O Segundo Mundo: impérios e influências na nova ordem global | Parag Khanna
Até uns poucos anos atrás, o mundo era dividido, para algumas pessoas, em três categorias. Haveria o Primeiro Mundo, formado pelos países capitalistas desenvolvidos; o Segundo, constituído pelos países do bloco soviético, e o Terceiro, que agruparia toda a parte mais pobre e subdesenvolvida do planeta. Tal categorização era, com certeza, problemática, pois reunia países de forma arbitrária e nem sempre razoável.
O principal problema, com certeza, era a caracterização de Terceiro Mundo, que agrupava, num único bloco, países em vias de desenvolvimento com outros mergulhados em pobreza extrema. Surgiram daí idéias de criar uma categoria de “Quarto Mundo” para reunir estes últimos, mas tal proposta não foi em frente. De qualquer modo, com o fim do bloco soviético, esta maneira de ver o mundo ruiu e outras maneiras de dividir os povos e os países segundo seu desenvolvimento econômico e social surgiram.
Parag Khanna, nascido na Índia, mas criado e estabelecido nos Estados Unidos, tem uma nova proposta, bastante inovadora. Ele resgata a velha divisão entre três mundos, mas modifica os seus termos. Assim, o Primeiro Mundo continua a ser a parte rica do planeta, mas o Terceiro seria formado apenas pelos seus países mais pobres e sem perspectivas. A grande inovação é, contudo, a reformatação da categoria de Segundo Mundo, o qual seria formado, agora, pelos países ainda não tão ricos para entrarem no primeiro time e nem tão pobres para fazerem parte do segundo. Estes países, além disso, teriam como característica a mistura de elementos do Primeiro e do Segundo mundos em suas sociedades, podendo, no futuro, ascender para um ou cair para outro.
Sua divisão geográfica do mundo, dessa forma, é interessante. O Primeiro Mundo seria a Europa Ocidental, a América do Norte, a Austrália e Nova Zelândia, o Japão e os tigres asiáticos. O Terceiro seria a parte andina da América do sul, o Caribe e a América Central e, acima de tudo, a Ásia do sul (Índia e seus vizinhos) e a África negra. Já o Segundo mundo seria constituído do grosso da América do sul, o México, o mundo árabe (incluindo a África do Norte) e o espaço ex-soviético.
Parag Khanna, contudo, não faz essa definição simplesmente como uma forma de facilitar nosso entendimento da geografia econômica do nosso planeta. O que ele quer é compreender a cartografia política da Terra e a sua divisão em “mundos” permite que se compreenda, segundo ele, o processo histórico atual, o qual se caracterizaria pela globalização acelerada e pela disputa geopolítica dos três grandes impérios existentes hoje pelo Segundo Mundo.
Para ele, assim, o Terceiro Mundo é irrelevante e atraí atenção apenas ocasional por parte dos novos Impérios. Já as riquezas e o potencial do Segundo podem dar a vitória ou a derrota aos novos competidores pelo poder global, pelo que uma feroz disputa por influência e conquista já estaria em pleno desenvolvimento nesse início de século. Nos seus termos, o Segundo Mundo se tornou um grande mercado geopolítico, no qual os novos Impérios competem por influência e os Estados barganham a sua posição entre eles.
Os três Impérios do momento presente são os Estados Unidos, a União Européia e a China que, apesar de ainda estar no Segundo Mundo, caminha rápido para o Primeiro e com potencial suficiente para ser um dos poderes emergentes. Ele considera a Rússia uma potência em plena decadência; a África do Sul e a Indonésia como países pobres com poucas possibilidades reais de ascensão e o Japão acomodado em sua posição de rico satisfeito.
Neste contexto, é interessante a sua avaliação da Índia como um país tão mergulhado no Terceiro Mundo que, apesar de grande, provavelmente nunca será um Império como os outros. A Índia já estaria, aliás, e contrariamente às esperanças dos EUA de utilizarem-na como um contrapeso à China, caminhando para a esfera desta. Já o Brasil seria a única grande possibilidade de a América Latina exercer alguma influência geopolítica no mundo, mas seria um poder que pode emergir ou não, dependendo das opções e capacidades das suas elites em resolver os dilemas nacionais, especialmente no que se refere ao desequilíbrio de renda. Ainda assim, não se tornaria um Império mundial, mas, no máximo, um Estado importante em um deles ou entre vários.
