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O Tempo da Imagem | ArtCultura | 2010

Somos bancos de imagens vivos — colecionadores de imagens —, e, uma vez que as imagens entram em nós, elas não param de se transformar e de crescer.1

Lê-se na tese 14 de Sobre o conceito de história, de Walter Benjamin: “A História é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’.”2 Isso signifi ca que a História deve transformar a imagem do passado em coisa sua (tese 2), para romper com o idealismo, o historicismo, o positivismo e a noção de progresso linear. Se passado e presente se encontram nessa dialética, diante de uma imagem estamos diante do tempo, plural e heterogêneo, aberto e híbrido, contraditório e descontínuo, o que implica uma certa dinâmica da memória. É com essa concepção benjaminiana de História que se abre o dossiê O Tempo da Imagem, com o artigo “Imagem, historiografi a, memória e tempo”, de Maria Lúcia Bastos Kern.

A sobrevivência de imagens tem levado antropólogos, filósofos e historiadores da arte a se interrogarem sobre o estatuto da imagem na história. Interrogações que instigam os historiadores a refl etir sobre o uso da imagem para uma nova maneira de fazer História, cuja “novidade vem de um pensamento específi co sobre o poder da imagem”.3 O ato de inventar uma imagem é muito mais que a formulação de um discurso; seu papel é constitutivo do processo de transmissão do conhecimento; seu domínio é a prática e a técnica ligadas à memorização.4 Imagens que vêm do passado, algumas de um tempo longínquo, apresentam-se de novo e se instalam como novidade no mundo. Elas misturam passado e presente. Sobrevivem, perpassam sua época de produção, são reapropriadas, ditam crenças e práticas sociais e culturais. São acontecimentos, detentores de pensamento, de memória, de imaginação, sentimento e vida.

Este dossiê, portanto, propôs-se abordar a “imagem como acontecimento” e o exercício de se “pensar por imagens”, um pensamento complexo, dinâmico, que supõe movimentos em todos os sentidos, tensões, rizomas, contradições e, especialmente, anacronismos. Na sua seqüência, no artigo, “Esteban Lisa: semántica y estilo”, Mario H. Gradowczyck (recentemente falecido) e José Emilio Burucúa realizam um registro empírico da aparição, reaparição e variações de elementos plásticos reconhecíveis na geometria pictórica do artista. Em “Visões de terras, canibais e gentios prodigiosos”, Yobenj Aucardo Chicangana-Bayona mostra como a iconografi a medieval serviu de referência familiar para elaborar as representações pictóricas dos até então ignorados habitantes do Mundo Novo. Maria Bernardete Ramos Flores, em “Sobre a Vuelvilla de Xul Solar: técnica e liberdade no Reino do Ócio ou a Revolução Caraíba”, percebe como elementos perdidos da cultura primitiva pré-colombiana e do sonho milenar da humanidade da conquista do ócio irrigaram a concepção de história do artista plástico argentino Xul Solar e do poeta brasileiro Oswald de Andrade. No texto “El ícono de la misión: una construcción visual de la historia hispana de los Estados Unidos”, Alejandra Gómez analisa a presença do passado hispânico na cinematografi a estadunidense. E, por fim, Laura González Flores, em “Técnica y imagen: la fotografía de arquitectura como concepto”, investiga mudanças conceituais e técnicas no modo de fotografar arquiteturas.

Dentre esses modos de ver, perceber e questionar a imagem, o conceito de anacronismo revela-se apropriado. “Siempre, ante la imagen, estamos ante el tiempo”5 , e por mais contemporânea que seja, a imagem está permeada de memórias e quiçá de obsessões por passados. A vida da imagem é mais longa do que a vida humana. Ela tem mais memória, mais passados, mais presentes, mais futuros, ela tem mais tempos, que se acomodam e se montam de maneira que se tornam imbricados na euchronie do historiador. Citando aqui José Emilio Burucúa, que colabora neste dossiê, “la historia humana es esa paradojo de una vida que sentimos ininterrumpida y hasta cíclica pero, al mismo tiempo, siempre nueva, única e irrepetible”.6

Notas

1 AGAMBEN, Giorgio. Image et mémoire: ecrits sur l’image, la danse et le cinéma. Paris: Desclée de Brouwer, 2004, p. 39.

2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 229.

3 DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante: histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002, p. 48.

4 Cf. SEVERI, Carlo. Warburg anthropologue ou le déchiff rement d’une utopia: de la biologie des images à anthropologie de la mémoire. L’Homme: Revue Française d’Antropologie – Image et Antropologie, Paris: L’École des Hautes Études en Sciences Sociales, janvier/mars, 2003, p. 77.

5 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: Historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008, p. 31.

6 BURUCÚA, José Emilio. Historia, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg. México: Fundo de Cultura, 2002, p. 131


Organizadora

Maria Bernardete Ramos Flores – Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros livros, de Tecnologia e estética do racismo: ciência e arte na política da beleza. Chapecó: Argos, 2007. E-mail: bernaramos@yahoo.com


Referências desta apresentação

FLORES, Maria Bernardete Ramos. A imagem como acontecimento. Ou pensando por imagens. ArtCultura. Uberlândia, v. 12, n. 21, p. 7-8, jul./dez. 2010.  Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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