O trabalho escravo contemporâneo: a degradação do humano e o avanço do agronegócio na região Araguaia-Tocantins | Paulo Henrique Costa Mattos

O fenômeno da escravidão rural contemporânea brasileira vem sendo denunciado em âmbito nacional e internacional, pelo menos, desde o início da década de 1970. Na década seguinte, surgiu a primeira onda de estudos sobre o tema ou que o incluem. De certa forma, entretanto, a simples existência da expressão “trabalho análogo ao de escravo”, no artigo 149 do nosso Código Penal de 1940 (este Código é ainda o atual, apesar das inúmeras alterações sofridas), mesmo que efetivamente bem pouco operante como instrumento de coibição, já refletia a admissão de que algo ocorria em nosso território.

Desde o final da década de 1980, mudanças começam a se avizinhar em função do êxito dos protestos de organismos da sociedade civil brasileira, os sindicatos, a Comissão Pastoral da Terra e as entidades de defesa dos direitos dos trabalhadores. Além das mudanças no quadro das representações político-partidárias nacionais, as denúncias contra o trabalho escravo lograram encontrar eco em instituições internacionais. Assim, o governo brasileiro foi pressionado, na década de 1990, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a conduzir reformas que aperfeiçoassem o aparato do Estado para o combate à prática do trabalho rural forçado.

A partir do ano de 1995, com a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, aparato destinado a ações de apuração de denúncias, passa a existir uma farta documentação probante da prática do “trabalho análogo ao de escravo”, emitida pelo próprio aparelho de Estado.

É sobre este novo período, aberto a partir de 1995, que se concentra a maior verticalização da pesquisa de Paulo H. C. Mattos, em função do campo principal de fontes inéditas que explorou: as entrevistas obtidas dos trabalhadores, sobretudo, os liberados pelo Grupo Especial; as entrevistas dos atores da sociedade civil e dos agentes do aparato do Estado envolvidos nos processos de autuação ocorridos na região Araguaia-Tocantins; e os processos jurídicos instalados pelo Ministério Público em consequência dos autos de infração exarados pelo Grupo Especial.

Destaca-se o ineditismo que as entrevistas (a maioria delas concedidas a Paulo H. C. Mattos) conferem à Dissertação, se a compararmos a um livro todo baseado em entrevistas, aquele da Organização Internacional do Trabalho, Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil (Brasília, 2011). Os pesquisadores do referido livro da OIT reconhecem dificuldades para se obter estas entrevistas, mesmo com suporte institucional e financiamento, que lhes permitiu visitar diferentes regiões do Brasil. Por seu turno, Paulo H. C. Mattos atuou em uma região determinada, onde a prática do trabalho forçado é frequente e onde ele participa das atividades das entidades de defesa dos direitos dos trabalhadores. O engajamento social e político do historiador permitiu-lhe proximidade e companheirismo com atores do conflito, no contexto preciso da denúncia e do estouro de nichos de trabalho escravo. Isto criou condições ímpares de relação com as vítimas e outros atores. Assim, a base documental é menos extensa, mas de qualidade mais intensiva, oferecendo uma ótica privilegiada de aprofundamento do conhecimento do fenômeno.

Juntamente com o livro de Flávia de Almeida Moura (Escravos da precisão: economia familiar e estratégias de sobrevivência de trabalhadores em Codó-MA. São Luiz: EDUFMA, 2009), a Dissertação de Mattos insere- -se em uma nova etapa de possibilidades de estudo do fenômeno, aberta pelas ações de resgate feitas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, desde sua instituição em 1995. Mattos (2012), na trilha de Moura (2009), soube fazer do contato com os resgatados um caminho para a verticalidade do conhecimento do fenômeno, em sua escala local e regional.

Quanto à tipificação global do modelo de trabalho forçado rural, praticado no Brasil contemporâneo, a Dissertação de Mattos converge com a bibliografia pertinente desenvolvida nas últimas décadas, em relação aos seguintes tópicos:

  1. a) trata-se do sistema de barracão, um modelo arquitetado por um endividamento enganoso e fraudulento;
  2. b) trata-se de um modelo herdeiro do sistema de aviamento do ciclo da borracha, ao qual vieram agregarem-se práticas de punição provenientes do período da escravidão legal do nosso país;
  3. c) trata-se de um modelo análogo (como já o havia sido o sistema de aviamento do ciclo da borracha) ao internacionalmente conhecido truck system.

