O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Os temas, nós que somos praticantes do ofício, já os conhecemos: o tempo e as temporalidades, o arquivo, o estatuto do documento e do testemunho, as biografias, o patrimônio, a memória e os usos do passado. Porém, para quem é leitor(a) de Durval Muniz Albuquerque Júnior, sabe que esse historiador costuma sempre inaugurar um modo outro de pensar e de fazer história. Em O tecelão dos Tempos (novos ensaios de teoria da história), somos interpelados por uma escrita vibrante, erudita, irônica, alegre, debochada e, acima de tudo, proliferante. Não se trata da repetição monótona de velhas tópicas: “trata-se de uma repetição diferencial: as ideias colocadas em novas situações tornam-se outras” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 17).

O livro possui três eixos. No primeiro deles, estão os textos que abordam a escrita da história. No segundo, o autor trata dos diferentes usos do passado. No terceiro, a temática é o ensino de história. Ao todo são catorze capítulos, os quais podem ser lidos em sequência ou de forma aleatória. Quer dizer que o livro é um amontoado de capítulos desconexos? Não. O ponto é que o que unifica todos é o gesto experimental e crítico. O autor ensaia historiografias. O que nos é apresentado é um conjunto de ideias-teste a partir do vocabulário conceitual e das metodologias que compõem o repertório da historiografia. Experimentos que Durval Muniz realiza enquanto historiador de ofício, enquanto professor, enquanto leitor e apreciador da arte histórica. Não foi sem motivo, portanto, que escolheu o estilo ensaístico de exposição.

A reflexão sobre a forma/estilo não é banal, afinal as modalidades de representação informam sobre o que nos é possível saber. Desde a apresentação, O ensaio como forma, o autor evidencia que os diferentes modos de enredo historiográfico dão corpo – dar corpo, ser corpo é fundamental nesse livro, como veremos! – e articulam, em seus enredos, as maneiras que dispomos de organizar e dar sentido ao passado. Contudo, no debate historiográfico, atentar para o caráter criativo da história – ou seja, que não encontramos o passado, mas damos forma a ele – costuma irritar sensibilidades empiricistas e objetivistas. Com alguma frequência, evidenciar o literário, o ficcional, o criativo – enfim, o núcleo poético das tessituras de histórias – é tomado, nas polêmicas acadêmicas, como “crimes de lesa-historiografia” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 195).

Não que a história seja composta em versos e não em prosa. Poiesis, como se sabe, é capacidade criadora, inventiva, produtora. A história é poeticamente fabricada. Fabricação que não se dá ao modo das produções em série da indústria; a imagem a que Durval Muniz recorre é a do ateliê. O(a) historiador(a) tecelã(o) dos tempos, um(a) profissional que habita as oficinas, que lida com o textual, como o têxtil. A escrita dá forma e textura à realidade. Esse gesto de fiandeira, de costureira, é identificado no momento mesmo da emergência da história como gênero escriturário: “como uma artesã do patchwork, Heródoto de Halicarnasso costura fragmentos” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 29). Durval Muniz prolifera as figuras artesãs correlatas da arte historiográfica: somos tecelãs, bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras, constituindo o próprio tecido do tempo.

No primeiro capítulo lemos que: “a historiografia não conseguiu superar suas origens artesanais, a narrativa historiográfica não conseguiu expurgar suas dimensões artísticas, literárias e poéticas, o artesanato da e na linguagem” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30). Como negar, e o autor insiste nisso, que na sua condição de texto a história é um artefato literário? O capítulo 10 é particularmente importante porque resolve maus entendidos recorrentes no debate sobre no que consiste escrever história. Efetivamente, no campo dos usos do passado, a arena pública tem sofrido falseamentos do debate, facções violentas querem, à força, constituir uma história paralela. Porém, as falas reacionárias e negacionistas não são relativistas, inclusive, os negacionistas não contestam o “princípio de realidade”. Constatar que a história se constitui na e pela linguagem não leva água para o moinho da metafísica neoliberal e/ou autoritária. O que as viradas linguísticas e culturais evidenciam é que a empiria não se confunde com a realidade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 195). Supor o contrário seria anticientífico. Parafraseando Marx, se entre aparência e essência existisse coincidência, para que precisaríamos de alguma ciência? (MARX, 2008).

