Franco Moretti | Imagem: Salon

 

There is no stillness at that point. Its components split and diverge each time we try to bring them into focus, as if interior continents were wrenching askew in the mind.1

Eros the Bittersweet

Em prefácio à segunda edição (1999) de O romance de formação, Franco Moretti, crítico e historiador da literatura, reconhece com uma precisão impressionante um dos limites da sua primeira grande obra e de sua abordagem teórica de então, nomeadamente a união direta entre história literária e história ideológica. A intenção de produzir uma associação quase imediata entre literatura e ideologia já é confessada, mas sem que seja entendida como excesso, no prefácio original, a partir do emprego da categoria do filósofo Ernst Cassirer de “forma simbólica”. A definição com a qual opera, estabelecida de saída, delimita bem a questão direcionada aos seus disputados objetos (romances com uma crítica literária abundante), mas sobretudo o permite se posicionar criticamente ao que considera ser a longa tendência da Historiografia Literária (Cf. MORETTI, 2007): a de dispor do objeto estético como dotado de uma força que transcende seu contexto histórico, e não como parte dele.

Para poder participar da história, o objeto literário precisa sofrer um desencantamento: deve ser entendido como um produto simbólico, que circula entre os mortais como tantos outros, que gera efeitos em seu público particular, penetrando suas inquietações inconscientes ao dar sentido a sua experiência coletiva – o que faz dele precisamente uma forma simbólica. Nesse processo, a literatura passa a ser compreendida como um discurso (Cf. CHAGAS, 2013) – com especificidades, claro – que tenta satisfazer necessidades sociais relativas a um determinado contexto. É da capacidade que uma forma literária tem de cumprir bem essa função social simbólica, ou seja, de ressoar às emoções mais profundas dos seus leitores e de lhe ofertar respostas, que ela ganha sua sobrevivência. E é dessa habilidade, enfim, que ecoa o poder e se circunscreve a longevidade do subgênero romanesco que Moretti escolheu analisar: o romance de formação.

Em sua versão original (1987), O romance de formação é composto por quatro longos capítulos, recortados segundo um critério contextual. O primeiro se dedica ao clássico e paradigmático Bildungsroman, o germânico Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1796), de Johann Wolfgang von Goethe, e ao seu correspondente inglês – segundo o critério de Moretti -, Orgulho e preconceito (1813), de Jane Austen, ambos escritos durante o contexto revolucionário francês e impactados por ele, embora à margem do evento. No segundo capítulo, o autor avança temporalmente e se concentra em duas produções sobre os anos imediatamente posteriores à Revolução Francesa (1789-1799) e também à Revolta Dezembrista (1825) na Rússia, ou seja, os contextos de Restauração ou reafirmação do poder czarista, respectivamente. Nele, Moretti analisa mais atentamente dois romances: em prosa, O vermelho e o negro (1830), do escritor francês Stendhal e, em verso, Eugênio Onêguin (1825-1832), de Aleksandr Púchkin. No terceiro, a atenção é majoritariamente voltada ao contemporâneo de Stendhal, Honoré de Balzac e sua Comédia humana (1830-1856), terminando com uma interpretação derradeira de A educação sentimental (1869), de Gustave Flaubert – romance que encerraria a breve, mas significativa vida da forma simbólica, ao evidenciar seu esgotamento.

Pelo caráter conclusivo com o qual termina o terceiro capítulo, o quarto aparece com estranheza: surge a princípio como um excedente quase sem dignidade no arranjo da obra, especialmente pela evidente antipatia que o autor nutre pelos romances com os quais vai lidar, os romances de formação ingleses (excetuada a já antes abarcada Jane Austen, por quem mostra, comparativamente, algum apreço), culminando, porém, com a bela interpretação de Middlemarch (1871-1872), de George Eliot, que parece concorrer com Flaubert ao evidenciar os limites formais do modelo.

Na edição brasileira, conta-se ainda com um segundo prefácio escrito por Moretti (mencionado no início deste texto) e com um artigo de 1990 sobre a crise do romance de formação, dedicado a uma lista de sete romances dos primeiros anos do século XX. Nele, Moretti estica a corda para confirmar seu ponto original e, com o exame de o Retrato de um artista quando jovem (escrito entre 1904-1914), de James Joyce, conclui: quando uma época passa a ter novas exigências simbólicas, a literatura é compelida a reformular sua estrutura. Em vez de nos voltarmos a sua crise, porém, vamos ver as razões históricas pelas quais a forma nasceu, a qual contexto respondeu e a quais motivos deveu seu sucesso.