Vista na totalidade, a Dissertação acerca-se de seu objeto segundo duas linhas principais de orientação, cuja imbricação garante unidade e organicidade ao texto. Pela primeira linha de orientação, busca-se explicar o fenômeno estudado, sobretudo, pelos mecanismos macroeconômicos que lhe dão existência. Seguindo esta direção, a Dissertação procura alocar o trabalho escravo rural brasileiro no processo de desenvolvimento econômico nacional, em suas relações com o capitalismo internacional. Por este caminho, o trabalho historiográfico aproxima-se da análise sociológica e, entre os problemas mais significativos que busca enfrentar, está aquele do descompasso entre modernização tecnológica e retrocesso das relações de trabalho. O avanço do modelo modernizante de agronegócio, na fronteira agrícola brasileira, baseado em tecnologia avançada, faz-se acompanhar simultaneamente da utilização de modelos de exploração de mão-de-obra tão atrasados, como aquilo que a legislação trabalhista nacional tipifica como “trabalho análogo ao de escravo”.

Por sua segunda linha de orientação, a Dissertação busca o aprofundamento do conhecimento do núcleo do fenômeno estudado. Parece estar aí a contribuição mais original da pesquisa, pois, neste plano, ela confrontou-se com uma das características centrais do fenômeno. Este modelo de exploração de mão-de-obra, que o século XIX procurou tornar moral e legalmente condenável, é algo que se estrutura como um ‘segredo de negócio’.

‘De negócio’, porque a primeira linha de orientação da Dissertação procura mostrar como este modelo de exploração de trabalho pelo agronegócio brasileiro responde a condições econômicas determinadas pelo modo da sua pertença à divisão internacional das tarefas produtivas e ao modo de distribuição dos ganhos de capital que a alicerça. Mas, por sua segunda linha de orientação, a Dissertação oferece uma desconstrução da fabricação do ‘segredo’ deste ‘negócio’.

Este segredo constrói-se de duas maneiras defensivas. Primeiro, por sua própria dinâmica interna, a escravidão contemporânea procura fazer-se invisível. Segundo, a escravidão reage à descoberta pela negação de sua existência, o que torna o fenômeno resistente, por natureza, ao inquérito policial e à investigação científica. O historiador Paulo H. C. Mattos confronta-se com estas duas táticas defensivas, primeiramente, pela apresentação do procedimento de autonegação em todos os níveis do fenômeno, desde sua face mais extrínseca até seu núcleo mais íntimo.

Mattos recorta, da imprensa nacional, esta frase chave da construção ideológica contra a qual se ergue seu esforço historiográfico: “Nunca vi trabalho escravo no Brasil. Tem de diferenciar o que é irregularidade trabalhista e trabalho degradante, coisas erradas, da escravidão” (Discurso da Senadora Kátia de Abreu, no Senado, transcrita na reportagem de Diogo Schelps, Revista Veja, edição 2162, ano 43, n° 17, de 22/09/2011, apud Mattos, 2012, p. 281). A frase é da presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e representa a linha de pensamento de classe, presente no Congresso Nacional.

Mas, para além deste nível de superfície, Mattos mergulha verticalmente, percorrendo o muro de proteção do segredo. A Dissertação apresenta casos de empresas multinacionais que empurram as responsabilidades jurídicas (trabalhistas e criminais) do trabalho escravo para o empreiteiro autônomo (o gato). Tudo se passa como se a moderna máquina agropecuária não praticasse nem conhecesse que se pratica trabalho escravo, mesmo que este tenha sido flagrado no interior de seus domínios pelo Grupo Especial.

Num nível abaixo da escala do segredo, a Dissertação revisa processos instalados pelo Ministério Público, onde o advogado do réu declara que as irregularidades trabalhistas não justificam a autuação feita pelo Grupo Especial. Aqui a denegação se particulariza e se especifica: este não teria sido um caso de trabalho escravo.

No nível básico, estão as autonegações mais nucleares do fenômeno porque concernem à relação do empreiteiro (gato) com o trabalhador (peão).

Mattos não conseguiu obter entrevista de empreiteiro atualmente em atividade. Uma das respostas obtidas, entretanto, é suficiente para tipificar que a negação da entrevista faz parte da necessidade de preservar o segredo. Mattos relata que um empreiteiro negou-se a ser entrevistado, alegando que trabalho escravo é invenção do pessoal das universidades.

Quanto ao peão, Mattos ratifica um dado bem conhecido na bibliografia pertinente e visto como uma condição da reprodução do fenômeno, pela ótica de sua base antropológica: o trabalhador não percebe e não acredita que está sendo vítima de trabalho forçado porque a honra da palavra empenhada (em troca do recebimento de um adiantamento) aprisiona-o a partir da sua consciência moral, que dá legitimidade ao processo.