Existe o real, as coisas tais como se passam e independente da percepção que tenhamos ou não delas, e existe a realidade, os modos como elaboramos a forma que somos afetados e que entendemos esse real. Enunciar o mundo, constituir sua realidade, pressupõe figurações narrativas prévias aos próprios eventos de que falamos; são as condições de enunciação. Conhecer essas condições desarma as armadilhas de falsários negacionistas, não as alimenta. Com o livro de Durval Muniz, temos que o passado é sempre uma ficção feita no presente. O mal entendido é pensar que ficcional é correlato de falso, quando ficcional quer dizer “coisa não natural, mas feita por arte” (BLUTEAU, vol. IV, p. 107, 1713).

Lembremos que, em livro anterior, Durval Muniz apresentou a história como A arte de inventar o passado (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007). Arte remete às regras e técnicas. Nos séculos XVI e XVII, eram produzidos livros chamados de ars historicae, livros similares às metodologias de história que lemos, amiúde, nas cadeiras introdutórias dos nossos cursos de história. As artes de história afirmavam categoricamente que história é um discurso verdadeiro. No entanto, não esqueciam, como veio a fazer o historicismo do século XIX, o substrato poético e retórico da historiografia (GRAFTON, 2007). Portanto, com arte, ficcionalizamos o passado, o que não é afirmar que nosso lugar de enunciação é arbitrário. O negacionismo deve ser combatido no campo da ética e no plano da política dos saberes, não recalcando os aspectos artificiosos de nosso trabalho (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019 p. 198).

O ofício historiográfico, como vemos, opera técnicas para bem tramar os fios. Para que o trabalho de artesania possa ocorrer ele precisa de matérias primas. As linhas de nossas tramas são os rastros, vestígios, inscrições, testemunhos. Na coleta de seus materiais, o profissional da história atua como na pesca, na caça ou mesmo no furto (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 31). Nos capítulos 3 e 4, o livro trata exatamente da materialidade dos arquivos e dos documentos com os quais trabalhamos.

Da leitura de Michel de Certeau, reforça a constatação de que a escrita da história é produção de um lugar (regional-geográfico, institucional, discursivo etc.). No capítulo 2, o historiador atenta que o gênero também funciona como um lugar de produção; questão que permeia, de uma ponta a outra, a historiografia tal como tem sido praticada no ocidente (e em contextos ocidentalizados) faz mais de dois milênios. De uma constatação evidente, digamos, de superfície — a saber: “a historiografia foi, por muito tempo, uma escrita de homens. Homens a tentar fixar o que de grandioso e memorável fizeram outros homens” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 41) — parte para os elementos estruturantes, para a matriz da discursividade produtora de enunciados históricos. Numa mesma sentença – O passado, como falo? – é colocado um duplo questionamento. No primeiro, o “como” inquire do que fala o passado, sobre que temáticas ele tradicionalmente trata (os homens cisgênero e seus feitos). No segundo, o “como” se refere ao modo da linguagem, à estrutura retórico-discursiva que permanece falocêntrica ainda que a temática não se restrinja aos homens cisgênero. O ponto de Durval Muniz é que incluir temas tidos como femininos ou não binários, não desfaz o caráter (cis) masculino do discurso histórico. As regras do ofício e da escrita são, intrinsecamente, (cis)masculinos. O próprio gênero narrativo é fálico. O falocentrismo reside no objetivismo e na recusa do sensível, porque a sensibilidade é entendida como “feminilizante”. Por isso, como consequência, tem-se outra ausência do discurso histórico: o corpo.

O corpo como o não dito, como elemento silenciado, implica más compreensões inclusive no que efetivamente ocorre quando lidamos com os documentos, bem como no que se passa quando circulamos naquele que é nosso espaço por excelência: o arquivo. No interior de uma gramática objetivista, a qual suprime o corpo e reduz o sujeito da enunciação a puro intelecto, a poética do arquivo silencia. Nos falta, conforme Durval Muniz, uma sensibilidade antiquária, pois sem ela a materialidade das fontes é desconsiderada. O corpo, embora silenciado nos textos, nunca está ausente da cena de pesquisa. No arquivo, ocorre o encontro tátil da pele do pesquisador com a superfície dos objetos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 62). Os sentidos (fisiológicos) produzem sentidos (significados/explicações). No arquivo, há cheiros, sons, luminosidades – arquiteturas e atmosferas. Tudo isso, poeira e poesia, via de regra, ausente nos textos de história.