Assim, os vários pólos que deveriam, a princípio, substituir, segundo vários analistas, a unipolaridade americana dos anos 90 por um mundo multipolar hoje são reduzidos, na sua análise, a apenas três. E, pelo andar dos acontecimentos e pela própria dinâmica dos três impérios, que não aceitarão outros rivais, esta tríade será a definidora da geopolítica mundial no próximo século.
Sua análise considera, também, que algumas das batalhas pelo Segundo Mundo já foram travadas e vencidas. O Leste Europeu, o Cáucaso e o norte da África já estariam na área de controle da União Européia, enquanto a Ásia oriental e central já gravitariam, de um jeito ou de outro, para a China. O México, a América central e a Colômbia, por sua vez, já estariam na órbita dos EUA. Restariam, pois, como campos de batalha, a América do sul, o mundo árabe-persa e a Rússia, cuja insistência em ser um pólo autônomo só a enfraqueceria.
No que se refere à América Latina, sua posição é de que os Estados Unidos não podem mais contar como dado o seu domínio na região e que a disputa com os outros Impérios pode dar, a ela, uma chance única de sair da pobreza e aumentar a sua influência global.
Seu livro é um grande passeio por estes campos de batalha. Ele não tem nenhuma dificuldade em demonstrar suas predileções e o faz com clareza, com uma clara antipatia por governantes personalistas como Chávez, Ahmadinejad ou Putin. Também analisa com acuidade os dilemas do desenvolvimento nas mais variadas regiões do mundo, passando da Ucrânia ao Egito e do Cazaquistão à Argentina.
Escrito com uma linguagem fluente e agradável, ele também pode ser lido quase como uma crônica de viagens, com observações contínuas a respeito dos povos e nações que são estudados. No entanto, por trás de suas observações sobre culinária egípcia, futebol brasileiro ou os dilemas do desenvolvimento e da democracia na Malásia ou na Romênia, o que há é um sólido eixo analítico que permeia o livro como um todo.
Uma das suas maiores contribuições é, a meu ver, a sua junção de geopolítica com globalização. Ao contrário de uma visão anterior, que dizia que a segunda eliminaria inevitavelmente a primeira, ele afirma que as duas coexistem e, mais, se alimentam. A geopolítica, ou seja, a relação entre poder e espaço e a disputa das grandes potências ao redor disto, continuaria viva, mas ao lado de uma contínua ampliação das ligações entre os povos do mundo por meio de todas as formas de troca, ou seja, a globalização.
A força destes dois processos indica como, provavelmente, não haverá um grande conflito entre as novas superpotências, apesar das suas diferenças e disputas. Com a interligação promovida pela globalização, que nenhuma delas controla, o custo do conflito direto se tornou simplesmente grande demais. Mas elas continuarão a disputar, por medo e cobiça, os recursos e a influência no planeta, inclusive pelas teias das conexões mundiais cada vez mais fortes. Globalização e geopolítica não seriam, pois, antíteses, mas dois lados da mesma moeda.
Outro ponto interessante do livro é a sua caracterização de Impérios como estruturas políticas, em essência, positivas, já que trazem estabilidade e ordem aos povos dominados, o que é o pré-requisito básico para a democracia e a prosperidade. Para ele, a era dos Impérios nunca terminou e hoje, novamente, são as relações interimperiais que estão moldando o mundo, muito mais do que as internacionais ou as intercivilizacionais. Assim, apesar do mundo contar com quase duzentas unidades políticas e com um sem número de leis e instituições globais, os centros de poder que contariam são apenas Washington, Bruxelas e Pequim.
Nesse ponto, aliás, o contraponto com Huntington é de interesse. Parag Khanna indica como são os Impérios, e não as civilizações, que dão significado à geografia. Eles se expandiriam além dos Estados-nacionais e além das civilizações, impondo sua ordem e suas normas. Isso explicaria porque, por exemplo, a Turquia ou o norte da África estariam gravitando ao redor da União Européia e a Austrália caminha para o campo chinês, fugindo das suas civilizações.
A geografia, realmente, é um elemento que continua a moldar, como sempre, a geopolítica e as relações internacionais. Setores da mídia canadense comentaram, anos atrás, que faria muito mais sentido para o Canadá ingressar na União Européia do que associar-se aos Estados Unidos. Afinal, os canadenses têm sólidas raízes européias e sua maneira de ver o mundo tem mais a ver com Bruxelas do que com Washington. No entanto, a geografia e a força das ligações econômicas superam esta proximidade cultural e psicológica e, portanto, o Canadá continua na órbita americana. Parag Khanna, portanto, conseguiu entender de forma acurada a atual relação entre geografia e poder no mundo.