No início do primeiro capítulo, dedicado predominantemente a Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Moretti se desembaraça de um contratempo espinhoso para quem escolheu analisar esse subgênero literário: a hipertrofia semântica do termo “Bildungsroman”. Em vez de adentrar o vespeiro ao apresentar detidamente as várias vertentes, escolhe oferecer uma explicação para a própria profusão de significados, que residiria no fato de seu expoente central, o referido romance de Goethe, ter sido capaz de promover, no final do XVIII,

[…] uma das mais harmoniosas soluções nunca antes apresentada a um dilema inerente à civilização burguesa moderna: o conflito entre o ideal de ‘autodeterminação’ e as exigências, igualmente imperiosas, da ‘socialização’ (MORETTI, 2020, p. 41).

Em vez de entrar no embate e polemizar com a própria definição e os pertencentes ao cânone do gênero, Moretti se apressa em delimitar o que lhe interessa: a conjunção entre Bildungsroman e modernidade burguesa; e a capacidade que esse gênero clássico teve de figurar um dilema propriamente dessa época – a tensão constitutiva entre liberdade e integração social – e produzir a solução formal mais equilibrada e harmoniosa possível.

Sua definição ampla do termo é ancorada na noção de “forma simbólica”, que proporciona o elo entre uma diversidade de formulações culturais-narrativas em torno de um comum impasse simbólico: a tensão constitutiva da modernidade, expressa acima, que é acoplada a um signo sensível concreto próprio ao gênero, a juventude, pelo rendimento que ela permite ao representar o problema moderno do dinamismo e da instabilidade.

Essa tensão de natureza simbólica entre os valores de autodeterminação e socialização, tematizada pelo romance de formação, surge, para o autor, de um processo histórico que aos poucos foi tornando o sujeito menos determinado pelos seus laços sociais e familiares: na época pré-moderna, as expectativas de vida de um sujeito eram controladas em grande medida pela origem e pertencimento tradicionais, já na modernidade, abrem-se as possibilidades de mobilidade, experimentação e diferenciação da tradição, especialmente no âmago de um grupo social em afirmação, a burguesia. Nesse movimento material e perceptivo de liberação desse sujeito para a autodeterminação, manifesta-se também a necessidade de algum nível de adequação ao mundo social, como um anseio desse próprio indivíduo, carente de pertencimento.

As formulações literárias mais eficazes para esse impasse são figuradas e tematizadas em um enredo em torno de um herói jovem, que se afasta de sua origem social e busca, por meio da experiência e exploração, alguma identidade. Porém, como Moretti indica, a própria tensão que constitui o dilema simbólico não pode se resolver plenamente. Não é possível, de fato, conciliar os valores de liberdade e socialização, isso porque eles seriam mutuamente excludentes. O segundo valor exige um limite ao primeiro, enquanto sua limitação trai sua essência. O limite à liberdade coincide, assim, com a sua cessação. No caso do romance, corresponde à inevitável conclusão do processo – o fim do movimento de formação.

Desse inexorável desacordo moderno, surgem assim dois tipos de finalidade distintos nos textos romanescos desse gênero. Esses condizem com princípios narrativos organizadores diferentes, que possibilitam a diversidade de enredos e que enfatizam um dos lados da moeda: classificação (que pende para a socialização) ou transformação (que se inclina para a liberdade). Duas formas, enfim, de se posicionar diante do dilema simbólico moderno. Na escolha entre esses princípios reside a centralidade simbólica da forma: “a prevalência de uma estratégia retórica sobre a outra implica, em particular nas suas formas extremas, opções de valor profundamente diferentes e comportamentos até opostos em relação à modernidade” (MORETTI, 2020, p. 32). Assim, as estruturas narrativas e as diferenças entre os enredos podem ser analisadas como respostas discursivas distintas oferecidas a esse dilema moderno e burguês. Por se tratar de literatura, esses discursos devem sua eficácia ao atingir os afetos do seu público, ao penetrarem suas emoções profundas, reduzindo a tensão social ao oferecerem soluções capazes de serem interiorizadas – dando, enfim, sentido a um impasse simbólico da experiência.

Por meio desse ponto de vista é que o crítico italiano analisa esses romances, pertinentes ao subgênero, como veículos de discursos ideológicos determinados em grande medida por seus contextos e públicos imediatos. Justamente por um estreito objetivo, essa armadura teórica do autor contribui para pôr em relevo aspectos formais relacionados à veiculação de mensagens, que produzem identificação dos leitores e reduzem a tensão social produzida pelo impasse simbólico, desconsiderando outras ferramentas narrativas que poderiam implodir a unidade de sentido. Para efeitos desta análise, vou me deter apenas em dois desses discursos.

