O Trabalhador Gráfico | Adelaide Gonçalves e Allyson Bruno

A História sempre teve incontáveis narradores, em quaisquer épocas e lugares. Sabese, porém, que nem todas as narrativas se prestam à construção da História dita “oficial”. Por isto, em seu laborioso trabalho de fabricar mitos e heróis, os escribas da Corte se esmeram em filtrar informações, descartando aquelas que antagonizam a autoridade de plantão e alijando para os bastidores personagens que eventualmente desagradam, incomodam ou – suprema ousadia – afrontam as forças dominantes.

Preciosas versões dos acontecimentos acabam, dessa forma, desaparecendo nos desvãos do tempo. O que é lamentável, pois muitas vezes a face oculta dos conflitos, dos pactos e celebrações, dos pequenos e grandes inventos e descobertas, guarda informações imprescindíveis: a crônica do soldado revela-se mais rica e colorida que a do general; a do peão, mais contundente e esclarecedora que a do patrão.

Felizmente, vem-se disseminando a consciência de que há essa outra História para ser contada e, sobretudo no ambiente acadêmico, os pesquisadores têm-se dedicando ao resgate de uma memória que, por conta do descaso – quando não, da destruição consciente – ameaçava perder-se para sempre. Na Universidade Federal do Ceará, a Profª Adelaide Gonçalves, do Curso de História, lidera um trabalho de extraordinário alcance, voltado em especial para o restauro da crônica operária. Fragmentos representados por jornais, panfletos, manifestos, programas partidários, hinos, fotografias, revistas e outras peças ligadas ao mundo do trabalho têm sido pacientemente recolhidos, resultando em contribuição inestimável para o patrimônio imaterial de nossa gente.

Em “A imprensa libertária do Ceará – 1908-1922”, lançado pelas Edições UFC e Sindicato dos Jornalistas, em 2001, Adelaide reproduz alguns jornais que difundiram as teses libertárias no início do Século XX. Ao analisar esse período, ela se reporta à violência policial exercida contra aquelas folhas. Revela, como exemplo do arbítrio, a invasão da tipografia de O Operário, de Camocim, em 1928, e a prisão de seu editor, Francisco Theodoro Rodrigues. Trabalho do mesmo alcance e significado é “Ceará Socialista – Anno 1919”, também apresentado ao público no ano passado, sob a mesma chancela editorial. Aqui é mostrada, em fac-símiles, a coleção completa daquele semanário, reunida ao longo de laboriosa busca em arquivos públicos e particulares. Agora, em parceria com Allyson Bruno, e sempre com o selo das Edições UFC e apoio do Sindicato dos Jornalistas, a Profª Adelaide entrega ao público “O Trabalhador Gráfico”, onde reproduz a coleção inteira desse jornal, preservada pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Gráficas no Estado do Ceará.

Realça, em todo o trabalho desenvolvido a partir do Curso de História da UFC, a preocupação em socializar resultados. A publicação dos dados coletados, em edição fac-similar, amplia o sentido da pesquisa, na medida em que facilita o acesso a um material que jazia nas gavetas do esquecimento e, assim, pedagogicamente, contribui para disseminar a consciência da preservação da memória. Enriquece ainda mais a iniciativa o estudo preliminar inserido nessas publicações, onde os pesquisadores analisam o material coletado, lançam um olhar crítico sobre seu conteúdo, interpretam tendências e sublinham pormenores que não poderiam passar despercebidos.

Em sua maioria de pequeno formato e duração efêmera, parcos de recursos técnicos e beirando a indigência em termos financeiros, os jornais operários que circularam no Ceará no Século XIX e início do Século XX enquadram-se na tradição dessa imprensa, que se voltava para a defesa do emergente movimento dos trabalhadores e que, heroicamente, procurava evidenciar as contradições do sistema vigente. Como acontecia no resto do País, os periódicos da província empenhavam-se na denúncia das condições gerais de trabalho, sem dispensar as intervenções de caráter doutrinário. Antes de mais nada, procuravam mobilizar o trabalhador para a luta, destacando-se pelo vigor dos seus editoriais, inspirados tanto nas questões locais quanto nos princípios do internacionalismo proletário.

