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O Sindicato que a Ditadura queria: o Ministério do Trabalho no governo Castelo Branco (1964-1967)

A autora de O Sindicato que a Ditadura queria é Heliene Nagasava. Servidora do Arquivo Nacional desde 2008, ela atua na organização e pesquisa dos acervos ligados à História do Brasil Republicano, destacando-se no trabalho com os arquivos da repressão. Sua atuação no Arquivo Nacional, somado ao engajamento no Laboratório de Estudos da História do Mundo do Trabalho (LEHMT/UFRJ) e em projetos ligados à Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), traça o lugar social da investigação histórica aqui analisada. O livro é resultado de dissertação de mestrado, orientada por Paulo Fontes (UFRJ), e defendida no Centro de Pesquisa e Documentação de História do Brasil Contemporâneo (CPDOC-FGV).

A pesquisa articula a intenção de revelar e utilizar os acervos da história recente do país, a contraposição das memórias das elites políticas do governo Castelo Branco (1964-1967) com os arquivos da repressão, e a compreensão da história social dos trabalhadores na ditadura. A análise estrutura-se em três capítulos: o primeiro compreende passagem de Arnaldo Sussekind como ministro do trabalho (1964-1965) e os embates com os trabalhadores; o segundo analisa a repressão feita nos sindicatos a partir do Ato Institucional nº 1; o terceiro enfoca as medidas tomadas pelos ministros do trabalho Peraccchi Barcelos e Nascimento e Silva. No panorama da história política do Brasil República e da história social dos trabalhadores, o livro e pesquisa deslocam o enfoque dado ao Ministério do Trabalho nas décadas de 1930 e 1940 para o período da ditadura civil-militar.

A história política renovada pelos estudos culturais destaca-se na análise da ditadura civil-militar. A preocupação com os processos políticos e as formações socioculturais que organizam a construção do Estado e da cidadania no Brasil formaram a base para a renovação da historiografia da ditadura militar após a redemocratização. Tal enfoque pode ser acompanhado nos seminários e nas publicações de coletâneas sobre a ditadura nas efemérides de 30, 40 e 50 anos do Golpe de 1964 (TOLEDO, 1994REIS, RIDENTI, MOTTA, 2004REIS et al., 2014). Se por um lado a visão de mundo dos militares, da luta armada, dos intelectuais e agentes da indústria cultural ganharam destaque nessas coletâneas, por outro, nem sempre ganhou evidência o lugar dos trabalhadores na ditadura. A pesquisa Nagasava dialoga com a História Política renovada e essa lacuna historiográfica. Além disso, o livro O Sindicato que a ditadura queria apresenta a relação entre Estado e trabalhadores entre 1964 e 1967, num período pouco enfatizado na memória social. Esta tende a ressaltar o “novo sindicalismo” e o período posterior a 1979, com a abertura e construção da cidadania na “Nova República”, para falar dos trabalhadores e sua relação com o Estado.

A divisão dos governos militares entre “moderados” e “duros”, que sugere um período brando de repressão e outro mais intenso (os “anos de chumbo”), é colocada em tensão e descartada no trabalho de Nagasava. O Sindicato que a ditadura queria (2018) enfatiza como o governo de Castelo Branco, ligado aos liberais e às promessas de retorno da democracia, construiu um arranjo que excluiu os trabalhadores da arena política e retirou direitos salariais e trabalhistas. Ao contrário de uma visão branda, como sugere a memória castelista sobre o Golpe de 1964 e o regime que veio a se instaurar, o livro desenha eventos e conjunturas em que a luta dos trabalhadores foi suplantada pela força da ditadura na restrição de direitos e da cidadania em favor dos interesses dos empresários.

