O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII | Laura de Mello e Souza

No ano de 2006, foi publicado um livro que surge de forma a significar um divisor de águas quando o tema em questão é o da política e administração na América portuguesa do século XVIII, como expresso em seu subtítulo. Trata-se do livro O Sol e a Sombra, de autoria da historiadora Laura de Mello e Souza, onde são aplicadas novas perspectivas analíticas sobre o tema da “administração” colonial, assentadas em interpretações que incitam ao debate e à crítica.

O título do livro já é capaz de sintetizá-lo muito bem. O sol e a sombra se refere a um escrito – utilizado no livro como epígrafe – do famoso padre António Vieira, em que se relaciona, metaforicamente, a imagem do sol e a sua sombra variável à prática administrativa no império colonial português. Em seu raciocínio, Vieira adverte que quanto mais distante o sol está, maior, portanto, será a sombra projetada. O jogo entre o sol e a sombra, de que fala Viera, refere-se àqueles que compõem os governos ultramarinos, onde as grandes variações das sombras, dadas por distâncias cada vez maiores, significam, metaforicamente, que os ministros projetam, em possessões coloniais, imagens extrapoladas dos reis, de quem são representantes.

O fato de os oficiais formarem vários laços hierárquicos no aparelho administrativo favorecia a centralização, ao mesmo tempo em que se construía o seu contraponto, já que os oficiais poderiam, por exemplo, tomar decisões segundo vontade própria, haja vista as grandes distâncias entre reino e conquistas, além de vários casos particulares não estarem previstos nas Ordenações. Tem-se, então, um quadro “incoerente”, “inconsistente”, “contraditório”.

Por outro lado, como um quadro considerado como “contraditório” conseguiu se manter durante tanto tempo? Para Laura de Mello e Souza a resposta reside no fato de se entender esse quadro como aparentemente contraditório. Para ela, essa aparente “contradição”, significa, na verdade, um ajustamento entre interesses da metrópole e interesses das porções coloniais, disso resultando elementos peculiares. Para chegar a essa visão concernente ao funcionamento da política e administração colonial, a autora buscou conciliar rigor teórico e uma profunda pesquisa empírica, frutos do transcurso de mais de dez anos dedicados ao tema.

Em um estudo de 1980, intitulado Desclassificados do Ouro, Laura de Mello e Souza já havia constatado o caráter ambíguo das ações políticas e administrativas das personagens representantes do centro decisório do poder, passando a denominar de “pendular” a prática em que as autoridades buscavam uma “justa medida”, inicialmente qualificada de “política do bater-e-soprar”. Daí que a autora destaca que em muitas situações havia a necessidade de se recorrer à violência, bater; sem, contudo, deixar de soprar, ação esta que significaria amenizar as dores da colonização através de soluções que se adaptassem às circunstâncias locais. Esse mesmo enquadramento acompanhou o processo de construção do poder inerente aos Estados modernos, devido a sua importância para a permanência e duração da administração que se configurava naquele momento.

Preocupando-se com o diálogo historiográfico, Laura de Mello e Souza destaca que o comprometimento na conciliação entre os interesses que orientavam as ações desempenhadas tanto pelas elites locais quanto pelos oficiais régios lotados nos quadros da administração significaria um pressuposto inaceitável segundo as concepções de análise de muitos intelectuais brasileiros que escreveram sobre o assunto há mais de meio século. Esses estudiosos, entre os quais a autora destaca Caio Prado Jr. e Raymundo Faoro, não cogitavam a possibilidade de haver uma combinação entre interesses metropolitanos e coloniais. Assim, as análises historiográficas relacionadas ao tema não davam conta de apreender as “contradições” inerentes à política administrativa na América portuguesa, ponto este diretamente relacionado aos impasses e limites do mando português.

A “busca de ações comuns”, segundo a autora, comportava o ajuste de dois aspectos: interesses particulares, assentados, por exemplo, em contrabando, arbitrariedades, conflitos de jurisdições; juntamente com a adoção de políticas que preservavam interesses de religião, justiça e fazenda, elementos mais diretamente relacionados ao Estado. Para Laura de Mello e Souza, portanto, esse quadro se refere a uma política capaz de conciliar tanto interesses do Reino quanto interesses das conquistas. Daí o seu caráter aparentemente “contraditório”.

No decorrer de seus argumentos, Laura de Mello e Souza busca contrariar as discussões prevalecentes sobre o tema ao exercer a função primordial do intelectual: incomodar. E incomoda na medida em que destaca ser através do estudo de casos específicos a importante maneira para se compreender as características da administração e política imperial portuguesa na região do Atlântico sul do século XVIII; para tanto, adverte a importância de situá-los em um contexto maior, por ela denominado de “enquadramento geral”. A autora, então, lança uma crítica à postura adotada por uma série de jovens historiadores brasileiros influenciados pelos trabalhos de António Manuel Hespanha, traduzida no exagero do estudo de casos particulares desconectados de um contexto mais amplo e na interpretação capaz de identificar o Antigo Regime nos trópicos, sem levar em consideração os significados que o conceito de Antigo Regime encerra.