Assim, a Dissertação mostra que o muro do sigilo do trabalho escravo contemporâneo começa no Congresso Nacional, na superfície, e se aprofunda até o núcleo íntimo do segredo, o acampamento dos peões, na base. Pode-se acompanhar como a Dissertação mergulha ao lado do paredão da denegação, revelando os níveis de uma reprodução sem dialética: todos os momentos são negativos, na monótona repetição de que não há escravidão rural no Brasil contemporâneo.

Mas, além disso, um dado exterior à Dissertação pode coroar a escavação de níveis de autonegação e construção do segredo do fenômeno. Sabe-se, que o governo brasileiro vem sendo chamado a dar explicações sobre o desrespeito às convenções da OIT de que o Estado é signatário. A informação é dada pelo livro Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil (Brasília: OIT, 2010), escrito sob os auspícios da Organização Internacional do Trabalho por Patrícia T. M. Costa. Na primeira convocação, em 1992 (seguida pelas convocações de 1993, 1996 e 1997), segundo a autora, “o representante do Governo Brasileiro negou a existência do trabalho escravo no país, indicando que os casos mencionados constituíam apenas violações da legislação trabalhista” (Costa, 2010, p. 31). Note-se a identidade deste posicionamento com aquele, acima citado, que a presidência da CNA vem fazendo ecoar no país, a partir do Senado da República. Com a informação de Patrícia T. M. Costa, pode-se completar a análise de Mattos, evidenciando-se sua pertinência: no topo da escalada do segredo da escravidão por dívida, o próprio Estado denegou, em 1992, a existência do fenômeno.

Mas é ainda no bojo deste descortinar do segredo da escravidão contemporânea, que a Dissertação de Mattos conduz à descoberta de que, no nível básico da sua construção, funciona um núcleo, ou seja, uma estrutura mínima, justamente aquilo que precisa ser escondido e mantido no segredo. Este núcleo aparece quando se descreve, na Dissertação, o modo como ele está implantado no sistema de funcionamento (mais ou menos legal) de uma grande fazenda, com seu corpo de funcionários permanentes, que ficarão do lado exterior do processo de escravidão, dando-lhe um suporte (mais próximo ou mais distante), sem necessário conhecimento direto dele. Enquanto o produto do trabalho escravo alimenta o processo produtivo da fazenda em certos momentos específicos, sazonais ou não, o corpo de funcionários (exceto o capataz da fazenda instruído a só deixar passar pelo portão o peão munido de bilhete de autorização, os ‘bilhetes de alforria’, cf. Mattos, 2012, p. 228) se quer toma conhecimento de que, do seu lado, funciona um modelo alternativo de relação de trabalho.

Assim, o núcleo da relação da escravidão rural por dívida possui os seguintes componentes essenciais: o dono do empreendimento (que pode ser uma corporação e não um indivíduo; que pode ser grileiro de parte ou de totalidade da terra sob seu domínio), o gato (ou empreiteiro do serviço e aliciador dos trabalhadores), o vigia dos peões (os armados e os não- -armados) e o trabalhador braçal aliciado.

A Dissertação faz desvelar-se aos olhos de seu leitor que o núcleo essencial, na base do fenômeno, é o que repete uma estrutura de relações sempre idêntica a si mesmo, mas reproduzindo-se no interior de esquemas cada vez mais complexos, na medida em que este núcleo adquire ramificações. Estas crescem em rizoma a partir do núcleo, para protegê-lo nesta penumbra do segredo, que lhe garante a existência e a perpetuação, na impunidade e na ilegalidade de seu estatuto.

O rizoma de proteção do segredo se espraia conforme o vulto do capital financeiro em jogo na operação e conforme a espessura do filão do agronegócio, no interior do qual o empreendimento específico funciona. Se o segredo e a autonegação devem garantir a salvaguarda jurídica de um capital de grande volume e a imagem publicitária de uma marca, o preço a pagar é o aumento do muro de invisibilidade, a ampliação da cooptação de agentes exteriores ao empreendimento, que pode implicar segmentos dos poderes públicos de diversos níveis.

Apresentada esta visão dinâmica do fenômeno que a Dissertação oferece, é possível tratar de algumas das contribuições pontuais mais originais deste trabalho.

Já se sabia que há trabalhadores reincidentes no trabalho escravo, pois o mesmo sujeito chega a ser liberado mais de uma vez pelo Grupo Especial. Mas, como explicar este fenômeno? Sua elucidação é relevante para combatê- -lo. As campanhas de esclarecimento das populações parecem solapadas pela base pelo fato da reincidência. Afinal, um reincidente não pode mais ser visto como vítima completamente ignorante do jogo enganoso do aliciamento. A Dissertação oferece interessantes subsídios para a confrontação com este problema.