No caso de Wilhelm Meister e Orgulho e preconceito, a mensagem ideológica veiculada a partir da juventude é simples: não há exatamente conflito entre liberdade e socialização. O caminho de formação se origina, no caso do paradigmático Bildungsroman alemão, em razão da interioridade insatisfeita de Wilhelm, que não aceita as determinações mais imediatas de sua classe social, o caminho mercantil de um típico burguês, e sai à procura de um novo vínculo. Um universo narrativo se abre como efeito da liberdade do protagonista, de sua tarefa de modelar sua própria vida, que apreende o mundo e se forma à medida que experimenta a diversidade do mundo.

A própria experimentação, porém, é limitada, porque, como bem pontua Moretti, os dois autores estão à margem, no momento de escrita, das transformações mais intensas da modernidade. O herói pode ser moderno, ao aspirar a um destino diferente, mas o seu mundo ainda não é. O universo exterior ainda é hierárquico, estável e não foi de fato acometido pelos acontecimentos revolucionários. O espaço externo à interioridade do protagonista não havia adentrado violentamente a sua vida, desorganizando-a por completo: era possível ainda mantê-lo sob controle. Assim, os heróis conseguiam criar uma esfera protegida para a sua subjetividade em formação, permitindo que a diversidade da realidade se revelasse apenas na medida em que fosse causa da própria multiplicidade interior do personagem, perdendo em parte o caráter ilimitado e desenfreado de um ambiente moderno que já se insinuava. Por essa razão, autodeterminação e integração social podem coincidir, na medida em que a realidade exterior está à serviço da liberdade pessoal. Ela não se impõe, só revela (ao se amalgamar) uma interioridade inquieta por novas identificações. O que poderia levar a crer que essa primeira maneira de lidar com o impasse penderia para a transformação, ou seja, para a valoração retórica da liberdade. No entanto, como insiste Moretti, no Bildungsroman clássico, a chave está no desfecho.

Se os jovens heróis, Wilhelm e Elizabeth Bennet, personificam a instabilidade e abertura modernas, eles também se mostram ciosos de pertencimento. Ao momento dinâmico da investigação, se sucede um outro, afetivamente apreendido pelos protagonistas, de que a experimentação precisa ter fim, não em razão de uma imposição externa, mas como uma exigência individual. Por causa do processo vivido, os sujeitos se cansam por si mesmos de suas individualidades, da liberdade vivida, e realizam o que o autor chamou de compromisso: aprisionam sua plural interioridade, mas adquirem consistência e sentido. O fim da liberdade, autodeterminado por assim dizer, coincide com o fim da narratividade do enredo e a mensagem que fica ao leitor é de que a troca simbólica em questão vale a pena: nela se perde a liberdade, mas ganha-se em estabilidade e consequentemente felicidade. Como resposta ao impasse simbólico, o Bildungsroman é eficaz em valorizar a normatividade da existência, a necessidade de classificação, e aceitar que de fato em algum momento a liberdade – e a juventude – precisam acabar. Ao compartilharem o ponto de vista dos protagonistas, como Moretti especula, seus leitores identificam-se sensivelmente com suas angústias e chegam com eles à mesma conclusão.

Se os romances de formação clássicos deveram seu sucesso à capacidade de produzir um equilíbrio simbólico entre os dois valores, rapidamente o mundo mudou, desequilibrando novamente o jogo e fazendo com que aquelas tão perfeitas formas culturais anteriores perdessem sua aderência. Para os romancistas aos quais se dedica no capítulo seguinte, Stendhal e Púchkin, o mundo passara a carecer de legitimidade e assim se tornou impossível qualquer tipo de interação formativa. Assim, a finalidade dos seus romances penderam mais para a valoração retórica da liberdade, tornando a socialização simplesmente impensável.

Mas o verdadeiro antípoda do Bildungsroman, no que diz respeito à escolha retórica, analisado por Moretti, é o caso de Balzac, já que A comédia humana figuraria a aceitação da instabilidade e incessante irrequietude da modernidade. Sua resposta retórica ao impasse produziria, por um caminho distinto, uma solução possível entre os dois valores, ao fundir socialização e liberdade. Ou melhor, a liberdade seria, no universo balzaquiano, não prerrogativa do sujeito, mas imposição da própria sociedade. Ao pintar o vertiginoso mundo moderno de modo fascinante, seus leitores seriam levados, afetivamente, a se encantarem por sua incontida mobilidade. Já não se trata de controlá-lo, nem de se contrapor a ele, mas de adentrar a correnteza aceitando todas suas regras. Regras instáveis, porém, e muito diferentes das figuradas no Bildungsroman clássico.