Além do arquivo, o livro aborda também o patrimônio, material e imaterial: no que ele consiste, qual a dinâmica das políticas patrimoniais, que gramática confere dizibilidade a ele. Diferente da circunscrição de objetos estáticos, para o autor, o patrimônio é entendido como construção descontínua, manifestação da vida cultural e artística. No lugar do vocabulário que restringe (legado, perda, morte, mesmo, identidade), instaura um vocabulário que faz proliferar (criação, invenção, geração, gestação, diferença). Afinal, “o que se transforma é o que está vivo” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 162).

Até aqui, temos o seguinte itinerário feito pelo historiador: Do ateliê de escrita, adentra os arquivos, passa por seus corredores, sai pela porta e olha para o lado de fora, observa o passado ramificado pelas ruas, nos espaços públicos, nos monumentos, nos patrimônios (materiais e imateriais), nas efemérides e nas comemorações públicas. Seguimos ao lado do historiador andarilho e ele nos leva a outro de nossos espaços familiares: a escola.

A escola pensada para a massa da população nasceu como projeto voltado à produção de corpos dóceis. Foi projetada, como se sabe, como espaço para moldar sujeitos (assujeitar) adaptados à ordem. Ao longo do tempo, a escola se transformou, mas no discurso que a sustenta ainda permanecem elementos atávicos marcados por pressupostos conservadores. Quem trabalhou numa escola por certo conhece o ideal-tipo do aluno-problema. Ele encarna o chamado fracasso escolar. Mas no que consiste, ao fim e ao cabo, o fracasso escolar? Aquilo que não se deixa moldar, que escapa, que é fugidio. Geralmente, a escola não se pergunta o porquê de esse aluno resistir às suas regras, não se propõe a repensar se, no fim das contas, não seria ela uma escola-problema. Ao invés disso, é o(a) aluno(a) marcado com essa identidade que “será cercado por uma maquinaria de práticas e discursos da pedagogia, da psicologia, que visam corrigi-lo, recuperá-lo, discipliná-lo, puni-lo, visando seu retorno à ordem escolar” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 239). Retorno ao mesmo, identidade única do aluno padrão. Os índices de nossos livros didáticos elencam monoculturas: da cana, do café, da soja. A monocultura empobrece e entristece a terra, mas também a vida: temos monoculturas dos afetos, dos hábitos, dos valores, das condutas. O que a escola foi e é, contudo, não é o que ela sempre será. O trabalho está em constituir uma escola que não seja reprodutora de hierarquias e de desigualdades. O Tecelão dos tempos nos convida a deseducar para podermos educar (e nos educar) em outros termos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 240). O ensino de história tem que encontrar pontos de fuga nos esquemas de controle (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p.235).

Do espaço às suas práticas. Na cena da escola e da sala de aula, Durval Muniz coloca em evidência o professor, suas condutas e seus procedimentos. O professor – outra vez aqui o corpo na história, uma história encorpada – como vetor, como veículo de experimentações com temporalidades múltiplas presentes numa sala de aula. O próprio momento da aula é um evento, fenômeno vivo de encontros, tensões, sínteses e descontinuidades. Visto nessa perspectiva, o ensino de história é nada trivial, ele é produtor de heterocronias, produtor de diferenças, ou melhor, de experiências diferenciais.

Não se ignora, por óbvio, a iconoclastia intencionalmente colocada nos ensaios. As sentenças de alguns títulos de capítulos dão testemunho disso: por um ensino que deforme (capítulo 12), fazer defeitos nas memórias (capítulo 13). Na oficina da história, operamos também com nossas bigornas e martelos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 31). Os espectros daqueles que foram chamados heréticos e condenados à danação emergem, metaforicamente, como gesto historiográfico que busca causar danos nas ortodoxias do discurso histórico. Isso fica marcado, em especial, no capítulo 6, O caçador de bruxas, no qual polemiza com o historiador italiano Carlo Ginzburg. A construção argumentativa, no referido capítulo, é engenhosa, concorde-se ou não com ela. Segue a seguinte linha: Ginzburg, depois de décadas de pesquisa nos arquivos do Vaticano, é familiarizado com as engrenagens persecutórias da Inquisição e com a literatura que demonizava as práticas mágicas. O problema é que Ginzburg mobilizaria técnicas inquisitórias de retórica contra seus desafetos teóricos.