O fenômeno começa a esclarecer-se quando Mattos mostra que a distribuição dos diferentes personagens em lados opostos da relação de conflito é apenas uma operação lógica. Nesta estrutura analítica, há dois polos, no conflito. De um lado, estão: o agronegócio, o empreiteiro e o capanga, que aparecem como sujeitos da construção ativa da exploração da mão-de-obra pela via da escravidão. Do outro lado, está a figura solitária daquele que padece sob o esquema, o trabalhador braçal escravizado.

Verdadeiro e lógico este esquema perde sua fixidez para dar lugar a uma malha analítica mais sofisticada quando a Dissertação aprofunda a exposição dos dados descritivos da evolução de diferentes casos, graças, sobretudo, às entrevistas inéditas. Gatos, reta-gatos, capangas, vigias, chefes de turma, chefe de cantina e peões são todos sujeitos conformados a partir de uma mesma massa de trabalhadores despossuídos dos meios de produção; todos trabalhadores migrantes (em maior ou menor proporção), já que, no caso extremo, encontra-se a massa de homens e mulheres (cozinheiras e trabalhadoras sexuais) permanentemente errantes, de empreitada em empreitada (Mattos, 2012, p. 205. 223).

É porque todos fazem parte desta mesma massa de trabalhadores despossuídos que um sujeito concreto pode passar da figura de peão para a de vigia de turma ou chefe de cantina, depois tornar-se vigilante armado ou gato. Basta a mudança de função, no interior do sistema. Esta mobilidade do sujeito biográfico entre as funções do modelo é demonstrada com a entrevista de Noginel Batista Vieira, trabalhador vítima de trabalho escravo, que chegou a exercer a função de empreiteiro (gato) (Mattos, 2012, p. 238-242).

Além da mobilidade de identidades, gato e peão estão enlaçados por outros vínculos funcionais e estruturais. Conforme o depoimento de Noginel B. Vieira, se o peão está preso ao risco de não receber dinheiro do gato, além do adiantamento que lhe fez cativo da dívida, o gato está sujeito a não receber do fazendeiro o valor completo da empreitada, depois do serviço feito. Assim, no núcleo de funcionamento da escravidão por dívida, há uma estrutura de assunção do risco, que pode se repetir indefinidamente, no ciclo das empreitadas. Na Dissertação, esta solidariedade estrutural do gato e do peão foi demonstrada através do depoimento de Noginel B. Vieira, o ex- -peão escravizado e o ex-gato roubado pelo fazendeiro: “A gente sabe que os gatos e fazendeiros muitas vezes enganam e roubam os trabalhadores, mas a gente [o gato e o peão] tem de arriscar para tentar fazer um saldozinho para trazer para casa” (cf. Mattos, 2012, p. 240). A esperança deste saldo explica a reiteração da assunção do risco.

A esta explicação de tipo preponderantemente econômico para o fenômeno da reincidência, Mattos agrega outra de face mais antropológica e psicossocial. A constituição da massa de peões migrantes, de empreitada em empreitada de trabalho temporário, faz-se acompanhar da perda dos laços familiares. A Dissertação (Mattos, 2012, p. 218) parte do depoimento de Joselino Santos Pereira, que dá pistas do modo como se constitui a massa de trabalhadores andarilhos, sem destino ou família.

Olha, na época que eu tinha que ir para as fazendas no Pará, a quantidade de peões de trecho era maior do que hoje, muitos trabalhadores viviam passando de uma fazenda a outra, de uma pensão a outra, sem terem mais contato com suas famílias e os locais onde viviam. Às vezes, as famílias moravam até bem perto, mas eles não conseguiam voltar mais para casa. Eu mesmo conheci vários companheiros que tinham família bem aqui em Imperatriz (MA), em Bacabal (MA), em Bom Jesus (PI) e Estaca Zero (PI), mas que não voltavam de jeito nenhum. Quando eu perguntava por que eles não voltavam para casa, eles me diziam: “Voltar como? Nas condições em que eu estou é só para passar vergonha, além de chegar sem dinheiro, lá não tem nada para eu fazer. Se aquele lugar tivesse pelo menos um lugar prá trabalhar eu voltaria, mas ir prá lá passar dificuldades… eu prefiro ficar onde estou. Pelo menos eu consigo alguma coisa”.