As preocupações do livro não estão relacionadas às descrições pormenorizadas das instituições que viabilizaram uma política administrativa no Brasil, mas buscar compreender as significações do mando e sua formação estrutural no interior do império português, concretizados em ações de homens inseridos numa dada conjuntura. A historiadora ainda aponta Stuart Schwartz como sendo o autor pioneiro no trato mais técnico dos órgãos da administração portuguesa, devido ao lançamento de Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial (1979). Além de ressaltar o robustecimento da temática do mando através da comparação entre a política administrativa portuguesa no Brasil e a experiência espanhola na América, tal como nos havia apresentado Sérgio Buarque de Holanda em sua interpretação inovadora de Raízes do Brasil (1936).

Em sua primeira parte, o livro apura a crítica historiográfica: traça um panorama de importantes tradições analíticas brasileiras; analisa aspectos decisivos para a formação do século XVIII, que envolvem a descoberta do ouro na região das Minas gerais, a sua formação social e a montagem de sua estrutura administrativa e fiscal, bem como a formação de São Paulo e o delineamento de uma identidade paulista; discorre sobre a intensificação de trabalhos interessados pela temática da administração no império português; problematiza o Antigo Regime enquanto categoria analítica; e, por fim, situa a contribuição de Laura de Mello e Souza no processo de construção de uma “renovação de perspectivas” sobre o tema.

Já em sua segunda parte, o livro destaca o percurso do governador Conde de Assumar e de outros funcionários reais da região das Minas. Ao desvelar percursos individuais, Laura de Mello e Souza enfatiza as “contradições” inerentes às vivências das personagens que ajudaram a construir esta porção da América portuguesa. Vivências estas marcadas por dilemas e paradoxos, frutos da embaraçosa situação de estarem divididos entre a execução do poder central e o exercício deste poder ao sabor das circunstâncias delimitadas pelos poderes locais.

Sabe-se que as distâncias entre colônias e metrópoles foram marcadas por longas jornadas que levavam meses, e, às vezes, anos. Assim, essas grandes distâncias proporcionavam que a administração adotasse uma série de mecanismos inclinados às circunstâncias locais. Para Laura de Mello e Souza, a ambigüidade dos papéis desempenhados pelas personagens do mando colonial, recorrendo ora à violência ora à cessão, significava uma estratégia para manter a integridade de todo o império através do bom funcionamento da administração. Segundo essa perspectiva, era necessário combinar rigidez e brandura, tolerância e rigor, como forma de se impedir um desmoronamento da administração e, consequentemente, colocar em risco o domínio português sobre a colônia brasileira.

Neste sentido, o mar encerra dois aspectos importantes. Por um lado, o mar funcionou como um fator de distância entre a ordem e a sua realização, proporcionando distorções e anulações de determinações vindas de cima; por outro lado, o mar também funcionou como importante elemento de união, materializada nas políticas de combinação de interesses reinóis e coloniais, sendo esta concepção tributária à idealização de um império luso-brasileiro.

A metrópole deveria, então, executar uma política mais permissiva em relação ao ultramar. Daí que as ações das personagens, dadas no bojo da administração, somente podem ser compreendidas se enquadradas pelo contexto da política, caso contrário, perder-se-ia o significado dialético da questão. Para a autora, política e “administração” são elementos intrinsecamente ligados. Dessa forma, aponta-se como importante a compreensão das vicissitudes inseridas entre a violência e a tolerância exercidas pelos homens que formavam os grupos políticos brasileiros no período colonial.

O Sol e a Sombra, de Laura de Mello e Souza, é um livro necessário; seja por suas análises intentarem melhor situar as discussões acerca da política e administração no período colonial; seja por realçar a necessidade de um aprimoramento conceitual sobre o tema; ou por destacar a consciência de que um longo caminho ainda há de ser percorrido nesse campo, devido à falta de maiores avanços em estudos monográficos e o maior diálogo com a historiografia nacional. Não se trata de nenhum “regionalismo”, em que pese defender uma tradição historiográfica brasileira em detrimento de uma importante contribuição de trabalhos estrangeiros, mas de não se perder de vista o “enquadramento teórico”, ao combinar análises específicas e enquadramentos gerais, além de se buscar problematizar e questionar modelos explicativos, por meio da perspectiva dialógica.

David Salomão Feio – Universidade Federal do Pará.


MELLO E SOUZA, Laura de. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Resenha de: FEIO, David Salomão. Canoa do Tempo. Manaus, V. 2, n. 1, jan./dez, 2008. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

Recent Posts

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.1, 2020.

Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.9, n.2, 2020.

Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…

2 meses ago

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.12, n.03, 2023.

Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…

2 meses ago

História da Historiografia. Ouro Preto, v.16, n. 42, 2023.

Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…

2 meses ago

Sínteses e identidades da UFS

Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…

2 meses ago

História & Ensino. Londrina, v.29, n.1, 2023.

Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…

2 meses ago

This website uses cookies.