Também interessante a sua ponderação a respeito dos três estilos dos novos Impérios. Todos teriam a coesão geográfica, a riqueza econômica e demográfica e o poder militar necessários para se expandirem. Também teriam em comum o fato de não serem mais como os Impérios do passado, que buscavam a conquista territorial direta.
Mesmo assim, as diferenças também seriam marcantes. Os americanos enfatizariam o poder militar e a segurança e estariam sempre em busca de formar coalizões, nas quais eles lideram e oferecem proteção. A União Européia está transformando sua periferia em províncias semi-soberanas e enfatizaria o consenso, ofertando progresso a todos através da promoção de reformas e de algum nível de associação com ela. Já a China também faria um processo de integração econômica, sem impor condições aos outros e sempre procurando evitar o conflito e enfatizando a consulta e a negociação.
Fica evidente, no decorrer do livro, a sua predileção pelo estilo da União Européia e sua admiração e interesse por ela. Esta predileção leva, inclusive, a um tom otimista sempre que ela é mencionada. Assim, só a UE será capaz de estabilizar os Bálcãs e o Cáucaso, renovar a Rússia, etc. A China não recebe tantos elogios, mas ele reconhece como sua política de cooptação econômica e discrição é, no mínimo, coroada de êxito.
Até por comparação à União Européia, ele faz críticas à maneira como os Estados Unidos tentam atrair povos e países para a sua órbita. Ele considera o viés de Washington excessivamente baseado no mantra do livre comércio e na questão da segurança, como fica evidente na sua relação com a Colômbia. Também menciona o fato que os Estados Unidos nem sequer pensaram na adoção de políticas que realmente ajudassem a promover o desenvolvimento na América Latina e, especialmente, no México. Um fundo nos moldes daquele que a União Européia utiliza para estimular mudanças e desenvolvimento nas suas periferias seria uma excelente forma de alavancar a prosperidade da região e reforçar a sua ligação com os EUA e a resistência de Washington a isto o incomoda.
O mesmo comentário ele faz com relação ao Oriente Médio e a Ásia oriental, pois, enquanto os americanos pensam em termos de segurança, terrorismo e venda de armas, os europeus e chineses enfatizariam comércio e financiamentos. Uma visão mais mercantilista que seria não apenas preferível, como muito mais eficiente, permitindo, por exemplo, à China exercer um verdadeiro domínio do Oriente sem precisar declará-lo, absorvendo informalmente antigos inimigos, como o Vietnã, e até antigos aliados dos EUA, como os países da Asean, a Austrália, a Nova Zelândia e o próprio Japão.
Neste aspecto, fica a primeira dúvida com relação as suas idéias. Com certeza, uma política externa excessivamente focada na segurança, como é (ou foi, já que a era Obama apenas se inicia) a americana, tem defeitos óbvios. No entanto, a sua desqualificação do poder militar dos Estados Unidos como elemento de importância na luta com os demais pólos de poder é quase total, o que talvez não seja razoável.
De fato, apesar de parecer pouco provável a eclosão de uma guerra entre os três blocos, o poder militar ainda é elemento fundamental e não espanta, aliás, como a China e a União Européia, mesmo com o sucesso de suas expansões “mercantilistas”, estejam preocupadas em aumentar seu peso relativo em termos de força militar.
Do mesmo modo, suas insinuações de que países como Austrália, Japão ou Índia já praticamente aceitaram aderir à esfera chinesa são, no mínimo, simplificadoras. O reforço recente dos laços militares de Tóquio e Sidnei com os Estados Unidos pode significar muito bem que estes países aceitam fazer parte da zona econômica chinesa, pois isso lhes traz lucros e oportunidades, mas apenas tendo garantido o poder militar dos EUA como contrapeso. Enfim, talvez a sua subestimação do fator militar o leve a não perceber certas sutilezas da política internacional.
Outro exemplo disto é quando ele identifica como a União Européia é um Império que conquista pela sedução da prosperidade e que a adesão ao bloco, ou a promessa disto, é a grande arma da União. Mas esta arma só funcionará enquanto houver países “adequados” para a integração. Quando a EU tiver que intermediar, digamos, um conflito entre indianos e paquistaneses, o que ela fará? Prometerá ingresso na União a ambos? A integração ao bloco é uma arma fantástica de Bruxelas, mas também tem limites.