Muito longe da classificação hierárquica do primeiro universo ficcional, a mensagem balzaquiana não veicula uma solução de compromisso, em que um indivíduo abre mão de sua liberdade para aceitar o sentido que o mundo lhe proporciona. Não há promessa de pertencimento, nem de identidade estável nessa narrativa. Não é essa a troca simbólica proposta. O sentido de sua narrativa está em fazer esquecer a própria pergunta sobre o sentido. A vida é como ela é: sem sentido, sem princípio, sem regras claras e definitivas, mas certamente fascinante. Fascínio esse que é, para Moretti, perdido em Flaubert.

Moretti, assim, sistematiza todo o seu livro em torno desse pêndulo de valor retórico, sempre tentando extrair do romance aquilo que ele ofertou como resposta a um dilema contextual específico. Como ferramenta teórica, sua categoria de “forma simbólica” proporciona uma radical historicização, com ampla capacidade interpretativa e a partir da consideração da especificidade da forma literária. O autor destaca a diferença entre o plano da história propriamente dita e o plano do comentário (do narrador), a importância de cada um deles para a instauração do sentido, a função da verossimilhança ou da falta dela para a produção de significado – enfim, estabelece uma ligação entre os artifícios retórico-narrativos do romancista e os efeitos perceptivos que eles causariam aos seus leitores, possibilitando a interiorização de sua mensagem ideológica.

O limite dessa abordagem teórica para o objeto literário, porém, reside precisamente no que ele confessadamente quer excluir: a experiência propriamente estética. Para não fugir demais dos próprios termos de Moretti, é possível tornar esse ponto claro a partir da análise que ele faz de Wilhelm Meister e Orgulho e preconceito, quando anuncia a solução de compromisso dos heróis ao abrirem mão da liberdade e escolherem a estabilidade do universo social: “A longo prazo, é inevitável que o leitor deseje a supressão daqueles atributos do protagonista que impedem uma percepção clara do texto e ameaçam torná-lo interminável”. Ele “deseja […] que Wilhelm e Elizabeth renunciem à sua obstinação crítica: somente se eles aceitarem se privar de toda autonomia intelectual, Darcy e a Torre poderão seguir adiante e atribuir a tudo aquilo que se leu um sentido unívoco, definitivo e totalizante” (MORETTI, 2020, p. 109, grifos meus). É rigorosamente essa a solução de Moretti ao produzir a interpretação desencantada dos seus objetos literários: instaurar um sentido unívoco, definitivo e totalizante para cada um dos romances. Mas como ele mesmo identifica em relação a Goethe e Jane Austen, a totalidade simbólica não comporta alteridade.

Nota

1“Não há quietude neste ponto. Seus componentes se dividem e divergem cada vez que tentamos trazê-los para o foco, como se continentes interiores estivessem se contorcendo na mente” (Tradução minha).

Referências

AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. São Paulo: Penguin Classics Companhia, 2011.

BALZAC, Honoré de. A comédia humana. São Paulo: Globo, 2012.

CARSON, Anne. Eros the Bittersweet: An Essay. New Jersey: Princeton Legacy Library, 2014.

CHAGAS, Pedro Dolabela. A retórica em Franco Moretti: seus desdobramentos. Matraga, Rio de Janeiro, v. 20, n. 33, p. 194-211, jul./dez. 2013.

ELIOT, George. Middlemarch: um estudo da vida provinciana. São Paulo: Record, 1998.

FLAUBERT, Gustave. A educação sentimental. São Paulo: Penguin Classics Companhia, 2017.

GOETHE, Johann Wolfwang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Editora 34, 2009.

JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. São Paulo/Rio de Janeiro: Ediouro, 1987.

MORETTI, Franco. O romance de formação. São Paulo: Todavia, 2020.

MORETTI, Franco. A alma e a harpia: reflexões sobre as metas e os métodos da historiografia literária. In: MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

PÚCHKIN, Alexandr Sergueivich. Eugênio Oneguin. São Paulo: Record, 2010.

STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Penguin Classics Companhia, 2018.


Resenhista

Clarissa Mattos Farias – Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Departamento de História. E-mail: clamfarias@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9983-9214.


Referências desta Resenha

MORETTI, Franco. O romance de formação. São Paulo: Todavia, 2020. Resenha de: FARIAS, Clarissa Mattos. O desencantamento da literatura: o romance de formação de Franco Moretti. Topoi. Rio de Janeiro, v. 23, n. 49, jan./abr. 2022. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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