Forma é conteúdo, como ficou já pontuado. Assim, a escolha de escrever teoria da história na forma de ensaios tem relação com o que ficou dito no parágrafo anterior. O ensaio, como o próprio autor o entende, é uma escrita herética por definição. Nada mais antitético à ortodoxia dos métodos e ao cânone do que a colocação de dúvidas e o convite a fazer experimentações. Ensaiar é colocar a prova e se colocar à prova. O ensaio não é uma modalidade escriturária fechada, mas aberta. Não propõe versões definitivas. A incerteza e as imprecisões são frestas nas paredes do discurso, são elementos que dão movimento ao pensamento.

Para um grande leitor de Foucault, como Durval Muniz o é, obviamente somos impactados com os efeitos desse seu livro-bomba,1 com o espetáculo de uma escrita pirotécnica.2 Mas o pirotécnico não é um incendiário. O tecelão dos tempos, numa visada de conjunto, desnaturaliza pressupostos e conceitos fundamentais do campo do saber historiográfico. Desconstrói, desestabiliza, olha sem reservas para o cerne das incertezas. A ideia é colocar abaixo muros epistêmicos, converter o desfazimento das certezas em elemento criativo. Fazer ruínas dos monumentos do controle e, a partir de fragmentos dos escombros, realizar exercícios de beleza e de liberdade. Aqui, a referência a Foucault não é aleatória, o último dos capítulos, intitulado De lagarta a borboleta, aborda justamente as contribuições que o filósofo francês pode oferecer, ainda hoje, para as pesquisas no campo do ensino de história.

Por fim, vale dizer que o livro é um convite para que produzamos gestos diferenciais (nos nossos artigos, monografias, dissertações, teses e livros, no magistério, nos espaços de memória ou qualquer espaço no qual atuemos). Gesto que só é possível fazendo exercícios, ensaiando outros modos de ser. Não propriamente aplicando fórmulas, mas criando formulações outras. Que, por meio de nosso ofício, teçamos temporalidades múltiplas, que façamos proliferar as diferenças, eis a proposta que atravessa o livro de uma ponta a outra.

Notas

1 A expressão remete a passagem de uma entrevista de Foucault: “gostaria de escrever livros-bombas (…) Os livros deveriam ser espécies de bombas e nada mais. Depois da explosão, se poderia lembrar às pessoas que esses livros produziriam um belíssimo fogo de artifício. Mais tarde, os historiadores e outros especialistas poderiam dizer que tal ou tal livro foi tão útil quanto uma bomba, e tão belo quanto um fogo de artifício” (FOUCAULT, 2006a, p. 266).

2 Outra vez remeto a uma expressão que Foucault utilizou em uma entrevista: “Eu sou um pirotécnico. Fabrico alguma coisa que serve, finalmente, para um cerco, uma guerra, uma destruição. Não sou a favor da destruição, mas sou a favor de que se possa passar, de que se possa avançar, de que se possa fazer caírem os muros” (FOUCAULT, 2006b, p.69).

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007.

BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino. Tomo IV. Coimbra: na Real Academias das Artes da Cia de Jesus, 1713.

FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber: ditos e escritos. Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a.

FOUCAULT, Michel. “Eu Sou Um Pirotécnico” In: POL-DROIT, Roger; FOUCAULT, Michel. Entrevistas. São Paulo: Graal, 2006b.

GRAFTON, Anthony. What was History? The Art of History in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

MARX, Karl. O capital. Livro III. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2008.

Resenhista

Jacson Schwengber – Doutor em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). ORCID iD: 0000-0002-4898-8375. E-mail: jacsonhist@gmail.com

Referências desta Resenha

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: SCHWENGBER, Jacson. Tecer o tempo, proliferar as diferenças: a escrita e a teoria da história de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Aedos. Porto Alegre, v. 15, n. 33, p. 100-105, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR]

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