Usei adequados entre aspas acima porque elas evidenciam como a questão cultural e dos laços culturais não recebeu, a meu ver, o tratamento que merecia no livro, o que chega a ser estranho. Ele enfatiza em vários momentos, por exemplo, como a UE e os Estados Unidos não têm praticamente valores em comum e que, portanto, nunca os dois Impérios poderiam se reunir num único – “ocidental” – para enfrentar, digamos, o desafio chinês. América do Norte e Europa, contudo, apesar das diferenças que todos conhecemos, vieram da mesma matriz demográfica e cultural. Dizer que eles não compartilham valores comuns e que, mesmo que tivessem, isso não teria nenhuma influência é um erro, derivado, provavelmente, do seu esforço em separar com clareza os três Impérios da Terra e seus valores.
Do mesmo modo, a sua admiração pela UE o faz ver, nela, uma visão de “Europa” não excludente, nem branca e nem cristã, capaz de absorver muçulmanos, asiáticos e todos os outros povos. A realidade mostra que isso não é bem verdade. Afinal, se o Marrocos ou a Turquia fossem cristãos, não teriam sido integrados, há muito, na União?
Com efeito, estes países e outros da África e Oriente Médio podem ser colocados dentro da esfera de influência da Europa, mas não a ponto de fazerem parte dela, mesmo estando nas vizinhanças. Acredito que, para a Europa, seria muito mais fácil, se a geografia o permitisse, admitir a Austrália, o Canadá ou a Argentina na União do que a Turquia ou o Egito. Afinal, são países majoritariamente cristãos e brancos, um pré-requisito que nunca deve ser mencionado, mas que, lá no fundo, está sempre presente. Do mesmo modo, quando Parag Khanna menciona que a Rússia terá que optar entre a Europa e a China, talvez os vínculos culturais acabem por pesar mais numa possível decisão dos russos do que ele consegue inferir.
Enfim, isso são apenas conjecturas, mas indicam que, se ele está correto ao afirmar que os Impérios e mesmo as Nações-Estados podem superar as culturas e as civilizações, isso não significa que eles já as sublimaram. Huntington estava errado ao prever uma “guerra de civilizações”, mas as diferenças entre culturas no mundo ainda não chegaram ao zero e isso ainda importa, mesmo num mundo globalizado e onde a economia e o poder dão o tom das disputas.
Ainda assim, apesar destas observações e detalhes, sua conclusão geral de que a ilusão americana de domínio unilateral do mundo está se esfacelando frente aos novos superpoderes, aos novos Estados emergentes do Segundo Mundo e ao novo equilíbrio entre eles é correta. Ele se apressa, aliás, em recomendar políticas, como uma menor confiança na força e uma maior nas parcerias econômicas e comerciais, para reverter isso e aumentar a atratividade dos EUA no mercado geopolítico mundial.
Do mesmo modo, ele deixa evidente a sua preocupação com os Estados Unidos em si, que estariam em plena caminhada do Primeiro para o Segundo Mundo, como indicariam a concentração de renda, decadência da qualidade de vida e educação e outros pontos. E o que é pior: estariam aceitando esta situação, sem nenhuma preocupação ou política para permanecer no topo.
Tal posicionamento firmemente crítico frente à política externa e a própria trama da sociedade americana o levou, inclusive, a ser chamado de “antiamericano” em seu próprio país, o que é absurdo. Ele tenta, apenas, demonstrar os dilemas desta sociedade e da sua inserção no mundo e apresenta soluções. Neste esforço, escreve um livro cujas propostas podem ser aplaudidas ou criticadas, mas que trazem material muito rico para reflexão e análise.
Em tempo. Parag Khanna, segundo o apresentado na contracapa, é consultor de política externa de Barack Obama. Tenho a impressão de que as atuais elites acadêmicas e políticas dos EUA concordam, em geral, com a análise apresentada neste livro. Resta ver o quanto essa mudança de percepção por parte dos formuladores políticos e a influência de livros como este modificarão a política externa dos Estados Unidos, e o mundo, nos quatro anos a seguir.
Resenhista
João Fábio Bertonha – Professor da Universidade Estadual de Maringá – UEM. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com
Referências desta Resenha
KHANNA, Parag. O Segundo Mundo: impérios e influências na nova ordem global. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Meridiano 47, v.10, n.104, p.30-34, mar. 2009. Acessar publicação original [DR]