometida com um câncer no fígado, veio a falecer em dezembro de 1881.
Apesar das dificuldades familiares, Marx dá início, no outono de 1881, a novos estudos históricos. Escreve uma série de notas, fichamentos de livros, de temáticas diferentes, e cronologias. Entre os estudos, recaídas e melhoras de saúde e problemas de relacionamento com a sua filha Eleanor, Marx é incentivado por seus médicos e por Paul Lafargue a viajar a procura de um clima que permitisse sua melhora física para, assim, terminar O Capital. O destino sugerido foi à Argélia. Em fevereiro de 1882, partiu sozinho, sem o auxílio de familiares, ficando pela primeira vez fora da Europa.
No último capítulo, A Última Viagem do Mouro, Marcello Musto narra as impressões de Marx frente à estadia no país africano, a busca por tratamento médico devido a uma repentina piora, as tristezas relatadas nas correspondências trocadas com Engels e com a família, o retorno a Europa, a pequena pausa em Mônaco e a chegada em Argenteuil, na casa de sua filha Jenny. No entanto, não demorou muito e Marx se pôs a novas viagens, mesclando seu itinerário entre visitas familiares e a busca por tratar de suas crises de bronquite, pleurite e reumatismo.
Irando-se, meses antes de sua morte, contra aqueles que diziam ser seus discípulos – inclusive os seus genros –, Marx escreveu em tom de ironia a Engels e a Eduard Bernstein: “Tudo o que sei é que não sou marxista”. Nos seus últimos meses de vida, ele ainda esperava se dedicar ao estudo de novos autores e obras, entre eles Johannes Ranke, o que não veria acontecer. A morte da filha Jenny, em janeiro de 1883 – devido a um câncer na bexiga –, acarretou uma piora no quadro físico e mental de Marx, que se estende até a sua a sua morte, em março de 1883.
Em O Velho Marx há um excesso de informações no primeiro capítulo, ocupando um espaço significativo no corpus da obra e, às vezes, adiantando de maneira resumida muitos assuntos de outros capítulos, apesar de cada uma dessas partes tratar dos temas com o devido aprofundamento. Apesar disso, essa biografia, que mescla elementos da vida privada, política e intelectual dos últimos anos de Karl Marx, mostra-se estimulante aos interessados na vida e na obra do Mouro. Além disso, o livro contribui para reforçar a crítica das últimas décadas já tão repetidas no mundo acadêmico e que já se mostram esgotadas, sobretudo, quando confrontadas com os dados e indícios encontrados nas fontes documentais.
Resenhista
Marcelo de Gois Barbosa – Mestrando em História (UNESP-Assis). E-mail: marcelo.mgbarbosa@gmail.com
Referências desta Resenha
MUSTO, Marcello. O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: BARBOSA, Marcelo de Gois. Desconstruindo a representação do velho Marx a partir da biografia de seus últimos anos de vida. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 19, n.1, p. 244-249, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
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