O descarte e tensionamento da gramática política e memória social que opõe “moderadores” e “duros” já foi feita por autores clássicos da historiografia da ditadura. Carlos Fico em Como eles agiam (2001) e Além do Golpe (2014) salienta a ambiguidade entre os “liberais”, também chamados de “castelistas”, e a “linha dura”. Na estruturação de um corpo de especialistas da comunidade de segurança que atuava na produção de informação e contrainformação no Serviço Nacional de Informação (SNI), bem como na repressão aos grupos opositores ao regime, havia uma “ ‘aliança ambígua’ [fundada] num ‘mal-entendido mais ou menos consciente’, qual seja, a admissão pelos moderados do caráter indispensável da espionagem e da repressão, que não obstante, concomitantemente, eram por eles condenados quando se excediam (tortura, assassinatos, atentados)” (FICO, 2001, p. 21). Assim, os governos militares prometiam mais liberdade e a salvaguarda da democracia, mas usaram a violência na política e reforçaram o sistema de espionagem e repressão, restringindo a cidadania (FICO, 2001, p. 20).

Além dessa ambiguidade, o regime militar brasileiro sustentou sua legitimidade numa “utopia autoritária”. Havia uma heterogeneidade de forças políticas e grupos sociais que formavam governos militares, sendo difícil definir um “projeto” ou “ideologia” comum quando se observam perfis liberais, conservadores, nacionalistas e outras posições do espectro político nos governos ditatoriais. Carlos Fico descarta ainda a tentativa de enquadrar todas as ações do governo a partir da chamada “doutrina de segurança nacional”. Todavia, o autor reconheceu uma aliança em torno da ditadura, sustentada por uma “utopia autoritária”, baseada na crença e “necessidade de eliminar o dissenso” e realizar a “limpeza” dos segmentos indesejáveis (FICO, 2014, p. 76). Essa “utopia autoritária” aliava-se a força da cultura e imaginário anticomunista que serviu como base da aliança para perseguir a esquerda, os trabalhadores e seus projetos políticos (MOTTA, 2002).

Se Carlos Fico (2001; 2012) apresenta a forma como a distinção entre “moderados” e “duros” é ambígua nos meios militares e na construção da “utopia autoritária”, o trabalho de Heliene Nagasava salienta a inadequação (e hipocrisia) da memória castelista quando vista a partir do ponto de vista da classe trabalhadora. Nos Capítulos I e III, ela apresenta como a formulação da lei de greves, a política salarial de “arrocho” e o fim da estabilidade foram arquitetados nas gestões dos ministros do trabalho de Castelo Branco em desprezo aos interesses da classe trabalhadora. Ela acompanha as configurações sociopolíticas que envolviam o ministério do trabalho, os ministérios da fazenda e planejamento, e os sindicatos na articulação de cada política trabalhista do governo Castelo Branco. Fica evidente a forma como os interesses dos sindicatos foram desprezados; os próprios sindicalistas nomeados como “interventores” pelo ministro do trabalho chegaram em algum momento a tensionar a política do governo ditatorial e foram por ela atropelados.

No Capítulo II, a autora recupera informes e análises dos Inquéritos Políticos Militares autorizados pelo governo que atingiram os sindicatos e “Institutos de Aposentadoria e Pensão”. Delineia-se a extensão da “operação limpeza” nos meios sindicais, expulsando e reprimindo grupos ligados ao trabalhismo, comunismo e governo João Goulart, mas também se mostra como essa repressão era articulada aos interesses da implantação das reformas trabalhistas, principalmente a supressão dos Institutos de Aposentadoria e Pensão dos vários segmentos da classe trabalhadora. Longe da imagem de “moderado”, o governo de Castelo Branco editou os Atos Institucionais nº 1, 2 e 3, que garantiram a institucionalização da ditadura e a restrição dos direitos políticos e que alicerçaram a política do Ministério do Trabalho na repressão da representação sindical.