O papel desses periódicos na sociedade seria reconhecido pelos profissionais presentes ao 1º Congresso Brasileiro de Jornalismo, realizado no Rio, em setembro de 1918. Entre as recomendações emitidas, ao final do evento, contemplavam-se temas ainda atuais nos dias de hoje, como a imprescindibilidade da ética jornalística, a necessidade da escola de jornalismo e o cuidado que deveriam ter os editores diante da publicidade nociva e do noticiário policial. Com relação à imprensa operária, o documento recomendava às classes trabalhadoras fundar e manter órgãos de comunicação ligados às suas corporações, “pelos quais sejam afirmados os seus intuitos e os seus propósitos, com a elevação da linguagem indispensável à defesa de todas as causas justas”.

Protótipo desse gênero de periodismo, o Trabalhador Gráfico é entendido, pelos pesquisadores da UFC, como “uma das expressões da luta e do ascenso do movimento dos trabalhadores no Ceará, nos anos de 1920”. Órgão do Sindicato dos Trabalhadores Gráficos, recém-fundado, reunia não apenas dirigentes da categoria, mas também militantes de outros ofícios, alguns deles ligados ao Bloco Operário e Camponês (BOC). Seus artigos e editoriais, seções e colunas são um rico manancial de informações sobre os personagens e temas que aqueciam o movimento operário cearense naquela época. Circulou entre abril e outubro de 1930 e, no primeiro número, ao apresentar suas credenciais, descarta a idéia de ser “uma tribuna em que se discutem assuntos políticos ou religiosos, científicos ou literários”. Queria, talvez, exorcizar-se com relação à pasmaceira e mediocridade imperantes nos pasquins da intelectualidade burguesa. Preferia ser uma “bigorna onde muitos malhos rebatam, produzindo um só ruído – o de despertar a classe de operários gráficos do Ceará dessa modorra letárgica em que se acha”.

O projeto do jornal era, pois, tornar-se uma ferramenta da conscientização e mobilização de toda uma categoria profissional, que parecia, na época, indiferente ao próprio destino. A poderosa simbologia da bigorna e do malho sugere o propósito de ter a organização sindical um instrumento forte para fazer ressoar uma nova mensagem, aguilhoar os sonolentos gráficos, que, segundo o editorialista, se mostravam apáticos diante dos ideais que então agitavam outros segmentos dos trabalhadores. “É este o único motivo que nos trouxe à arena”, arremata o texto de primeira página.

Bigorna, malho, arena… Fica patenteada a disposição para a luta. E as armas são vigorosos instrumentos de trabalho que, metaforicamente, deveriam traduzir o poder da palavra escrita. Assim era o Trabalhador Gráfico. Assim se comportava a imprensa operária naqueles tempos de medo e arbítrio, quando, malgrado o tacão dos poderosos, começavam a disseminar-se idéias renovadoras, no mesmo ritmo em que se forjava a consciência de classe e se aglutinavam, em sindicatos, as hostes dos oprimidos. Ao reconstituir a memória da imprensa operária, os pesquisadores do Curso de História fazem pulsar de novo as manchetes e textos flamejantes que incitavam o trabalhador a defender os seus direitos. Para os que não se contentam em conhecer apenas a transcrição oficial da história – ou seja, a narrativa produzida sob encomenda, inspiração e com total aprovo das elites – a leitura de “O Trabalhador Gráfico” é um convite à reflexão sobre o nosso passado recente e, quem sabe, um guia para os embates futuros.


Resenhista

Italo Gurgel – Universidade Federal do Ceará.


Referências desta Resenha

GONÇALVES, Adelaide; BRUNO, Allyson (Orgs.) O Trabalhador Gráfico. Fortaleza: Edições UFC, 2002. (Edição fac-similar). Resenha de: GURGEL, Italo. Trajetos. Fortaleza, v.1, n. 3, 2002.

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