A perda dos laços familiares aparece, neste depoimento, como fenômeno negativo. Mas há uma contraface. O depoimento de Noginel B. Vieira indica que o pequeno empreiteiro está preso ao peão, no meio do mato, sob as mesmas condições de vida e sobrevivência. Compreende-se, assim, que Mattos proponha a tese de uma solidariedade entre gato e peão. Para a massa dos peões de trecho, trabalhadores que perderam vínculos familiares, as relações internas aos diferentes arranjos de empreitada de trabalho, incluindo as situações de escravidão, oferecem vínculos humanos. A relação com o gato, a cozinheira, a prostituta e colegas peões tendem a esgotar as referências sociais deste trabalhador migrante, na própria medida em que fixa a condição de errante permanente, enquanto esvanecem-se os laços familiares.

Feito este aprofundamento analítico, a Dissertação teve como melhor ajustar o lugar de um aspecto já conhecido do fenômeno. Sabia-se que o trabalhador não reconhece seu aprisionamento como trabalho forçado porque ele acredita e aceita que é um devedor. Mas a Dissertação vai além e mostra que há relativa consciência dos trabalhadores sobre as possibilidades da armadilha da servidão por dívida. Algo que se instala no interior de um sistema socialmente estabelecido, ao menos na região Araguaia-Tocantins. Eis as palavras que Mattos (2012, p. 231) obteve de Ismail de Sousa e Silva: “Nestes trabalhos de tempos primeiros, a gente que era trabalhador escravo, era a profissão que a gente tinha e achava que era assim mesmo”.

Ainda sobre o problema da consciência do trabalhador, a Dissertação oferece indícios de que são os traços da relação punitiva do modelo do pelourinho e da senzala, que conduzem a consciência do trabalhador a despertar-se sobre o tipo de relação de trabalho em que se encontra. Entre os vários casos de trabalhadores que denunciaram o esquema, no depoimento recolhido de Zacarias Noronha de Souza, lemos: “Eu trabalhei em várias fazendas do Pará e do Tocantins. No total eu me lembro de umas 23 fazendas, mas fui escravizado e humilhado mesmo numas três aqui do Tocantins. […] Eu só vim a perceber que estava na situação de escravidão porque, numa fazenda que eu trabalhei, eu fui muito humilhado” (Mattos, 2012, p. 246).

Dessa forma, Mattos conseguiu, além de explicar porque um trabalhador recai no trabalho escravo, mostrar que estas reincidências, na vida de um mesmo peão, inserem-se em um ciclo repetitivo de empreitadas a que ele se submete, no interior das quais padece diferentes níveis de exploração da sua força de trabalho, de abuso de preços dos produtos da cantina, de privação de liberdade, de abusos morais e corporais e que somente situações extremas têm motivado trabalhadores a denunciar a escravidão.

Pelas contribuições pontuais destacadas e por outras que o leitor poderá descobrir por si só, na Dissertação de Mattos, pode-se concluir que este trabalho encontra-se no interior de certo campo historiográfico atual. O segredo e a autonegação são constitutivos em fenômenos como: a escravidão brasileira contemporânea; os campos de concentração da Segunda Guerra; o tráfico de humanos; o uso de humanos como estoque de material biológico etc. Tais fenômenos fazem com que o historiador tenha de desconstruir o ideológico encobrimento do real. A Dissertação de Mattos operou o desmentido da escala da denegação do trabalho escravo, em cada um dos degraus da construção do segredo. Contra a operação, que busca aplainar certos relevos da história humana recente, o trabalho de Mattos guarda analogia com o da historiadora Anja Rosmus-Wenninger, conhecida por seu empenho para mostrar as tentativas de se esconder e de se apagar os campos de concentração da memória histórica das raças envolvidas e do resto do mundo.


Resenhistas

Eduardo Sugizaki – Doutor em História pela UFG, Doutor em Filosofia pela Universidade da Picardia Júlio Verne, Pós- -doutorando em Filosofia pela UNIFESP. E-mail:  eduardosugizaki@gmail.com

Alessandro de Assis Pinto Aguiar – -mail: alessandro.direito@live.com


Referências desta Resenha

MATTOS, Paulo Henrique Costa. O trabalho escravo contemporâneo: a degradação do humano e o avanço do agronegócio na região Araguaia-Tocantins. Goiânia, GO: Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, agosto de 2012 (Dissertação de Mestrado, com 456 páginas). Resenha de: SUGIZAKI, Eduardo; AGUIAR, Alessandro de Assis Pinto. História Revista. Goiânia, v.17, n.2, p.217-225, jul./dez.2012. Acessar publicação original [DR]

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