Outra contribuição do livro O Sindicato que a Ditadura Queria é a conceituação do novo trabalhismo – projeto político constituído na ditadura. As culturas políticas que estruturaram a construção do Ministério do Trabalho costumam ser bastante estudadas nos anos 1930 e durante o governo Vargas na década de 1950, em investigações sobre o vínculo social e imaginário estabelecido entre o governante e os trabalhadores. Compreende-se como essa pasta foi central na invenção do varguismo e trabalhismo. Outros momentos de estruturação política e burocrática do ministério são pouco investigados; e, na ditadura civil-militar, muito menos, uma vez que os militares assumiram-se abertamente como contrários ao legado varguista e reprimiram mobilizações de trabalhadores. Como afirma Nagasava, “é ainda muito pequena a quantidade de obras abordando o papel do Ministério do Trabalho durante o período ditatorial” (NAGASAVA, 2018, p. 24-25). Todavia, existia um projeto político para a classe trabalhadora na ditadura civil-militar. Em novembro de 1965, Castelo Branco fez um discurso que atentava para nova ordem social para os trabalhadores: o “novo trabalhismo”. O que significava essa expressão em termos práticos e políticos? Através dessa indagação, Nagasava avança na análise do que seria um projeto político para os trabalhadores nos governos militares e em especial no governo de Castelo Branco.

Durante a ditadura civil-militar, há um progressivo esvaziamento da prioridade do Ministério do Trabalho que pode ser acompanhado pelo orçamento da União (ver Tabela I). Na historiografia tradicional produzida nos anos 1970, essa mudança de relevância do Ministério do Trabalho na ditadura pode ser compreendida pela tentativa de se afastar do “componente paternalista da tradição administrativa”, num discurso tecnocrático, e pela maior ênfase na repressão aos trabalhadores. Nagasava (2018) avança na compreensão da retórica que estruturou tais transformações. No discurso e prática governamental, há o progressivo esvaziamento do peso do Ministério do Trabalho na formulação das políticas econômicas que ficam concentradas nos ministérios do Planejamento e Fazenda. A prática articulada por Roberto Campos no governo Castelo Branco permaneceu como um traço dos governos ditatoriais nos anos subsequentes; afirmava-se, grosso modo, que o que é bom para a economia e desenvolvimento é bom para os trabalhadores.

Tabela I –   Porcentagem do Orçamento público alocada no Ministério do Trabalho (1963-1974)

Ano %
1963 2,96
1964 2,96
1965 1,96
1966 0,98
1967 1,42
1968 1,21
1969 0,61
1970 0,64
1971 0,95
1972 0,85
1973 0,76
1974 0,68

Fonte: IBGE. Orçamento – Século XX, Receitas e Despesas da União apud NAGASAVA, 2018, p.25.

Além da mudança na topografia da distribuição orçamentária e do poder ministerial na União, o novo trabalhismo significava

“promover a democratização das oportunidades, ampliando as atribuições dos sindicatos, deslocando seu foco de atuação das reivindicações salariais para o desenvolvimento em associação com o governo, de projetos e programas de investimentos nos setores de produtividade indireta” (NAGASAVA, 2018, p. 12).

“Democratizar as oportunidades” significava reprimir as relações de trabalho construídas pelo trabalhismo e também escolher representantes políticos contrários ao governo de João Goulart. A escolha de Arnaldo Sussekind (abr.1964-dez.1965), Walter Peracchi Barcelos (dez.1965-jul.1966) e Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva (jul.1966-mar.1967) representavam a forma como Castelo Branco tinha propósitos antijanguistas – realizar a ruptura com a estrutura sindical que apoiava Goulart e que era acusada de ser “comunista” e “corrupta”. Sussekind foi um dos redatores da Consolidação das Leis do Trabalho (1943), ministro do Supremo Tribunal do Trabalho (STT) e conhecedor da estrutura política e sindical, onde atuou contra os propósitos políticos de Goulart; Peracchi Barcelos foi um político ex-representante do Partido Social Democrático (PSD) que se destacava no combate à Goulart e Brizola, sendo também uma liderança da Aliança Nacional Renovadora (ARENA); Nascimento e Silva era um militar, burocrata que se destacou na formulação da política habitacional da ditadura. Além dos perfis que ocuparam o ministério, ocorreu um processo de perseguição política de lideranças que se alinhavam ao trabalhismo e à João Goulart na campanha pelas reformas de base.

Na ótica do “novo trabalhismo”, a repressão e desarticulação da estrutura sindical janguista era também atravessada pela ênfase numa mudança da cultura sindical. As greves e reivindicações salariais eram vistas como resultado da politização excessiva das relações entre capital e trabalho. Assim, essas reações deveriam ser mais “harmoniosas” e com ênfase na eficiência e produtividade do trabalhador para melhora de seu “padrão de vida”. Na visão de Roberto Campos,

a classe trabalhadora teria separado “seus legítimos interesses dos interesses dos demagogos” e sem perder a ênfase nas reivindicações salarias, “tônica universal da atividade sindical”, os sindicatos deveriam agora pleitear vantagens para seus associados. Nesse sentido, os interesses da classe “não podem ser distintos dos interesses gerais da nação” e, para acompanhar o avanço das atividades produtivas mundiais, os trabalhadores deveriam centrar na elevação do nível geral de produtividade, pois só com o progresso econômico seriam sustentáveis os benefícios sociais” (NAGASAVA, 2018, p.203).

No âmbito sindical, o novo trabalhismo significou a ênfase na expansão dos benefícios a serem estendidos ao trabalhador, em detrimento da pauta de mobilização. Extrapolando a análise feita no livro, pode-se apresentar como hipótese de análise que o chamado novo trabalhismo e os chamados “benefícios sociais” relacionados ao aumento da produtividade e do padrão de vida tinham um claro vínculo com a construção de uma legitimidade via a expansão do consumo e do mercado. Como salientou Renato Ortiz, a consolidação e legitimação da ditadura civil-militar, se estruturou na expansão do mercado de bens de consumo duráveis e culturais no chamado “milagre econômico” (ORTIZ, 1988).

Para Daniel Aaarão Reis Filho, a história da ditadura civil-militar está “saturada de memória”, em que a “conciliação nacional e o pacto democrático” impôs às versões da história no tempo presente, criando uma zona cinza que permitiu o governo de Castelo Branco ser chamado de “liberal” e “moderado” em oposição aos “anos de chumbo” (REIS FILHO, 2014, p. 7-16). O livro O Sindicato que a ditadura queria é um remédio contra as versões que falseiam a história da ditadura civil-militar e criam um pacto de silêncio na relação estabelecida pelos trabalhadores com os governos militares. Em tempos de reforço das narrativas e da gramática política dos militares no governo de Jair Bolsonaro, que extinguiu o Ministério do Trabalho, a leitura do trabalho de Heliene Nagasava torna-se necessária.

Referências

FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura – espionagem e polícia política. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001.

FICO, Carlos. Além do Golpe – Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura. Rio de Janeiro/São Paulo: Record , 2012.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho – o anticomunismo no Brasil, 1917-1964. São Paulo: Perspectiva, 2002.

NAGASAVA, Heliene . O Sindicato que a Ditadura queria: o Ministério do Trabalho no governo Castelo Branco (1964-1967). Jundiaí: Paco Editorial, 2018.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira São Paulo: Brasiliense, 1988.

REIS, Daniel Aarão et al (org.). À Sombra das Ditaduras – Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014.

REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004) Bauru: Edusc, 2004.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura e Democracia no Brasil Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

RIDENTI, Marcelo; REIS, Daniel Aarão; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964 – Visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: Unicamp, 1994.


Resenhista

Samuel Silva Rodrigues de Oliveira – Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: samu_oliveira@yahoo.com.br


Referências desta Resenha

NAGASAVA, Heliene. O Sindicato que a Ditadura queria: o Ministério do Trabalho no governo Castelo Branco (1964-1967). Jundiaí: Paco Editorial, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. História social da ditadura civil-militar e o Ministério do Trabalho no governo Castelo Branco (1964-1967). História (São Paulo). Franca, v.40, 2021. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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